25 março 2004

Portugal sacro-profano - XVI: De Coimbra B a Lisboa SA

14:13h. Coimbra B. Estação da CP. Deprimente. Como todas as estações B do mundo. Como todas as estações da CP. B de 2ª classe. B, segunda letra do alfabeto. Como todas as estações da CP urbanas, suburbanas e rurais.



Deprimentes. Todas as estações de caminho de ferro do mundo são deprimentes. Abro talvez uma excepção para os apeadeiros. São bonitos, os apeadeiros. Ou eram bonitos os apeadeiros, quando havia o cavador, o boi, a charrua, o burro, o camponês, o portuga camponês e burro, a horta, a saída directa para os campos. As hortas. O termo apeadeiro faz-me lembrar os tempos em que se ia às hortas. Eu já não sou desse tempo. Mas os alfacinhas iam às hortas dos saloios. Benfica, Porcalhota, Pontinha, Caneças, Colares, Sintra... Gosto do termo apeadeiro. E da ideia de ir passear às hortas. Em família, aos domingos, de comboio. Ronceiro, o comboio. Ronceira, a vida da gente.



Li isso algures numa história qualquer sobre os comboios que unificaram o país de norte a sul. Há uma dívida de gratidão que é devida aos comboios. E aos homens dos comboios. E aos engenheiros das estradas e pontes. Ao engenho e à obra. Ao Fontes. Aos Fontes. Mesmo que a minha professora de sociologia histórica, discípula do E.P. Thompson, só goste dos corticeiros que eram anarcossindicalistas. Sempre suspeitei que ela não gostasse dos cavadores. Nem de comboios. Nem de hortas. Nem do Fontes. Naquele tempo parava-se em todas estações e apeadeiros. E havia tempo, não havia pressa. Não havia stresse naquele tempo. O stresse é uma construção social do meu tempo. E não havia bombas nos comboios. Ao alcance de um qualquer toque de telemóvel da Nokia ou da Siemens, tanto faz. Que as novas tecnologias quando nascem (não) são para todos.



Ou talez houvesse stresse mas chamavam-lhe outra coisa. Afinal, é tão velho como a vida. E morria-se cedo naquele tempo. E há sessenta e tal anos, na França ocupada, os ferroviários também punham bombas nas linhas de caminhos de ferro. Para fazer descarrilar os comboios. Sabotagem. Resistência ao ocupante nazi. Será que hoje seriam caçados como terroristas internacionais ?





Não sou ferroviário nem resistente. Estou numa estação deprimente. Coimbra B. Coimbra merecia, pelo menos, uma estação A. Ouço uma voz gritante. Alfarelos. Com paragem não sei onde. Nunca soube, ao certo, onde fica Alfarelos. Vim de boleia. De Viseu. Aguardo o Alfa Pendular para Lisboa. Aliás, Lisboa SA. Deve chegar às 15:16h.

- Lisboa, Sociedade Anónima ?

- Não, Lisboa, Santa Apolónia, corrige o portuga por detrás do guiché.

- Mas eu não quero Santa Apolónia. Quero a Estação de Lisboa Oriente.

E depois... o que diria o Zé (Cardoso Pires)!

- Lisboa, SA!



Sou um mau utilizador do comboio. Comprei um bilhete de 2ª classe. 17 euros, IVA incluído à taxa de 5%.

- 2ª classe ?, pergunta o portuga que fala em nome da CP. Como se me tirasse as medidas. Ou espreitasse para a minha secreta conta bancária. 2ª classe, por defeito. Para quem não ostenta sinais exteriores de riqueza. Classe B. E eu a pensar ingenuamente que já não havia 2ª classe. Comboios de 2ª classe. Gente de 2ª classe (Ah!, meu velho José Rodrigues Miguéis, e a tua gente de 3ª classe nos porões nauseabundos dos cargueiros que rumavam às Américas!).



2ª classe ou turística ? Devo ter percebido mal. Os comboios e a CP também se democratizaram. Agora só há turística e conforto no alfa pendular de todas as emoções e condições. O Portugal SA já não é mais classista. Para ter classe basta ter dinheiro no multibanco.

- Vê-se mesmo que o senhor é um utente acidental da CP, já não há 2ª classe, garanto-lhe eu.



Em contrapartida, o outro gajo, o do guiché, ainda não fez o upagrade do seu software sociolinguístico. É por isso é que a CP ainda tem uma imagem negativa que tem junto do público.

- O senhor,desculpe, mas eu sou fã dos combóios e tinha que lhe dizer isto. Também vou para Lisboa, desço na Gare do Oriente...



Tenho tempo. Nada como esperar um comboio numa estação de tipo Coimbra B para saber o que é isso de ter tempo. É bom ter tempo. Uma hora de avanço. Como uma sandes manhosa no bar da esquina. Bebo uma topázio que é uma cerveja local. Compro o Zé Cardoso Pires no quiosque. A república dos corvos. Um livro de contos. Jornal Público. Colecção Mil Folhas, ao preço de hipermercado. Redescubro o meu velho Dinossauro Excelentíssimo. Que li na revista Almanaque, se bem me lembro. Deambulo no cais de embarque como o prisioneiro no pátio da prisão. E leio a única coisa interessante que está afixada na parede da estação de Coimbra B. Alguém mandou afixar. Creio que em bronze (sou mau em metais):

- "Neste cais da estação de Coimbra, embarcou, no dia 15 de Maio de 1982, Sua Santidade o Papa João Paulo II".



O artista não quis desqualificar a estação nem a cidade. Coimbra B, o que diria a corte papal! E os turistas que visitam a cidade dos doutores. E os vindouros. Mas lá fica a tabuleta. Para a história. Para o viajante distraído, apressado ou deprimido como eu, a caminho do sul. Para ninguém. Quem lê neste país placas de bronze afixadas em estações B da CP ? Aliás, quem lê neste país?



Um dia um arqueólogo, um historiador ou um antiquário desaparafusa a placa e leva-a para casa, para o museu ou para a loja. Não acontece nada em Coimbra B. Mas por aqui passou um peregrino. João Paulo II. Em 1982. Por aqui passou Jesus Cristo, na pessoa do seu representante na terra. Sou mau em metais e em teologia. Mas esta é a minha leitura. Peço desculpa aos mais doutos blogadores do que eu. Peço desculpa aos doutores de Coimbra.



Chega o Alfa. Just in time, como na linha de montagem automóvel pós-taylorista da AutoEuropa. Entro no Alfa e sinto-me quase europeu na ponta mais ocidental da Europa. Com o lusitano Mondego aqui ao lado. Admiro a eficiência das sociedades pós-tayloristas e cosmopolitas. A nossa nunca chegou a conhecer o Sr. Taylor. Provinciana e ronceira, lá diria o Eça. Acelera o Alfa. Tenho um secreta vertigem suicidária pela alta velocidade. Dou por bem empregues os meus 17 euros. Isto faz bem à minha auto-estima. Sobretudo depois da sandocha manhosa e da topázio morna que engoli, de pé, ao balcão, do bar manhoso da estação deprimente de Coimbra B.

- Quanto vai dar ?

- Chega aos 200 ou mais, diz-me um puto de brinco na orelha...



Não apostei. Nem gosto de apostas. Deixei de ser solidário.

- Umas cartas para passar o tempo ?

- Não, obrigado, não jogo, não aposto, não fumo.



Abranda o Alfa lá para os lados da Albergaria dos Doze. Regresso à idade média da minha memória colectiva. O caminho de Santiago. As albergarias. Já em terra dos mouros. La folie meutrière de la réligion. A tua, a minha. Deus é grande e tem muitos profetas. São bons hortelãos, os mouros e os moçárabes.

- Chega à tabela. Dezassete e seis na Estação do Oriente, diz-me o pica, orgulhoso.

- Até que enfim que os comboios partem e chegam à tabela na nossa terra. Fico sempre com inveja quando vou a Amesterdão e a Leiden. Quando ia à Hoalnda, que agora já não vou. Quero dizer, ao estrangeiro de fora.

- Já não te calha na rifa. Agora são vinte e cinco cães a um osso.

- Vai desejar tomar alguma coisa ?, pergunta no futuro próximo o homem do chá, café, laranjada...

- Um Prozac, por favor.

- Lamento, mas já não temos. Esgotou-se.

- Sim ?

- Esgotou-se na última viagem que fizemos ao inferno. 11 de Março último. Estação de Atocha. Madrid. Não leu nos jornais ?

- Não, acabo de chegar doutro planeta.

- En Madrid existen dos estaciones principales de tren: Chamartín y Atocha. Ambas son estaciones de trenes de largo recorrido y de cercanías...

- Muchas gracias!, não sabia. Não vou a Madrid há anos.

- Atocha está situada en la zona sur de la ciudad, muy cercana al centro. Desde ella salen todos los trenes de largo recorrido que van a levante y al sur de España. También algunos trenes de los que pasan por la estación se dirigen luego a Chamartín y luego a destinos en la mitad norte de la península. Dentro de la estación hay otra estación llamada Puerta de Atocha desde donde sale el tren de alta velocidad (AVE) que va a Andalucía...

- Muchas gracias! Vejo que é um homem viajado.

- Só faço a península ibérica. Sabe, nasci no Entroncamento, filho e neto de ferroviários. Os comboios estão-me na massa do sangue... Mas a Espanha para mim é pura emoção. Uma tragédia horrível, aquela...

- E não tem medo do futuro dos comboios ?

- Não... Com os aviões passou-se o mesmo. Enfim, um homem tem que ganhar a vida de qualquer jeito.

- Olhe, já agora dê-me um compal de maçã.



Fico sempre deprimido quando tomo o comboio. Ou quando parto. Ou quando bebo compal de maçã. Não sei por que pedi o raio do compal. Reflexo condicionado. Que é coisa rara, tomar o comboio. Nasci numa terra onde não passavam comboios. É um estranho sentimento, esse, que me acompanha desde pequeno. Mas o compal de maçã até é bom. E dizem que vale mais do que uma chávena de café para te tirar o sono.

- Já sei, saíste cedo da casa de teus pais, ainda menino e moço!?

- É a voz do sangue, o meu lado de marinheiro que nunca fui.



Em boa verdade, detesto os entroncamentos. Rodo ou ferroviários. Detesto o Entroncamento. Da primeira vez que lá passei. Meia de dúzia de casas mal caiadas, uma feixe de linhas e cheiro a sucata. Mas tenho a nostalgia dos cais de embarque. A nostalgia do mar e da maresia. Uma palavra que mexe comigo. Cais. Cais de embarque. Niassa. Rocha Conde de Óbidos. Num comboio que veio da noite, silencioso e triste. Do Campo Militar de Santa Margarida. Destino: Lisboa. Com carga para outro destino: Bissau. Primavera de 1969. Numa outra primavera que não chegou a haver.

- Política, meu estúpido!, a primavera política do Marcelo Cetano.



Eras jovem e não vias a luz ao fundo do túnel. Nem muito menos as luzes da cidade-luz. Paris. Perdeste o último comboio para Paris. Com o teu amigo que queria ser pintor. Fernando Nobis. Com paragem, talvez em Atocha, para visitar o Greco, o Velasquez, o Goya, os grandes de Espanha que estão no Prado...

- És doido, ou quê ?! Com a pide à perna, mais os fascistas da guardia civil!



Fazia sol e frio em Viseu. O país profundo. O país que mexe. Gosto sempre de ler os jornais da terra quando estou no hotel. Três estrelas, o hotel. Novo. Bom serviço. Mas faz frio à noite.

- Voyeurismo, pensa ela. A rapariga do bar.



Oito páginas, entre notícias locais e os pequenos anúncios classificados. Duas páginas de anúncios pessoais. "A brasileira do bumbum...A universitária que faz oral... A mulatinha dengosa"... Linguagem de código. A semiótica da solidão. Do sexo triste e solitário.

- Ligue para o meu telemóvel, que a crise bate a todas as portas, sem distinção de género, etnia, cor, condição ou religião.

- A crise também chegou ao teu país profundo, baby.

- Ah!, mas Viseu, como cresceu, meu Deus!

- Não sei se cresceu bem... Não sou de cá.



O Politécnico, o túnel de Viriato. Os colóquios. Os debates. As ideias. Os intelectuais e artistas que vêm de fora. O comércio. O fórum, que há-de vir. A Grande Área Metropolitana de Viseu. Quase 400 mil. O orgulho de se ser do cavaquistão.

- Ruas, estás de granito!, diz o grafito. (Ruas é o presidente da Câmara)



Nada como um bom grafito na terra do Grão Vasco:

- Apreciem o lado empreendedor dos beirões.

- Só falta a Universidade, que mais de 10 mil universitários já cá temos.

- Tiraram-nos a Faculdade de Medicina, os malandros da Covilhã.



Outro lóbi beirão, o da Covilhã. Registo o orgulho dos putos da Associação de Estudantes da Escola Superior de Enfermagem de Viseu que realizam anualmente as suas jornadas de enfermagem. Este ano, na sua 16ª edição. O país mexe. Viseu mexe. O país profundo mexe. Os jovens deste país mexem. Mesmo com capa e batina, vestidos de preto como o corvo do Zé (Cardoso Pires).



16:30h. Passou o corpo pelas brasas. Perdi um pedaço de mundo.

- O Alfa vai a 140, ó puto. Temperatura: 19º interior. 20º exterior, leio do tabelau de bord.

- Mas agora abranda. 129, 101, 74, 52... Está parado.

- Porquê ?



Uma placa com um S, outra com um M. Não percebo nada da sinalética dos comboios. Obras. Modernização da linha. Tenho um pensamento para com os trabalhadores anónimos que constroem as novas linhas dos caminhos de ferro do futuro. Ucranianos ? Africanos ? Imigras ? Clandestinos ?

- Não lhes vejo nem a cara nem o passaporte.

- Podiam estar a trabalhar na estufas de Almeria, o inferno na terra. Mas aí são magrebinos.

- O novo proletariado do Século XXI.

- Desço na Oriente. Mandem alguém da empresa buscar-me.

- Dá o Benfica na SporTV.



E de novo o Alfa em marcha... A paisagem muda. A paisagem industrial da bacia do Tejo. A ocupação selvagem da lezíria. Mataram os campinos e o gado bravo. O branqueamento de dinheiro que vai por essa nova Lisboa Oriental. A luxuriante estação do Oriente. Just in time.



17:06h. Cheguei. Balanço do cliente:

- Pensei que já fosse o TGV. O TGV é que é.

- Não é o TGV, mas por mim não desgostei. De viajar no Alfa Pendular. Turística, claro. De Coimbra B a Lisboa SA. 17 euros, IVA incluído à taxa de 5%. Mais 10% de desconto nos Hotéis Tal & Tal. Tive tempo para (des)arrumar algumas ideias. E o puto tinha razão: na ponta final, o Alfa Pendular dá mesmo os 210.



Um dia ainda vou ter orgulho na CP e na terra onde nasci e onde nunca vi passar os comboios. Os comboios não passam na minha terra. Nem chegam a Viseu. Um abraço aos viriatos. Até para o ano. Voltarei, se me convidarem. De Expresso, pelo IP3 acima. Com regresso de comboio. Se não matarem o comboio que pára em Coimbra B. E não me esquecerei de Atocha. Sobretudo não esquecerei Atocha quando voltar a Coimbra B. De Lisboa SA com amor.

Portugal sacro-profano - XVI: De Coimbra B a Lisboa SA

14:13h. Coimbra B. Estação da CP. Deprimente. Como todas as estações B do mundo. Como todas as estações da CP. B de 2ª classe. B, segunda letra do alfabeto. Como todas as estações da CP urbanas, suburbanas e rurais.

Deprimentes. Todas as estações de caminho de ferro do mundo são deprimentes. Abro talvez uma excepção para os apeadeiros. São bonitos, os apeadeiros. Ou eram bonitos os apeadeiros, quando havia o cavador, o boi, a charrua, o burro, o camponês, o portuga camponês e burro, a horta, a saída directa para os campos. As hortas. O termo apeadeiro faz-me lembrar os tempos em que se ia às hortas. Eu já não sou desse tempo. Mas os alfacinhas iam às hortas dos saloios. Benfica, Porcalhota, Pontinha, Caneças, Colares, Sintra... Gosto do termo apeadeiro. E da ideia de ir passear às hortas. Em família, aos domingos, de comboio. Ronceiro, o comboio. Ronceira, a vida da gente.

Li isso algures numa história qualquer sobre os comboios que unificaram o país de norte a sul. Há uma dívida de gratidão que é devida aos comboios. E aos homens dos comboios. E aos engenheiros das estradas e pontes. Ao engenho e à obra. Ao Fontes. Aos Fontes. Mesmo que a minha professora de sociologia histórica, discípula do E.P. Thompson, só goste dos corticeiros que eram anarcossindicalistas. Sempre suspeitei que ela não gostasse dos cavadores. Nem de comboios. Nem de hortas. Nem do Fontes. Naquele tempo parava-se em todas estações e apeadeiros. E havia tempo, não havia pressa. Não havia stresse naquele tempo. O stresse é uma construção social do meu tempo. E não havia bombas nos comboios. Ao alcance de um qualquer toque de telemóvel da Nokia ou da Siemens, tanto faz. Que as novas tecnologias quando nascem (não) são para todos.

Ou talez houvesse stresse mas chamavam-lhe outra coisa. Afinal, é tão velho como a vida. E morria-se cedo naquele tempo. E há sessenta e tal anos, na França ocupada, os ferroviários também punham bombas nas linhas de caminhos de ferro. Para fazer descarrilar os comboios. Sabotagem. Resistência ao ocupante nazi. Será que hoje seriam caçados como terroristas internacionais ?


Não sou ferroviário nem resistente. Estou numa estação deprimente. Coimbra B. Coimbra merecia, pelo menos, uma estação A. Ouço uma voz gritante. Alfarelos. Com paragem não sei onde. Nunca soube, ao certo, onde fica Alfarelos. Vim de boleia. De Viseu. Aguardo o Alfa Pendular para Lisboa. Aliás, Lisboa SA. Deve chegar às 15:16h.
- Lisboa, Sociedade Anónima ?
- Não, Lisboa, Santa Apolónia, corrige o portuga por detrás do guiché.
- Mas eu não quero Santa Apolónia. Quero a Estação de Lisboa Oriente.
E depois... o que diria o Zé (Cardoso Pires)!
- Lisboa, SA!

Sou um mau utilizador do comboio. Comprei um bilhete de 2ª classe. 17 euros, IVA incluído à taxa de 5%.
- 2ª classe ?, pergunta o portuga que fala em nome da CP. Como se me tirasse as medidas. Ou espreitasse para a minha secreta conta bancária. 2ª classe, por defeito. Para quem não ostenta sinais exteriores de riqueza. Classe B. E eu a pensar ingenuamente que já não havia 2ª classe. Comboios de 2ª classe. Gente de 2ª classe (Ah!, meu velho José Rodrigues Miguéis, e a tua gente de 3ª classe nos porões nauseabundos dos cargueiros que rumavam às Américas!).

2ª classe ou turística ? Devo ter percebido mal. Os comboios e a CP também se democratizaram. Agora só há turística e conforto no alfa pendular de todas as emoções e condições. O Portugal SA já não é mais classista. Para ter classe basta ter dinheiro no multibanco.
- Vê-se mesmo que o senhor é um utente acidental da CP, já não há 2ª classe, garanto-lhe eu.

Em contrapartida, o outro gajo, o do guiché, ainda não fez o upagrade do seu software sociolinguístico. É por isso é que a CP ainda tem uma imagem negativa que tem junto do público.
- O senhor,desculpe, mas eu sou fã dos combóios e tinha que lhe dizer isto. Também vou para Lisboa, desço na Gare do Oriente...

Tenho tempo. Nada como esperar um comboio numa estação de tipo Coimbra B para saber o que é isso de ter tempo. É bom ter tempo. Uma hora de avanço. Como uma sandes manhosa no bar da esquina. Bebo uma topázio que é uma cerveja local. Compro o Zé Cardoso Pires no quiosque. A república dos corvos. Um livro de contos. Jornal Público. Colecção Mil Folhas, ao preço de hipermercado. Redescubro o meu velho Dinossauro Excelentíssimo. Que li na revista Almanaque, se bem me lembro. Deambulo no cais de embarque como o prisioneiro no pátio da prisão. E leio a única coisa interessante que está afixada na parede da estação de Coimbra B. Alguém mandou afixar. Creio que em bronze (sou mau em metais):
- "Neste cais da estação de Coimbra, embarcou, no dia 15 de Maio de 1982, Sua Santidade o Papa João Paulo II".

O artista não quis desqualificar a estação nem a cidade. Coimbra B, o que diria a corte papal! E os turistas que visitam a cidade dos doutores. E os vindouros. Mas lá fica a tabuleta. Para a história. Para o viajante distraído, apressado ou deprimido como eu, a caminho do sul. Para ninguém. Quem lê neste país placas de bronze afixadas em estações B da CP ? Aliás, quem lê neste país?

Um dia um arqueólogo, um historiador ou um antiquário desaparafusa a placa e leva-a para casa, para o museu ou para a loja. Não acontece nada em Coimbra B. Mas por aqui passou um peregrino. João Paulo II. Em 1982. Por aqui passou Jesus Cristo, na pessoa do seu representante na terra. Sou mau em metais e em teologia. Mas esta é a minha leitura. Peço desculpa aos mais doutos blogadores do que eu. Peço desculpa aos doutores de Coimbra.

Chega o Alfa. Just in time, como na linha de montagem automóvel pós-taylorista da AutoEuropa. Entro no Alfa e sinto-me quase europeu na ponta mais ocidental da Europa. Com o lusitano Mondego aqui ao lado. Admiro a eficiência das sociedades pós-tayloristas e cosmopolitas. A nossa nunca chegou a conhecer o Sr. Taylor. Provinciana e ronceira, lá diria o Eça. Acelera o Alfa. Tenho um secreta vertigem suicidária pela alta velocidade. Dou por bem empregues os meus 17 euros. Isto faz bem à minha auto-estima. Sobretudo depois da sandocha manhosa e da topázio morna que engoli, de pé, ao balcão, do bar manhoso da estação deprimente de Coimbra B.
- Quanto vai dar ?
- Chega aos 200 ou mais, diz-me um puto de brinco na orelha...

Não apostei. Nem gosto de apostas. Deixei de ser solidário.
- Umas cartas para passar o tempo ?
- Não, obrigado, não jogo, não aposto, não fumo.

Abranda o Alfa lá para os lados da Albergaria dos Doze. Regresso à idade média da minha memória colectiva. O caminho de Santiago. As albergarias. Já em terra dos mouros. La folie meutrière de la réligion. A tua, a minha. Deus é grande e tem muitos profetas. São bons hortelãos, os mouros e os moçárabes.
- Chega à tabela. Dezassete e seis na Estação do Oriente, diz-me o pica, orgulhoso.
- Até que enfim que os comboios partem e chegam à tabela na nossa terra. Fico sempre com inveja quando vou a Amesterdão e a Leiden. Quando ia à Hoalnda, que agora já não vou. Quero dizer, ao estrangeiro de fora.
- Já não te calha na rifa. Agora são vinte e cinco cães a um osso.
- Vai desejar tomar alguma coisa ?, pergunta no futuro próximo o homem do chá, café, laranjada...
- Um Prozac, por favor.
- Lamento, mas já não temos. Esgotou-se.
- Sim ?
- Esgotou-se na última viagem que fizemos ao inferno. 11 de Março último. Estação de Atocha. Madrid. Não leu nos jornais ?
- Não, acabo de chegar doutro planeta.
- En Madrid existen dos estaciones principales de tren: Chamartín y Atocha. Ambas son estaciones de trenes de largo recorrido y de cercanías...
- Muchas gracias!, não sabia. Não vou a Madrid há anos.
- Atocha está situada en la zona sur de la ciudad, muy cercana al centro. Desde ella salen todos los trenes de largo recorrido que van a levante y al sur de España. También algunos trenes de los que pasan por la estación se dirigen luego a Chamartín y luego a destinos en la mitad norte de la península. Dentro de la estación hay otra estación llamada Puerta de Atocha desde donde sale el tren de alta velocidad (AVE) que va a Andalucía...
- Muchas gracias! Vejo que é um homem viajado.
- Só faço a península ibérica. Sabe, nasci no Entroncamento, filho e neto de ferroviários. Os comboios estão-me na massa do sangue... Mas a Espanha para mim é pura emoção. Uma tragédia horrível, aquela...
- E não tem medo do futuro dos comboios ?
- Não... Com os aviões passou-se o mesmo. Enfim, um homem tem que ganhar a vida de qualquer jeito.
- Olhe, já agora dê-me um compal de maçã.

Fico sempre deprimido quando tomo o comboio. Ou quando parto. Ou quando bebo compal de maçã. Não sei por que pedi o raio do compal. Reflexo condicionado. Que é coisa rara, tomar o comboio. Nasci numa terra onde não passavam comboios. É um estranho sentimento, esse, que me acompanha desde pequeno. Mas o compal de maçã até é bom. E dizem que vale mais do que uma chávena de café para te tirar o sono.
- Já sei, saíste cedo da casa de teus pais, ainda menino e moço!?
- É a voz do sangue, o meu lado de marinheiro que nunca fui.

Em boa verdade, detesto os entroncamentos. Rodo ou ferroviários. Detesto o Entroncamento. Da primeira vez que lá passei. Meia de dúzia de casas mal caiadas, uma feixe de linhas e cheiro a sucata. Mas tenho a nostalgia dos cais de embarque. A nostalgia do mar e da maresia. Uma palavra que mexe comigo. Cais. Cais de embarque. Niassa. Rocha Conde de Óbidos. Num comboio que veio da noite, silencioso e triste. Do Campo Militar de Santa Margarida. Destino: Lisboa. Com carga para outro destino: Bissau. Primavera de 1969. Numa outra primavera que não chegou a haver.
- Política, meu estúpido!, a primavera política do Marcelo Cetano.

Eras jovem e não vias a luz ao fundo do túnel. Nem muito menos as luzes da cidade-luz. Paris. Perdeste o último comboio para Paris. Com o teu amigo que queria ser pintor. Fernando Nobis. Com paragem, talvez em Atocha, para visitar o Greco, o Velasquez, o Goya, os grandes de Espanha que estão no Prado...
- És doido, ou quê ?! Com a pide à perna, mais os fascistas da guardia civil!

Fazia sol e frio em Viseu. O país profundo. O país que mexe. Gosto sempre de ler os jornais da terra quando estou no hotel. Três estrelas, o hotel. Novo. Bom serviço. Mas faz frio à noite.
- Voyeurismo, pensa ela. A rapariga do bar.

Oito páginas, entre notícias locais e os pequenos anúncios classificados. Duas páginas de anúncios pessoais. "A brasileira do bumbum...A universitária que faz oral... A mulatinha dengosa"... Linguagem de código. A semiótica da solidão. Do sexo triste e solitário.
- Ligue para o meu telemóvel, que a crise bate a todas as portas, sem distinção de género, etnia, cor, condição ou religião.
- A crise também chegou ao teu país profundo, baby.
- Ah!, mas Viseu, como cresceu, meu Deus!
- Não sei se cresceu bem... Não sou de cá.

O Politécnico, o túnel de Viriato. Os colóquios. Os debates. As ideias. Os intelectuais e artistas que vêm de fora. O comércio. O fórum, que há-de vir. A Grande Área Metropolitana de Viseu. Quase 400 mil. O orgulho de se ser do cavaquistão.
- Ruas, estás de granito!, diz o grafito. (Ruas é o presidente da Câmara)

Nada como um bom grafito na terra do Grão Vasco:
- Apreciem o lado empreendedor dos beirões.
- Só falta a Universidade, que mais de 10 mil universitários já cá temos.
- Tiraram-nos a Faculdade de Medicina, os malandros da Covilhã.

Outro lóbi beirão, o da Covilhã. Registo o orgulho dos putos da Associação de Estudantes da Escola Superior de Enfermagem de Viseu que realizam anualmente as suas jornadas de enfermagem. Este ano, na sua 16ª edição. O país mexe. Viseu mexe. O país profundo mexe. Os jovens deste país mexem. Mesmo com capa e batina, vestidos de preto como o corvo do Zé (Cardoso Pires).

16:30h. Passou o corpo pelas brasas. Perdi um pedaço de mundo.
- O Alfa vai a 140, ó puto. Temperatura: 19º interior. 20º exterior, leio do tabelau de bord.
- Mas agora abranda. 129, 101, 74, 52... Está parado.
- Porquê ?

Uma placa com um S, outra com um M. Não percebo nada da sinalética dos comboios. Obras. Modernização da linha. Tenho um pensamento para com os trabalhadores anónimos que constroem as novas linhas dos caminhos de ferro do futuro. Ucranianos ? Africanos ? Imigras ? Clandestinos ?
- Não lhes vejo nem a cara nem o passaporte.
- Podiam estar a trabalhar na estufas de Almeria, o inferno na terra. Mas aí são magrebinos.
- O novo proletariado do Século XXI.
- Desço na Oriente. Mandem alguém da empresa buscar-me.
- Dá o Benfica na SporTV.

E de novo o Alfa em marcha... A paisagem muda. A paisagem industrial da bacia do Tejo. A ocupação selvagem da lezíria. Mataram os campinos e o gado bravo. O branqueamento de dinheiro que vai por essa nova Lisboa Oriental. A luxuriante estação do Oriente. Just in time.

17:06h. Cheguei. Balanço do cliente:
- Pensei que já fosse o TGV. O TGV é que é.
- Não é o TGV, mas por mim não desgostei. De viajar no Alfa Pendular. Turística, claro. De Coimbra B a Lisboa SA. 17 euros, IVA incluído à taxa de 5%. Mais 10% de desconto nos Hotéis Tal & Tal. Tive tempo para (des)arrumar algumas ideias. E o puto tinha razão: na ponta final, o Alfa Pendular dá mesmo os 210.

Um dia ainda vou ter orgulho na CP e na terra onde nasci e onde nunca vi passar os comboios. Os comboios não passam na minha terra. Nem chegam a Viseu. Um abraço aos viriatos. Até para o ano. Voltarei, se me convidarem. De Expresso, pelo IP3 acima. Com regresso de comboio. Se não matarem o comboio que pára em Coimbra B. E não me esquecerei de Atocha. Sobretudo não esquecerei Atocha quando voltar a Coimbra B. De Lisboa SA com amor.

22 março 2004

Portugas que merecem as nossas palmas - VI: Aqueles que nos ajudam a fazer o luto

Cerca de 5000 portugueses, entre os zero e os trinta anos, morrem anualmente, em geral por causas violentas (acidentes de viação, de lazer ou de trabalho; homicídio, suicídio ou outras formas violentas, para além da doença), deixando destroçadas as suas famílias e inconsolados os seus amigos...



Apoiar e ajudar a fazer o luto aos pais, irmãos e amigos dos portugueses que morrem, em idade tão jovem, é justamente a missão de A Nossa Âncora, uma associação de entreajuda, com sede em Sintra, fundada em 1996, com o apoio do psiquiatra Dr. João Senfelt e da equipa de saúde mental comunitária de Sintra, pertencente ao Hospital Psiquiátrico Miguel Bombarda. À frente desta associação é de destacar o papel de Maria Emília Pires, sua fundadora e alma mater, e do poeta, engenheiro informático e doutorado em psicolopia social Abílio Oliveira (autor de Dar e Amar - Quando a Morte Invoca a Vida, 2003). Contactos: Tel. 21 910 57 50 / 21 910 57 55; fax 21 910 59 75.



Merece uma visita a página desta associação na Net, por ser interactiva e nela figurar a poesia em lugar de destaque.



Outra associação do género, mais recente e ainda em fase de instalação, é a Apelo - Apoio à Pessoa em Luta, com sede em Aveiro. Foi fundada e é dirigida por José Eduardo Rebelo, biólogo e mestre em psicologia, profesor da Universidade de Aveiro, autor do livro Desatar o Nó do Luto (Lisboa: Editorial Notícias, no prelo). Contactos: Tel. 234 34 17 09; telemóvel: 91 848 28 38 fax: 234 34 23 67; e-mail: apelo@iol.pt .



Tive há dias conhecimento do excelente trabalho que estas duas associações têm feito no apoio às pessoas em luto. Mais de mil e tal pessoas, a elas ligadas, estão hoje em condições de dar ajuda às famílias em luto, no caso da ocorrência de tragédias como a queda da ponte de Entre-os-Rios ou o ataque terrorista do 11 de Março em Madrid.



Infelizmente o nosso sistema de protecção civil e o próprio Serviço Nacional de Saúde parecem querer ignorar a sua existência e recusar os seus préstimos. Daí que as minhas palmas vão hoje para todos os membros, os técnicos e os dirigentes destas duas associações de grupos de auto-ajuda A Nossa Âncora e Apelo.



Estas palmas são tão mais merecidas quanto este tema (a morte e o luto) continua a ser tabu, tanto na nossa sociedade como nas nossas faculdades de medicina e demais escolas ligadas às formação de profissionais de saúde, para não falar já dos nossos hospitais e demais de serviços de saúde, onde, infelizmente, ainda é vulgar a morte dos nossos entes queridos ser comunicada anonimamente pela telefonista de serviço...



A nível internacional, destaque-se o papel de The Compassionate Friends, "an international self-help, mutual-support organization for bereaved parents, grandparents, and siblings of children who have died from any cause and at any age".

A sua missão é descrita como sendo a de " to assist families in the positive resolution of grief following the death of a child and to provide information to help others be supportive". Só nos EUA os Compassionate Friends têm cerca de 600 núcleos ("chapters").

Portugas que merecem as nossas palmas - VI: Aqueles que nos ajudam a fazer o luto

Cerca de 5000 portugueses, entre os zero e os trinta anos, morrem anualmente, em geral por causas violentas (acidentes de viação, de lazer ou de trabalho; homicídio, suicídio ou outras formas violentas, para além da doença), deixando destroçadas as suas famílias e inconsolados os seus amigos...

Apoiar e ajudar a fazer o luto aos pais, irmãos e amigos dos portugueses que morrem, em idade tão jovem, é justamente a missão de A Nossa Âncora, uma associação de entreajuda, com sede em Sintra, fundada em 1996, com o apoio do psiquiatra Dr. João Senfelt e da equipa de saúde mental comunitária de Sintra, pertencente ao Hospital Psiquiátrico Miguel Bombarda. À frente desta associação é de destacar o papel de Maria Emília Pires, sua fundadora e alma mater, e do poeta, engenheiro informático e doutorado em psicolopia social Abílio Oliveira (autor de Dar e Amar - Quando a Morte Invoca a Vida, 2003). Contactos: Tel. 21 910 57 50 / 21 910 57 55; fax 21 910 59 75.

Merece uma visita a página desta associação na Net, por ser interactiva e nela figurar a poesia em lugar de destaque.

Outra associação do género, mais recente e ainda em fase de instalação, é a Apelo - Apoio à Pessoa em Luta, com sede em Aveiro. Foi fundada e é dirigida por José Eduardo Rebelo, biólogo e mestre em psicologia, profesor da Universidade de Aveiro, autor do livro Desatar o Nó do Luto (Lisboa: Editorial Notícias, no prelo). Contactos: Tel. 234 34 17 09; telemóvel: 91 848 28 38 fax: 234 34 23 67; e-mail: apelo@iol.pt .

Tive há dias conhecimento do excelente trabalho que estas duas associações têm feito no apoio às pessoas em luto. Mais de mil e tal pessoas, a elas ligadas, estão hoje em condições de dar ajuda às famílias em luto, no caso da ocorrência de tragédias como a queda da ponte de Entre-os-Rios ou o ataque terrorista do 11 de Março em Madrid.

Infelizmente o nosso sistema de protecção civil e o próprio Serviço Nacional de Saúde parecem querer ignorar a sua existência e recusar os seus préstimos. Daí que as minhas palmas vão hoje para todos os membros, os técnicos e os dirigentes destas duas associações de grupos de auto-ajuda A Nossa Âncora e Apelo.

Estas palmas são tão mais merecidas quanto este tema (a morte e o luto) continua a ser tabu, tanto na nossa sociedade como nas nossas faculdades de medicina e demais escolas ligadas às formação de profissionais de saúde, para não falar já dos nossos hospitais e demais de serviços de saúde, onde, infelizmente, ainda é vulgar a morte dos nossos entes queridos ser comunicada anonimamente pela telefonista de serviço...

A nível internacional, destaque-se o papel de The Compassionate Friends, "an international self-help, mutual-support organization for bereaved parents, grandparents, and siblings of children who have died from any cause and at any age".
A sua missão é descrita como sendo a de " to assist families in the positive resolution of grief following the death of a child and to provide information to help others be supportive". Só nos EUA os Compassionate Friends têm cerca de 600 núcleos ("chapters").