18 novembro 2005

Guiné 63/74 - CCXCIX: É bom! (A. Marques Lopes)

Post nº 299 (CCXCIX)


"Sei que, infelizmente, também mataram [depois da independência] alguns dos meus jagudis e até o meu guia Braima..." (A. Marques Loes, e-mail de 11 de Novembro de 2005).

O Alf Mil Lopes, da CCAÇ 3, em Barro, em 1968, com o seu guarda-costa, balanta. O seu grupo de combate era constituído pelos Jagudis...

"O meu guarda-costas chamava-se Bletche-Intete. Grande amigo. Um dia deu-me um grande empurrão durante um tiroteio... é que eu tinha-me virado de costas para o local de onde o IN estava a disparar (fiquei mal dos ouvidos desde que fui ferido em Geba)".

© A. Marques Lopes (2005)


Excerto de um aerograma, datado de Geba, 7 de Maio de 1967.

Remetente: Alf Mil António Marques Lopes, SPM 04228.



© A. Marques Lopes (2005)




Execerto de aerograma com data de Barro, 4 de Junho de 1968.



© A. Marques Lopes (2005)




Caros camaradas:

Só quero, desta maneira, manifestar a minha muito grande satisfação pelo advento a esta tertúlia de mais (ex-)camaradas combatentes na guerra da Guiné [os mais recentes, três comandos Virgínio Briote, A. Mesdes e Mário Dias].

Valorizo, sobretudo, a forma calma e serena como nos contam as suas experiências. Desta forma é que contribuem também para a calma e a serenidade de cada um de nós. Ajudam-nos a assumir a nossa história e as nossas vivências no sentido de que foi uma parte (marcante, claro) da nossa vida, que continua no nosso íntimo (não podia ser de outra maneira), mas que a estamos a ver com os olhos calmos da distância e ... da idade.

Não há fantasmas, foi simplesmente a vida que tivemos de ter, muito contra vontade, com certeza, mas que tivemos de enfrentar. Apesar das mortes e dos padecimentos creio que todos estamos a ver (e eu vejo isso por mim e pelos vários depoimentos) que não foi o IN que nos fez mal, a tal entidade que eu já vos disse que foi um tapa-olhos para não tentarmos ver, mas sim as contingências que nos obrigaram a lutar contra ele.

A não existência de rancores fundos para com aqueles que tivemos de enfrentar, apenas só o relato de situações que cada um viveu, a empatia solidária e sentimental por aquele povo da Guiné que deixamos transparecer no que dizemos, é sinal de que estamos bem connosco próprios, apesar daquilo que vimos e daquilo que passámos. É bom.

Os meus agradecimentos, por isso, a esta iniciativa do Luís e a todos aqueles que lhe têm dado corpo.

Um abraço amigo para todos do

A. Marques Lopes

(Ex-Alf Mil, da CART 1690, em Geba; e da CCAÇ 3, em Barro, Guiné, 1967/68; hoje, Coronel, DFA, na reforma).

Guiné 63/74 - CCXCIX: É bom! (A. Marques Lopes)

Post nº 299 (CCXCIX)


"Sei que, infelizmente, também mataram [depois da independência] alguns dos meus jagudis e até o meu guia Braima..." (A. Marques Loes, e-mail de 11 de Novembro de 2005).

O Alf Mil Lopes, da CCAÇ 3, em Barro, em 1968, com o seu guarda-costa, balanta. O seu grupo de combate era constituído pelos Jagudis...

"O meu guarda-costas chamava-se Bletche-Intete. Grande amigo. Um dia deu-me um grande empurrão durante um tiroteio... é que eu tinha-me virado de costas para o local de onde o IN estava a disparar (fiquei mal dos ouvidos desde que fui ferido em Geba)".

© A. Marques Lopes (2005)


Excerto de um aerograma, datado de Geba, 7 de Maio de 1967.

Remetente: Alf Mil António Marques Lopes, SPM 04228.



© A. Marques Lopes (2005)




Execerto de aerograma com data de Barro, 4 de Junho de 1968.



© A. Marques Lopes (2005)




Caros camaradas:

Só quero, desta maneira, manifestar a minha muito grande satisfação pelo advento a esta tertúlia de mais (ex-)camaradas combatentes na guerra da Guiné [os mais recentes, três comandos Virgínio Briote, A. Mesdes e Mário Dias].

Valorizo, sobretudo, a forma calma e serena como nos contam as suas experiências. Desta forma é que contribuem também para a calma e a serenidade de cada um de nós. Ajudam-nos a assumir a nossa história e as nossas vivências no sentido de que foi uma parte (marcante, claro) da nossa vida, que continua no nosso íntimo (não podia ser de outra maneira), mas que a estamos a ver com os olhos calmos da distância e ... da idade.

Não há fantasmas, foi simplesmente a vida que tivemos de ter, muito contra vontade, com certeza, mas que tivemos de enfrentar. Apesar das mortes e dos padecimentos creio que todos estamos a ver (e eu vejo isso por mim e pelos vários depoimentos) que não foi o IN que nos fez mal, a tal entidade que eu já vos disse que foi um tapa-olhos para não tentarmos ver, mas sim as contingências que nos obrigaram a lutar contra ele.

A não existência de rancores fundos para com aqueles que tivemos de enfrentar, apenas só o relato de situações que cada um viveu, a empatia solidária e sentimental por aquele povo da Guiné que deixamos transparecer no que dizemos, é sinal de que estamos bem connosco próprios, apesar daquilo que vimos e daquilo que passámos. É bom.

Os meus agradecimentos, por isso, a esta iniciativa do Luís e a todos aqueles que lhe têm dado corpo.

Um abraço amigo para todos do

A. Marques Lopes

(Ex-Alf Mil, da CART 1690, em Geba; e da CCAÇ 3, em Barro, Guiné, 1967/68; hoje, Coronel, DFA, na reforma).

Guiné 63/74 -CCXCVIII: Projecto Guileje (5): contra o demónio étnico

1. Há tempos escrevi ao Carlos Scharwz, da AD - Acção para o Desenvolvimento, transmitindo-lhe algumas reticências e dúvidas (legítimas) dos nossos amigos e camaradas de tertúlia (Sousa de Castro, Humberto Reis, David Guimarães, entre outros), relativamente ao projecto Guileje. Eis as questões que eu lhe pus:

"Era bom dares mais detalhes sobre um dos subprojectos, a reconstrução do quartel... Alguns camaradas torceram o nariz: será viável (do ponto de vista técnico, ambiental e financeiro) reconstruir o aquartelamento ? tens contactos com a antiga companhia acçoreana que lá estava em Maio de 1973 ? que valor simbólico tem hoje Guileje para os guineenses ? não haverá outras prioridades ? Enfim, são perguntas legítimas"...

2. Responde-nos agora o Carlos Scharwz, a quem agradeço:

Luís,

Vou procurar responder às questões levantadas sobre a pertinência da reconstrução do quartel de Guiledje.

(i) Viabilidade técnica, financeira e ambiental:

Quando se fala em recuperar o quartel, estamos a referir-nos a utilizar as antigas instalações para actividades viradas para o futuro e não como simples depositários de memórias e recordações.

Por exemplo:

- as messes serão usadas como salas de aula do futuro CENAR (Centro de Aprendizagem Rural), onde os jovens adquirirão conhecimentos profissionais (electricidade, carpintaria, pedreiros, ferreiros, etc.) ou de artesanato (construção de camas, armários e mesas em bambú, tara e mampufa; recuperação e produção de máscars e esculturas nalús; etc.);

- a secretaria será a sede do Parque Transfronteiriço de Cantanhez;

- as casas da população será o local onde serão construídos os futuros bangalows para acolher as pessoas que visitem e turistas;

- a cantina será o museu; e assim sucessivamente.

É importante que se diga que não vamos contratar nenhuma empresa para a reconstrução do quartel. Ela será gradualmente feita utilizando o apoio comunitário e pagando a jovens carpinteiros e pedreiros locais. Os custos serão, por isso, muito baixos e evita-se ter infraestruturas luxuosas. Não se pense que se trata de retórica nossa, pois ao longo dos 14 anos a AD tem construído centros de saúde, escolas, centros culturais, casas de ambiente e cultura, etc., sempre com esta metodologia. Com resultados muito bons.

Ambientalmente a reconstrução preservará integralmente todas as árvores que existem e que dão um clima e tranquilidade muito agradáveis. A procura de um arquitecto paisagista é já o reflexo desta nossa opção.

(ii) Valor simbólico para os guineenses:

Para os mais velhos e os de meia idade, Guileje continua a ser um marco decisivo para a conquista da independeÊncia da Guiné-Bissau e o voltar da última página da luta. Foi o momento determinante que decidiu a guerra.

Poucos restam dos que participaram nesse acontecimento. É uma responsabilidade actual e urgente não os deixar morrer sem que nos transmitam o seu testemunho.
Para a concretização da iniciativa Guileje, fizemos apelo a várias pessoas dentro e fora da AD. A resposta deixou-nos absolutamente surpresos pelo entusiasmo e entrega.

(iii) Não haverá outras prioridades?

Claro que, se perguntarmos à população local, eles enumerarão as suas actuais prioridades: saúde, escola, água, meios de transporte.

Para a AD também estas são prioridades suas, não só claramente expressas nos seus estatutos, como na prática dos seus 14 anos e também no projecto que envolve a componente Guileje e que compreende o apoio ao Centro Materno-Infantil de Iemberém (análises clínicas, assistência às mulheres ante e pós-parto, campanhas de vacinação, etc.), a construção de escolas primárias (nos últimos 2 anos construímos 11 escolas, todas elas com latrinas e poços de água).

No entanto, para a AD, são tão importantes estas prioridades como a da sua sustentabilidade futura. Nenhuma escola ou centro de saúde funciona quando se instala uma lógica tribal, tanto a nível nacional como local. O demónio étnico que agora conquista terreno na Guiné-Bissau (e não só), leva a que se priorize o combate a esta lógica, sob pena das tais outras iniciativas prioritárias morrerem logo à partida.

Para a AD a recuperação da memória da luta de libertação, que é pertença de todos, independentemente das respectivas etnias, pode desempenhar um papel importante na coesão nacional e na procura de consensos nacionais.

Por outro lado, há que aliar o passado ao sentimento de progresso futuro, para que a identificação e coesão nacional não tenha um cunho passadista e saudosista, mas seja dinâmica e aglutinadora. Incrementar o ensino profissional onde ele nunca foi feito e onde os jovens estão entregues a si próprios e a repetir exclusivamente o percurso dos seus pais, ou então a emigrar para o estrangeiro ou centros urbanos, é uma iniciativa prioritária.

O ecoturismo vai permitir às associações locais de jovens e mulheres, beneficiarem financeiramente através de guias turísticos locais, venda de artesanato, esculturas, restauração e alojamento. O ambiente permitirá a defesa da biodiversidade, especialmente da fauna selvagem e da flora que é utilizada para medicamentos naturais.

Daí que a recuperação do quartel (que nunca será um quartel, mas um polo de desenvolvimento) se justifique plenamente.

Basta ver o entusiasmo que a população local está a emprestar às primeiras iniciativas já em curso (limpeza e demarcação da zona geográfica do quartel).

Sei que, quando se escreve, dificilmente se consegue explicar bem o que uma conversa ajudaria a esclarecer melhor.

Daí que insista na minha disponibilidade em encontrar-me, quando aí for em Fevereiro de 2006, com as pessoas interessadas nesta iniciativa para batermos um papo e tirarmos as dúvidas restantes.

abraços
Carlos

Guiné 63/74 -CCXCVIII: Projecto Guileje (5): contra o demónio étnico

1. Há tempos escrevi ao Carlos Scharwz, da AD - Acção para o Desenvolvimento, transmitindo-lhe algumas reticências e dúvidas (legítimas) dos nossos amigos e camaradas de tertúlia (Sousa de Castro, Humberto Reis, David Guimarães, entre outros), relativamente ao projecto Guileje. Eis as questões que eu lhe pus:

"Era bom dares mais detalhes sobre um dos subprojectos, a reconstrução do quartel... Alguns camaradas torceram o nariz: será viável (do ponto de vista técnico, ambiental e financeiro) reconstruir o aquartelamento ? tens contactos com a antiga companhia acçoreana que lá estava em Maio de 1973 ? que valor simbólico tem hoje Guileje para os guineenses ? não haverá outras prioridades ? Enfim, são perguntas legítimas"...

2. Responde-nos agora o Carlos Scharwz, a quem agradeço:

Luís,

Vou procurar responder às questões levantadas sobre a pertinência da reconstrução do quartel de Guiledje.

(i) Viabilidade técnica, financeira e ambiental:

Quando se fala em recuperar o quartel, estamos a referir-nos a utilizar as antigas instalações para actividades viradas para o futuro e não como simples depositários de memórias e recordações.

Por exemplo:

- as messes serão usadas como salas de aula do futuro CENAR (Centro de Aprendizagem Rural), onde os jovens adquirirão conhecimentos profissionais (electricidade, carpintaria, pedreiros, ferreiros, etc.) ou de artesanato (construção de camas, armários e mesas em bambú, tara e mampufa; recuperação e produção de máscars e esculturas nalús; etc.);

- a secretaria será a sede do Parque Transfronteiriço de Cantanhez;

- as casas da população será o local onde serão construídos os futuros bangalows para acolher as pessoas que visitem e turistas;

- a cantina será o museu; e assim sucessivamente.

É importante que se diga que não vamos contratar nenhuma empresa para a reconstrução do quartel. Ela será gradualmente feita utilizando o apoio comunitário e pagando a jovens carpinteiros e pedreiros locais. Os custos serão, por isso, muito baixos e evita-se ter infraestruturas luxuosas. Não se pense que se trata de retórica nossa, pois ao longo dos 14 anos a AD tem construído centros de saúde, escolas, centros culturais, casas de ambiente e cultura, etc., sempre com esta metodologia. Com resultados muito bons.

Ambientalmente a reconstrução preservará integralmente todas as árvores que existem e que dão um clima e tranquilidade muito agradáveis. A procura de um arquitecto paisagista é já o reflexo desta nossa opção.

(ii) Valor simbólico para os guineenses:

Para os mais velhos e os de meia idade, Guileje continua a ser um marco decisivo para a conquista da independeÊncia da Guiné-Bissau e o voltar da última página da luta. Foi o momento determinante que decidiu a guerra.

Poucos restam dos que participaram nesse acontecimento. É uma responsabilidade actual e urgente não os deixar morrer sem que nos transmitam o seu testemunho.
Para a concretização da iniciativa Guileje, fizemos apelo a várias pessoas dentro e fora da AD. A resposta deixou-nos absolutamente surpresos pelo entusiasmo e entrega.

(iii) Não haverá outras prioridades?

Claro que, se perguntarmos à população local, eles enumerarão as suas actuais prioridades: saúde, escola, água, meios de transporte.

Para a AD também estas são prioridades suas, não só claramente expressas nos seus estatutos, como na prática dos seus 14 anos e também no projecto que envolve a componente Guileje e que compreende o apoio ao Centro Materno-Infantil de Iemberém (análises clínicas, assistência às mulheres ante e pós-parto, campanhas de vacinação, etc.), a construção de escolas primárias (nos últimos 2 anos construímos 11 escolas, todas elas com latrinas e poços de água).

No entanto, para a AD, são tão importantes estas prioridades como a da sua sustentabilidade futura. Nenhuma escola ou centro de saúde funciona quando se instala uma lógica tribal, tanto a nível nacional como local. O demónio étnico que agora conquista terreno na Guiné-Bissau (e não só), leva a que se priorize o combate a esta lógica, sob pena das tais outras iniciativas prioritárias morrerem logo à partida.

Para a AD a recuperação da memória da luta de libertação, que é pertença de todos, independentemente das respectivas etnias, pode desempenhar um papel importante na coesão nacional e na procura de consensos nacionais.

Por outro lado, há que aliar o passado ao sentimento de progresso futuro, para que a identificação e coesão nacional não tenha um cunho passadista e saudosista, mas seja dinâmica e aglutinadora. Incrementar o ensino profissional onde ele nunca foi feito e onde os jovens estão entregues a si próprios e a repetir exclusivamente o percurso dos seus pais, ou então a emigrar para o estrangeiro ou centros urbanos, é uma iniciativa prioritária.

O ecoturismo vai permitir às associações locais de jovens e mulheres, beneficiarem financeiramente através de guias turísticos locais, venda de artesanato, esculturas, restauração e alojamento. O ambiente permitirá a defesa da biodiversidade, especialmente da fauna selvagem e da flora que é utilizada para medicamentos naturais.

Daí que a recuperação do quartel (que nunca será um quartel, mas um polo de desenvolvimento) se justifique plenamente.

Basta ver o entusiasmo que a população local está a emprestar às primeiras iniciativas já em curso (limpeza e demarcação da zona geográfica do quartel).

Sei que, quando se escreve, dificilmente se consegue explicar bem o que uma conversa ajudaria a esclarecer melhor.

Daí que insista na minha disponibilidade em encontrar-me, quando aí for em Fevereiro de 2006, com as pessoas interessadas nesta iniciativa para batermos um papo e tirarmos as dúvidas restantes.

abraços
Carlos

17 novembro 2005

Guiné 63/74 - CCXCVII: Mário Dias, o nosso homem da Ilha do Como

Aqui estou eu em 1965 (pose à cinéfilo, como se dizia na altura). © Mário Dias (2005)


Texto do Mário Dias, o nosso novo tertuliano:

Caro Luis:

Obrigado pela tua receptividade e simpatia. Na verdade, o Briote já várias vezes me tinha incentivado a juntar à tertúlia mas eu, pobre de mim, por ser um autêntico nabo nas manobras dos computadores - limito-me a martelar no Word e pouco mais - não me quis aventurar a tanto.

Espero por isso que, ao fazê-lo, me sejam relevadas as nabices de ordem técnica que possa eventualmente cometer e conto com a ajuda de todos.

Então, lá vai:

1 - Em anexo seguem as fotos do ontem e do hoje.

2 - Eu resido em Alhos Vedros e tenho uma página na internet sobre Música Coral > Partituras que, embora não relacionada com os temas do foranada poderá ser visitada por quem desejar. Trata-se de uma página onde disponibilizo partituras de música coral, actividade há muito da minha especial predileção, e que agora preenche grande parte dos meus ócios de reformado.

3 - Quanto ao termo guinéus [respondendo a uma pergunta posta poelo Luís Graça], ele foi introduzido pelo General Spínola. Até essa altura, eram referidos como guineenses nos meios mais evoluídos (portugueses e africanos assimilados). Na generalidade da população que falava crioulo, o adjectivo que qualifica o natural da Guiné, não existia. Diziam francês, português, inglês, etc., mas quanto a eles diziam simplesmente fidjo de Guiné (filho da Guiné).

4 - A minha vivência na guerra também é longa e conto, a seu tempo, ir narrando alguns episódio de interesse. De momento, estou a colaborar com alguns esclarecimentos na elaboração do História dos Comandos no âmbito da Direcção de Documentação e História Militar que sobre o assunto vai publicar um livro.

5 - Sem qualquer intento de crítica destrutiva, irei colaborar no que se refere à interpretação de alguns termos do crioulo e que os nossos militares deturparam completamente ao longo dos tempos. Nada de grave uma vez que as palavras significam aquilo que quem as profere entenda ser o seu sentido.

Por exemplo: é comum os militares utilizarem tabanca como casa, mas não é. Tabanca significa um aglomerado de casas - povoação; aldeia. As casas típicas da Guiné chamam-se em crioulo palhota ou até mesmo casa. Tomam a designação de morança quando duas ou mais palhotas do mesmo agregado familiar estão agrupadas e delimitadas por uma cerca que vulgarmente é uma sebe de cajueiros,de purgueira ou paliçadas de entrançado de verga a que chamam quirintim.

Um grande abraço para todos

Mário Dias

© Mário Dias (2005) Cá estou hoje. Instantâneo obtido em 24 de Setembro de 2005 durante a 1ª reunião de convívio (ao fim de 40 anos) dos Grupos de Comandos da Guiné (64/66). Ao ver as diferenças, veio-me à memória Guerra Junqueiro no seu poema Regresso ao lar: "...olha o teu menino, como está mudado"...

Guiné 63/74 - CCXCVII: Mário Dias, o nosso homem da Ilha do Como

Aqui estou eu em 1965 (pose à cinéfilo, como se dizia na altura). © Mário Dias (2005)


Texto do Mário Dias, o nosso novo tertuliano:

Caro Luis:

Obrigado pela tua receptividade e simpatia. Na verdade, o Briote já várias vezes me tinha incentivado a juntar à tertúlia mas eu, pobre de mim, por ser um autêntico nabo nas manobras dos computadores - limito-me a martelar no Word e pouco mais - não me quis aventurar a tanto.

Espero por isso que, ao fazê-lo, me sejam relevadas as nabices de ordem técnica que possa eventualmente cometer e conto com a ajuda de todos.

Então, lá vai:

1 - Em anexo seguem as fotos do ontem e do hoje.

2 - Eu resido em Alhos Vedros e tenho uma página na internet sobre Música Coral > Partituras que, embora não relacionada com os temas do foranada poderá ser visitada por quem desejar. Trata-se de uma página onde disponibilizo partituras de música coral, actividade há muito da minha especial predileção, e que agora preenche grande parte dos meus ócios de reformado.

3 - Quanto ao termo guinéus [respondendo a uma pergunta posta poelo Luís Graça], ele foi introduzido pelo General Spínola. Até essa altura, eram referidos como guineenses nos meios mais evoluídos (portugueses e africanos assimilados). Na generalidade da população que falava crioulo, o adjectivo que qualifica o natural da Guiné, não existia. Diziam francês, português, inglês, etc., mas quanto a eles diziam simplesmente fidjo de Guiné (filho da Guiné).

4 - A minha vivência na guerra também é longa e conto, a seu tempo, ir narrando alguns episódio de interesse. De momento, estou a colaborar com alguns esclarecimentos na elaboração do História dos Comandos no âmbito da Direcção de Documentação e História Militar que sobre o assunto vai publicar um livro.

5 - Sem qualquer intento de crítica destrutiva, irei colaborar no que se refere à interpretação de alguns termos do crioulo e que os nossos militares deturparam completamente ao longo dos tempos. Nada de grave uma vez que as palavras significam aquilo que quem as profere entenda ser o seu sentido.

Por exemplo: é comum os militares utilizarem tabanca como casa, mas não é. Tabanca significa um aglomerado de casas - povoação; aldeia. As casas típicas da Guiné chamam-se em crioulo palhota ou até mesmo casa. Tomam a designação de morança quando duas ou mais palhotas do mesmo agregado familiar estão agrupadas e delimitadas por uma cerca que vulgarmente é uma sebe de cajueiros,de purgueira ou paliçadas de entrançado de verga a que chamam quirintim.

Um grande abraço para todos

Mário Dias

© Mário Dias (2005) Cá estou hoje. Instantâneo obtido em 24 de Setembro de 2005 durante a 1ª reunião de convívio (ao fim de 40 anos) dos Grupos de Comandos da Guiné (64/66). Ao ver as diferenças, veio-me à memória Guerra Junqueiro no seu poema Regresso ao lar: "...olha o teu menino, como está mudado"...

Guiné 63/74 - CCXXVI: Antologia (25): Depoimento sobre a batalha da Ilha do Como

Fonte: Extractos de Diário do Alentejo, de 23 de Abril de 2004. Com a devida vénia.


Crónica do soldado 328, por Alberto Franco


O alentejano Joaquim Ganhão foi um dos milhares de portugueses que lutaram em África, nos anos da Guerra Colonial. Nas dificuldades e sustos que viveu em terras da Guiné – participou na célebre Operação Tridente, em 1964 – certamente muitos outros ex-militares se reconhecem. Quando passam 30 anos sobre o 25 de Abril, é oportuno recordar a longa guerra, unanimemente considerada uma das principais causas da revolução.

Quando o Niassa zarpou de Lisboa, em 17 de Julho de 1963, não se pode dizer que os rapazes do Batalhão de Cavalaria 490 estivessem inquietos. Afinal, iam para Moçambique, onde a guerra que lavrava noutras colónias portuguesas não tinha ainda chegado. Mas a meio da viagem o programa sofreu alterações. O agravamento da situação militar na Guiné obriga ao reforço do contingente naquele território. O Niassa recebe ordem de rumar a Bissau, e aí desembarcar as tropas que transportava.

- Foi um balde de água fria para todos nós-, recorda Joaquim Moita Ganhão, 61 anos, nado e criado em Moura, um dos muitos alentejanos que integravam o Batalhão Quatro Noventa. A guerra na Guiné começara há escassos meses, mas o território gozava já de má reputação entre os militares portugueses. À ameaça que a guerrilha do PAIGC (Partido Africano da Independência da Guiné e Cabo Verde) representava, combinava-se com uma geografia inóspita e um clima duríssimo, quente e húmido, favorável ao paludismo e a outras doenças tropicais. Quem esperava passar dois anos em Moçambique, no sossego de Vila Pery, e se vê inesperadamente atirado para a Guiné, não podia ter outra reacção que não fosse o alarme. Mesmo que se tivesse 20 anos, muito sangue na guelra e se pertencesse a um batalhão cujo lema era Sempre em Frente.

Em casa de Joaquim Ganhão eram nove irmãos, que o curto salário do pai, caiador de profissão, não chegava para sustentar:
- Eu ficava em casa a cuidar dos meus irmãos mais novos, enquanto a minha mãe trabalhava a dias. Essa a razão porque só entrei para a escola com nove anos-. Aos 12, Joaquim perde o pai. Com o amparo reduzido, vê-se forçado a trabalhar antes do tempo. Aprende o ofício de pedreiro, que exerce até aos 20 anos, idade em que é mobilizado para a tropa.

O soldado 328 estaciona três meses em Beja e dali segue para Estremoz, onde o Batalhão 490 está a ser formado. No Quatro Noventa, os alentejanos estavam em maioria:
- Havia gente de Elvas, Estremoz, Messejana, Aljustrel, Salvada. Só os cozinheiros eram do Norte…- , assinala Joaquim Ganhão - A instrução em Estremoz foi dura. Preparam-nos para combater, segundo os modelos da época.

Vendo os conflitos que deflagravam nos territórios coloniais de outros países europeus, o exército português tinha-se preparado para enfrentar o fenómeno a que uns chamavam guerra subversiva e outros guerra de libertação. Oficiais portugueses estagiaram junto do exército francês na Argélia e especialistas estrangeiros ministraram em Portugal para acções de formação. Mas uma coisa era a guerra teórica, outra a guerrilha nos pântanos da Guiné, as bolanhas, nas matas de Angola e Moçambique. Pela sua parte, Joaquim Ganhão fez pela vida e frequentou em Estremoz o curso de cabos:
- Fui o segundo melhor classificado. Quando embarquei para África, em Julho de 1963, já era 1º cabo da minha Companhia, a 489.


Baptismo de fogo no Oio-Morés


Até àquela data, o pedreiro de Moura não tinha posto os pés num navio, e em matéria de cursos de água só conhecia o mansos rios Ardila e Guadiana. Mesmo assim não se deu mal na jornada a bordo do Niassa:
- Tive a sorte de não enjoar, ao contrário de muitos companheiros”-. Os seis dias de viagem passou-os a dormitar nas baleeiras do Niassa, a espantar as saudades com cartas para a família e em camaradagem com o seu amigo de infância Henrique Pinto, outro militar mourense em trânsito para a Guiné.

Chegados a Bissau em plena estação das chuvas, são alojados no quartel da Amura, um antigo entreposto de escravos. O clima doentio surpreende-os desde logo:
- Era diferente de tudo o que conhecíamos. Com a humidade, a roupa colava-se-nos ao corpo. Só estávamos bem debaixo do chuveiro. De vez em quando, caíam trovoadas que metiam medo -. Outro motivo de espanto é a pobreza do território. Com poucos ou nenhuns recursos naturais, sem núcleos urbanos desenvolvidos, a Guiné era a peça menos valiosa do império português, e como tal a mais desprezada por Lisboa. Ganhão sublinha “a miséria das populações, as filas de mulheres e crianças com latas, à espera que lhes dessem alguma comida”.

A guerra aberta na Guiné principiou em 23 de Janeiro de 1963, com o ataque ao quartel de Tite, embora desde 1961 se registassem actos de sabotagem levados a cabo pelo Paigc de Amílcar Cabral. Bem armada, apoiada por países fronteiriços como a Guiné-Conacri e o Senegal, a guerrilha alastra pelo território guineense como um regueiro de pólvora. A companhia do 1º cabo Joaquim Ganhão recebe o baptismo de fogo no Norte da colónia:
- Fomos render uma companhia que se encontrava em Mansabá. Aí sofremos uma emboscada nocturna, na zona do Oio-Morés, que por ser muito pantanosa e de acesso difícil era um bom refúgio para os guerrilheiros.

Joaquim Ganhão lembra-se que a noite estava escura e a mata era cerrada:
- Ia à frente da minha companhia, quando senti o encosto de uma arma. O guia deu o alarme, eu comecei a disparar no escuro e a correr pelo capim, como um doido. Quando as coisas acalmaram e a companhia se reorganizou, deparo com um guerrilheiro a apontar-me uma pistola-metralhadora. Tentou atirar, mas, felizmente para mim, a arma estava encravada -. O soldado 328 captura o homem, apreende-lhe a metralhadora e três carregadores de munições.
- O guerrilheiro chamava-se Albino Sampa. Mais tarde cheguei a ir visitá-lo à cadeia, em Bissau -. O melhor desta aventura acabou por ser o prémio de um mês de licença na Metrópole:
- Quando me deram a notícia, ia ficando maluco de alegria. O pior foi que a minha família, quando soube que eu estava em Lisboa, pensou que estava todo partido... Só descansaram quando a minha irmã me foi buscar a Estremoz e viram que estava bem de saúde.

Tridente da morte

Mas a emboscada no Oio-Morés foi uma brincadeira, comparada com o que veio a seguir. O Batalhão de Cavalaria 490, e com ele Joaquim Ganhão, foi um dos participantes na operação Tridente, uma das mais aparatosas ofensivas portuguesas na Guerra Colonial. Denominada Tridente porque envolvia a marinha, o exército e a força aérea, a operação visava ocupar as ilhas do Como, Caiar e Catunco, no Sul da Guiné, onde os combatentes do PAIGC dispunham de importantes bases. Ali se movimentava o astuto comandante Nino Vieira, formado nas técnicas da guerrilha pela Academia Militar de Pequim, que teria no Como cerca de 300 homens, incluindo militares da Guiné-Conacri. Um dos objectivos da missão consistia em conquistar o apoio da população das ilhas, que os guerrilheiros controlavam:
- Em todas as tabancas (aldeias tradicionais) do Como, se viam retratos de Amílcar Cabral-, observa Joaquim Ganhão.

A operação Tridente iniciou-se em 15 de Janeiro de 1964. O 1º cabo Ganhão só soube o que o esperava quando se viu a bordo de uma lancha LDM, dos fuzileiros. Através das bolanhas, ladeadas por uma vegetação densa e asfixiante, o tarrafo, a Companhia 489, comandada pelo capitão Pato Anselmo, avançou até à ilha de Catunco. Ganhão permaneceu ali mais de dois meses, “entrincheirado num buraco, juntamente com dois companheiros, agarrados às G3, com as balas do inimigo a passarem-nos rente”. Quem disparava?
- Nenhum de nós sabia. Os tiros vinham da mata, onde os guerrilheiros estavam bem escondidos -. Por isso, sair do buraco só em último caso:
- Tínhamos o exemplo de um companheiro que se levantou para beber uma pinga de água e foi atingido por um tiro no queixo.

Quando se iniciou a segunda fase da operação, foi necessário deixar os abrigos e patrulhar as ilhas:
- Saíamos aos ziguezagues, em grupos de três. Depois deitávamo-nos ao chão e saíam outros três. E isto sempre aos tiros. Foi numa destas acções que Joaquim Ganhão perdeu o seu amigo Henrique Pinto, o primeiro militar de Moura a tombar na guerra:
- O Henrique, que pertencia à Companhia 487, seguia numa patrulha, formada em leque. Ele, que estava numa das pontas, avançou demais e foi capturado, às três da tarde do dia 24 de Janeiro -. Ganhão e outros tinham ido buscar mantimentos à base logística da operação, instalada numa praia. Aí viu chegar um helicóptero com o cadáver de Henrique, resgatado pelos fuzileiros. O choque foi terrível. Quarenta anos passados, ainda hoje a voz de Ganhão se embarga quando fala do caso:
- Podia ter sido eu. Tive sorte, não calhou.

Os aviões F-86 e T-6 flagelavam as matas do Como com napalm, as granadas explodiam a toda a hora, mas os resultados práticos da operação tardavam em ver-se. A única evidência era o sofrimento dos militares portugueses:
- Bebia-se qualquer água e a alimentação resumia-se a rações de combate-, conta o 1º cabo Ganhão - Comemos carne fresca uma única vez, quando os fuzileiros abateram algumas vacas. Não admira que durante a operação Tridente 193 militares tenham sido retirados do teatro de guerra, por motivo de doença.

Setenta e um dias depois, a missão é considerada finda. As estatísticas apontavam 76 guerrilheiros mortos, 15 feridos e nove detidos. Do lado português contaram-se nove mortes e ferimentos em 47 soldados. Foram disparadas 124 mil balas, 1200 granadas de artilharia e 550 granadas de morteiro. Os militares aliviaram a tensão consumindo 15 500 garrafas de cerveja e fumando 10 100 maços de tabaco. Números que não maquilham o insucesso da operação. A última palavra pertenceu à guerrilha, que continuou a servir-se do Como, só abandonando a região quando os seus interesses se transferiram para outros locais.


Cruz de Guerra no 10 de Junho


Depois de intervir na Tridente, a Companhia 489 é destacada para o Norte:
- Fomos para junto da fronteira com o Senegal, com o objectivo de dificultar as entradas e saídas dos guerrilheiros e das forças que os apoiavam.

Joaquim Ganhão andou por Contima, Farim, Bula, Bafatá, Mansoa. Porém, antes de pensar em fiscalizar o que quer que fosse, era preciso construir as bases necessárias ao estacionamento de tropas. Na Guiné, como na generalidade das vastas colónias portuguesas, faltavam aquartelamentos, vias de comunicação e demais infra-estruturas. Por outro lado, no caso específico do Norte da Guiné, tornava-se necessário atrair e organizar a população que tinha cruzado a fronteira do Senegal, fugindo à guerra. Os soldados da 489 ajudavam à reconstrução de tabancas, construíam abrigos, “à mão, sem a ajuda de quaisquer máquinas”, de valas em redor dos quartéis e outras infra-estruturas defensivas, muitas vezes debaixo de fogo. Quando empunhavam a G3, vigiavam a fronteira e montavam as suas emboscadas. A tropa “saía por volta da meia-noite. Então víamo-los passar, a pé, outras vezes de bicicleta”. Nessas alturas, “a fuzilaria era tanta que nem os raios das bicicletas se aproveitavam.”

As normas da altura determinavam que o tempo de serviço militar era de 24 meses. Todavia, muitos militares excediam, contra vontade, este período. Às vezes morriam em África, quando, segundo a lei, já deviam estar em Portugal. Joaquim Ganhão lembra um episódio ocorrido em Bula, com uma companhia de caçadores que já tinha atingido os 27 meses de comissão:
- Por sermos mais novos, a nossa companhia seguia atrás deles, numa deslocação pelo mato. De repente, caem numa emboscada. Recordo-me que os guerrilheiros tinham cortiços de abelhas em cima de árvores; cortavam as cordas e os cortiços caíam em cima dos soldados. Com este truque e com o tiroteio, morreram dois ou três caçadores. Que já não deviam estar na Guiné, porque já tinham cumprido o seu tempo.

Ganhão teve mais sorte. Regressou a Moura em Setembro de 1965, são e salvo. Um ano depois, já casado, recebeu em Évora, nas cerimónias do 10 de Junho, a Cruz de Guerra de terceira classe, pelo seu desempenho na Guiné. Quarenta anos depois, Joaquim Ganhão, mestre de construção civil, pai de duas filhas, olha para trás com serenidade:
- É bom que se diga que fui para a Guiné obrigado. Tínhamos que livrar o corpo, para não morrer. Foi o que eu fiz. Estimo muito a Cruz de Guerra, mas lamento que além da medalha ninguém me tenha compensado pelos dois anos de vida que perdi.


A Guerra Colonial e o 25 de Abril

O desgaste que a guerra provocou nas forças armadas portuguesas e a ausência de soluções pacíficas para a questão colonial, contam-se entre as principais motivações do 25 de Abril. Treze anos de confrontos exigiram o destacamento de 70 mil homens para Angola, 42 mil para a Guiné e 57 mil para Moçambique. Segundo a Resenha Histórico-Militar das Campanhas de de África (1961-1974), registou-se um total de 8 290 mortos, nas três frentes de batalha. A este número há a juntar 112 000 feridos, dos quais 30 mil terão sofrido deficiências para toda a vida, e perto de 100 mil vítimas do stresse de guerra.

Este factor conjugou-se com uma série de transformações na instituição militar, ditadas pelo esforço de guerra. A falta de capitães para o comando de companhias levou o Governo a recorrer a oficiais milicianos, para postos normalmente ocupados por militares de carreira. Facilitou-lhes o ingresso na Academia Militar, reduziu a duração dos cursos e criou um “quadro especial de oficiais”. Por um lado, esta situação refrescou as fileiras das forças armadas, mas gerou tensões e conflitos entre milicianos e oficiais oriundos de cadetes da Academia Militar.

A gota de água acabou por ser o famoso Decreto 353/73, de 13 de Julho, que introduziu diversas alterações ao nível da antiguidade na carreira das armas. Os protestos levam o Governo a recuar, publicando um outro diploma que protege os interesses dos oficiais superiores e põe em causa os dos capitães. O avolumar da contestação, a que se junta, naturalmente, a oposição ideológica entre militares e governantes, e as aspirações de liberdade dos primeiros, está na génese do Movimento dos Capitães, que desencadeou o 25 de Abril.


Manhas de soldado


Nem sempre o soldado 328 estava disposto a dar o corpo ao manifesto. Um enfermeiro amigo livrou­-o de uma ou outra incursão, atestando que Joaquim Ganhão não se encontrava a cem por cento. “Eram manhas típicas da guerra”, recorda. O truque nem sempre resultava:
- Aconteceu quando tive que substituir um furriel, que tinha cegado com o rebentamento de uma granada. Uma noite em que me chamaram para uma operação, pedi ao Fernando, o enfermeiro, que me desse uma ou duas injecções. Ele assim fez. Passei a estar doente, incapacitado para qualquer missão. Mas o alferes que devia chefiar a missão não engoliu o truque. Chega ao pé de mim e diz-me: ‘Tu está tão doente como eu! Levanta-te da cama, que o pessoal está todo à tua espera’. E lá fui, mesmo com duas injecções.

(...)

Guiné 63/74 - CCXXVI: Antologia (25): Depoimento sobre a batalha da Ilha do Como

Fonte: Extractos de Diário do Alentejo, de 23 de Abril de 2004. Com a devida vénia.


Crónica do soldado 328, por Alberto Franco


O alentejano Joaquim Ganhão foi um dos milhares de portugueses que lutaram em África, nos anos da Guerra Colonial. Nas dificuldades e sustos que viveu em terras da Guiné – participou na célebre Operação Tridente, em 1964 – certamente muitos outros ex-militares se reconhecem. Quando passam 30 anos sobre o 25 de Abril, é oportuno recordar a longa guerra, unanimemente considerada uma das principais causas da revolução.

Quando o Niassa zarpou de Lisboa, em 17 de Julho de 1963, não se pode dizer que os rapazes do Batalhão de Cavalaria 490 estivessem inquietos. Afinal, iam para Moçambique, onde a guerra que lavrava noutras colónias portuguesas não tinha ainda chegado. Mas a meio da viagem o programa sofreu alterações. O agravamento da situação militar na Guiné obriga ao reforço do contingente naquele território. O Niassa recebe ordem de rumar a Bissau, e aí desembarcar as tropas que transportava.

- Foi um balde de água fria para todos nós-, recorda Joaquim Moita Ganhão, 61 anos, nado e criado em Moura, um dos muitos alentejanos que integravam o Batalhão Quatro Noventa. A guerra na Guiné começara há escassos meses, mas o território gozava já de má reputação entre os militares portugueses. À ameaça que a guerrilha do PAIGC (Partido Africano da Independência da Guiné e Cabo Verde) representava, combinava-se com uma geografia inóspita e um clima duríssimo, quente e húmido, favorável ao paludismo e a outras doenças tropicais. Quem esperava passar dois anos em Moçambique, no sossego de Vila Pery, e se vê inesperadamente atirado para a Guiné, não podia ter outra reacção que não fosse o alarme. Mesmo que se tivesse 20 anos, muito sangue na guelra e se pertencesse a um batalhão cujo lema era Sempre em Frente.

Em casa de Joaquim Ganhão eram nove irmãos, que o curto salário do pai, caiador de profissão, não chegava para sustentar:
- Eu ficava em casa a cuidar dos meus irmãos mais novos, enquanto a minha mãe trabalhava a dias. Essa a razão porque só entrei para a escola com nove anos-. Aos 12, Joaquim perde o pai. Com o amparo reduzido, vê-se forçado a trabalhar antes do tempo. Aprende o ofício de pedreiro, que exerce até aos 20 anos, idade em que é mobilizado para a tropa.

O soldado 328 estaciona três meses em Beja e dali segue para Estremoz, onde o Batalhão 490 está a ser formado. No Quatro Noventa, os alentejanos estavam em maioria:
- Havia gente de Elvas, Estremoz, Messejana, Aljustrel, Salvada. Só os cozinheiros eram do Norte…- , assinala Joaquim Ganhão - A instrução em Estremoz foi dura. Preparam-nos para combater, segundo os modelos da época.

Vendo os conflitos que deflagravam nos territórios coloniais de outros países europeus, o exército português tinha-se preparado para enfrentar o fenómeno a que uns chamavam guerra subversiva e outros guerra de libertação. Oficiais portugueses estagiaram junto do exército francês na Argélia e especialistas estrangeiros ministraram em Portugal para acções de formação. Mas uma coisa era a guerra teórica, outra a guerrilha nos pântanos da Guiné, as bolanhas, nas matas de Angola e Moçambique. Pela sua parte, Joaquim Ganhão fez pela vida e frequentou em Estremoz o curso de cabos:
- Fui o segundo melhor classificado. Quando embarquei para África, em Julho de 1963, já era 1º cabo da minha Companhia, a 489.


Baptismo de fogo no Oio-Morés


Até àquela data, o pedreiro de Moura não tinha posto os pés num navio, e em matéria de cursos de água só conhecia o mansos rios Ardila e Guadiana. Mesmo assim não se deu mal na jornada a bordo do Niassa:
- Tive a sorte de não enjoar, ao contrário de muitos companheiros”-. Os seis dias de viagem passou-os a dormitar nas baleeiras do Niassa, a espantar as saudades com cartas para a família e em camaradagem com o seu amigo de infância Henrique Pinto, outro militar mourense em trânsito para a Guiné.

Chegados a Bissau em plena estação das chuvas, são alojados no quartel da Amura, um antigo entreposto de escravos. O clima doentio surpreende-os desde logo:
- Era diferente de tudo o que conhecíamos. Com a humidade, a roupa colava-se-nos ao corpo. Só estávamos bem debaixo do chuveiro. De vez em quando, caíam trovoadas que metiam medo -. Outro motivo de espanto é a pobreza do território. Com poucos ou nenhuns recursos naturais, sem núcleos urbanos desenvolvidos, a Guiné era a peça menos valiosa do império português, e como tal a mais desprezada por Lisboa. Ganhão sublinha “a miséria das populações, as filas de mulheres e crianças com latas, à espera que lhes dessem alguma comida”.

A guerra aberta na Guiné principiou em 23 de Janeiro de 1963, com o ataque ao quartel de Tite, embora desde 1961 se registassem actos de sabotagem levados a cabo pelo Paigc de Amílcar Cabral. Bem armada, apoiada por países fronteiriços como a Guiné-Conacri e o Senegal, a guerrilha alastra pelo território guineense como um regueiro de pólvora. A companhia do 1º cabo Joaquim Ganhão recebe o baptismo de fogo no Norte da colónia:
- Fomos render uma companhia que se encontrava em Mansabá. Aí sofremos uma emboscada nocturna, na zona do Oio-Morés, que por ser muito pantanosa e de acesso difícil era um bom refúgio para os guerrilheiros.

Joaquim Ganhão lembra-se que a noite estava escura e a mata era cerrada:
- Ia à frente da minha companhia, quando senti o encosto de uma arma. O guia deu o alarme, eu comecei a disparar no escuro e a correr pelo capim, como um doido. Quando as coisas acalmaram e a companhia se reorganizou, deparo com um guerrilheiro a apontar-me uma pistola-metralhadora. Tentou atirar, mas, felizmente para mim, a arma estava encravada -. O soldado 328 captura o homem, apreende-lhe a metralhadora e três carregadores de munições.
- O guerrilheiro chamava-se Albino Sampa. Mais tarde cheguei a ir visitá-lo à cadeia, em Bissau -. O melhor desta aventura acabou por ser o prémio de um mês de licença na Metrópole:
- Quando me deram a notícia, ia ficando maluco de alegria. O pior foi que a minha família, quando soube que eu estava em Lisboa, pensou que estava todo partido... Só descansaram quando a minha irmã me foi buscar a Estremoz e viram que estava bem de saúde.

Tridente da morte

Mas a emboscada no Oio-Morés foi uma brincadeira, comparada com o que veio a seguir. O Batalhão de Cavalaria 490, e com ele Joaquim Ganhão, foi um dos participantes na operação Tridente, uma das mais aparatosas ofensivas portuguesas na Guerra Colonial. Denominada Tridente porque envolvia a marinha, o exército e a força aérea, a operação visava ocupar as ilhas do Como, Caiar e Catunco, no Sul da Guiné, onde os combatentes do PAIGC dispunham de importantes bases. Ali se movimentava o astuto comandante Nino Vieira, formado nas técnicas da guerrilha pela Academia Militar de Pequim, que teria no Como cerca de 300 homens, incluindo militares da Guiné-Conacri. Um dos objectivos da missão consistia em conquistar o apoio da população das ilhas, que os guerrilheiros controlavam:
- Em todas as tabancas (aldeias tradicionais) do Como, se viam retratos de Amílcar Cabral-, observa Joaquim Ganhão.

A operação Tridente iniciou-se em 15 de Janeiro de 1964. O 1º cabo Ganhão só soube o que o esperava quando se viu a bordo de uma lancha LDM, dos fuzileiros. Através das bolanhas, ladeadas por uma vegetação densa e asfixiante, o tarrafo, a Companhia 489, comandada pelo capitão Pato Anselmo, avançou até à ilha de Catunco. Ganhão permaneceu ali mais de dois meses, “entrincheirado num buraco, juntamente com dois companheiros, agarrados às G3, com as balas do inimigo a passarem-nos rente”. Quem disparava?
- Nenhum de nós sabia. Os tiros vinham da mata, onde os guerrilheiros estavam bem escondidos -. Por isso, sair do buraco só em último caso:
- Tínhamos o exemplo de um companheiro que se levantou para beber uma pinga de água e foi atingido por um tiro no queixo.

Quando se iniciou a segunda fase da operação, foi necessário deixar os abrigos e patrulhar as ilhas:
- Saíamos aos ziguezagues, em grupos de três. Depois deitávamo-nos ao chão e saíam outros três. E isto sempre aos tiros. Foi numa destas acções que Joaquim Ganhão perdeu o seu amigo Henrique Pinto, o primeiro militar de Moura a tombar na guerra:
- O Henrique, que pertencia à Companhia 487, seguia numa patrulha, formada em leque. Ele, que estava numa das pontas, avançou demais e foi capturado, às três da tarde do dia 24 de Janeiro -. Ganhão e outros tinham ido buscar mantimentos à base logística da operação, instalada numa praia. Aí viu chegar um helicóptero com o cadáver de Henrique, resgatado pelos fuzileiros. O choque foi terrível. Quarenta anos passados, ainda hoje a voz de Ganhão se embarga quando fala do caso:
- Podia ter sido eu. Tive sorte, não calhou.

Os aviões F-86 e T-6 flagelavam as matas do Como com napalm, as granadas explodiam a toda a hora, mas os resultados práticos da operação tardavam em ver-se. A única evidência era o sofrimento dos militares portugueses:
- Bebia-se qualquer água e a alimentação resumia-se a rações de combate-, conta o 1º cabo Ganhão - Comemos carne fresca uma única vez, quando os fuzileiros abateram algumas vacas. Não admira que durante a operação Tridente 193 militares tenham sido retirados do teatro de guerra, por motivo de doença.

Setenta e um dias depois, a missão é considerada finda. As estatísticas apontavam 76 guerrilheiros mortos, 15 feridos e nove detidos. Do lado português contaram-se nove mortes e ferimentos em 47 soldados. Foram disparadas 124 mil balas, 1200 granadas de artilharia e 550 granadas de morteiro. Os militares aliviaram a tensão consumindo 15 500 garrafas de cerveja e fumando 10 100 maços de tabaco. Números que não maquilham o insucesso da operação. A última palavra pertenceu à guerrilha, que continuou a servir-se do Como, só abandonando a região quando os seus interesses se transferiram para outros locais.


Cruz de Guerra no 10 de Junho


Depois de intervir na Tridente, a Companhia 489 é destacada para o Norte:
- Fomos para junto da fronteira com o Senegal, com o objectivo de dificultar as entradas e saídas dos guerrilheiros e das forças que os apoiavam.

Joaquim Ganhão andou por Contima, Farim, Bula, Bafatá, Mansoa. Porém, antes de pensar em fiscalizar o que quer que fosse, era preciso construir as bases necessárias ao estacionamento de tropas. Na Guiné, como na generalidade das vastas colónias portuguesas, faltavam aquartelamentos, vias de comunicação e demais infra-estruturas. Por outro lado, no caso específico do Norte da Guiné, tornava-se necessário atrair e organizar a população que tinha cruzado a fronteira do Senegal, fugindo à guerra. Os soldados da 489 ajudavam à reconstrução de tabancas, construíam abrigos, “à mão, sem a ajuda de quaisquer máquinas”, de valas em redor dos quartéis e outras infra-estruturas defensivas, muitas vezes debaixo de fogo. Quando empunhavam a G3, vigiavam a fronteira e montavam as suas emboscadas. A tropa “saía por volta da meia-noite. Então víamo-los passar, a pé, outras vezes de bicicleta”. Nessas alturas, “a fuzilaria era tanta que nem os raios das bicicletas se aproveitavam.”

As normas da altura determinavam que o tempo de serviço militar era de 24 meses. Todavia, muitos militares excediam, contra vontade, este período. Às vezes morriam em África, quando, segundo a lei, já deviam estar em Portugal. Joaquim Ganhão lembra um episódio ocorrido em Bula, com uma companhia de caçadores que já tinha atingido os 27 meses de comissão:
- Por sermos mais novos, a nossa companhia seguia atrás deles, numa deslocação pelo mato. De repente, caem numa emboscada. Recordo-me que os guerrilheiros tinham cortiços de abelhas em cima de árvores; cortavam as cordas e os cortiços caíam em cima dos soldados. Com este truque e com o tiroteio, morreram dois ou três caçadores. Que já não deviam estar na Guiné, porque já tinham cumprido o seu tempo.

Ganhão teve mais sorte. Regressou a Moura em Setembro de 1965, são e salvo. Um ano depois, já casado, recebeu em Évora, nas cerimónias do 10 de Junho, a Cruz de Guerra de terceira classe, pelo seu desempenho na Guiné. Quarenta anos depois, Joaquim Ganhão, mestre de construção civil, pai de duas filhas, olha para trás com serenidade:
- É bom que se diga que fui para a Guiné obrigado. Tínhamos que livrar o corpo, para não morrer. Foi o que eu fiz. Estimo muito a Cruz de Guerra, mas lamento que além da medalha ninguém me tenha compensado pelos dois anos de vida que perdi.


A Guerra Colonial e o 25 de Abril

O desgaste que a guerra provocou nas forças armadas portuguesas e a ausência de soluções pacíficas para a questão colonial, contam-se entre as principais motivações do 25 de Abril. Treze anos de confrontos exigiram o destacamento de 70 mil homens para Angola, 42 mil para a Guiné e 57 mil para Moçambique. Segundo a Resenha Histórico-Militar das Campanhas de de África (1961-1974), registou-se um total de 8 290 mortos, nas três frentes de batalha. A este número há a juntar 112 000 feridos, dos quais 30 mil terão sofrido deficiências para toda a vida, e perto de 100 mil vítimas do stresse de guerra.

Este factor conjugou-se com uma série de transformações na instituição militar, ditadas pelo esforço de guerra. A falta de capitães para o comando de companhias levou o Governo a recorrer a oficiais milicianos, para postos normalmente ocupados por militares de carreira. Facilitou-lhes o ingresso na Academia Militar, reduziu a duração dos cursos e criou um “quadro especial de oficiais”. Por um lado, esta situação refrescou as fileiras das forças armadas, mas gerou tensões e conflitos entre milicianos e oficiais oriundos de cadetes da Academia Militar.

A gota de água acabou por ser o famoso Decreto 353/73, de 13 de Julho, que introduziu diversas alterações ao nível da antiguidade na carreira das armas. Os protestos levam o Governo a recuar, publicando um outro diploma que protege os interesses dos oficiais superiores e põe em causa os dos capitães. O avolumar da contestação, a que se junta, naturalmente, a oposição ideológica entre militares e governantes, e as aspirações de liberdade dos primeiros, está na génese do Movimento dos Capitães, que desencadeou o 25 de Abril.


Manhas de soldado


Nem sempre o soldado 328 estava disposto a dar o corpo ao manifesto. Um enfermeiro amigo livrou­-o de uma ou outra incursão, atestando que Joaquim Ganhão não se encontrava a cem por cento. “Eram manhas típicas da guerra”, recorda. O truque nem sempre resultava:
- Aconteceu quando tive que substituir um furriel, que tinha cegado com o rebentamento de uma granada. Uma noite em que me chamaram para uma operação, pedi ao Fernando, o enfermeiro, que me desse uma ou duas injecções. Ele assim fez. Passei a estar doente, incapacitado para qualquer missão. Mas o alferes que devia chefiar a missão não engoliu o truque. Chega ao pé de mim e diz-me: ‘Tu está tão doente como eu! Levanta-te da cama, que o pessoal está todo à tua espera’. E lá fui, mesmo com duas injecções.

(...)

Guiné 63/74 - CCXCV: A verdade sobre a Op Tridente (Ilha do Como, 1964)

1. Texto do Carlos Fortunato [ex-furriel miliciano, de transmissões, da CCAÇ 13, 1969/71, aquartelado em Bissorã, entre outros sítios]:

Mário:

Bem vindo à nossa tertúlia, penso que poderás dar um contributo importante.

Tendo tu participado na Operação Tridente [Ilha do Como, Janeiro-Março de 1964], gostaria de te colocar uma questão: o que se passou efectivamente com esta operação, referida como de reocupação da ilha do Como?

A operação não é do meu tempo, pois estive na Guiné de 1969 a 1971 [na CCAÇ 13], e na maior parte do tempo na região do Oio, mas era uma referência para o PAIGC. Para alguns como o Héliio Felgas foi um passeio, mas para o PAIGC foi a morte de centenas dos nossos soldados, e a derrota, o que nos obrigou a retirar mais tarde.

A ilha do Como continua hoje em dia a ser uma referência, pois assisti em Bissau, em 1986, a uma peça de teatro,em que os alunos de uma escola primária cantavam a derrota dos tugas na ilha do Como, ao mesmo tempo que simulavam um ataque. A ilha sempre foi um simbolo para o PAIGC, sendo referida no primeiro livro de instrução primária do PAIGC.

Um abraço

Carlos Fortunato (CCAÇ 13, 1969/71)

Webmaster da página sobre Os Leões Negros



2. Resposta do Mário [Dias]:


Caro Fortunato:

Gostosamente respondo às tuas dúvidas sobre a Op Tridente.

Antecedentes:

A ilha do Como, situada a sudoeste da Guiné, junto a Catió, era, de facto, pertença do PAIGC. Aí não existia qualquer tipo de ocupação administrativa.

Além das tabancas de Curcô, Cauane, Cachil e algumas palhotas dispersas, a única coisa que lá havia eram instalações do comerciante e produtor de arroz Manuel Pinho Brandão que explorava as bolanhas e praticamente era o dono e senhor da ilha.

Devido à sua localização, próxima da Guiné-Conacri, e por não existir lá qualquer autoridade que o impedisse, o PAIGC, inteligentemente, ocupou a ilha para dela fazer o seu santuário e território conquistado.

Pelo acima exposto, o Comandante-Chefe só tinha uma solução: a conquista da ilha.

Operação Tridente:

Resumidamente, esta operação não foi um passeio, como diz o Hélio Felgas (que nem sequer lá esteve) nem a derrota para os portugueses que refere o PAIGC. É natural que o PAIGC se refira a esta operação como um êxito para si, dentro da propaganda que tão habilmente soube utilizar, mas não foi. Não mataram centenas de soldados, como dizem. Eles, sim. Tiveram muitas baixas e nós conseguimos, de facto, conquistar a ilha.

Para que tudo fique melhor esclarecido, vou preparar um trabalho com algumas fotos e mais pormenores sobre este assunto e que, a seu tempo, enviarei para o blogue. Está prometido. Um abraço.

Mário Dias (ex-comando, 1963/66)

Guiné 63/74 - CCXCV: A verdade sobre a Op Tridente (Ilha do Como, 1964)

1. Texto do Carlos Fortunato [ex-furriel miliciano, de transmissões, da CCAÇ 13, 1969/71, aquartelado em Bissorã, entre outros sítios]:

Mário:

Bem vindo à nossa tertúlia, penso que poderás dar um contributo importante.

Tendo tu participado na Operação Tridente [Ilha do Como, Janeiro-Março de 1964], gostaria de te colocar uma questão: o que se passou efectivamente com esta operação, referida como de reocupação da ilha do Como?

A operação não é do meu tempo, pois estive na Guiné de 1969 a 1971 [na CCAÇ 13], e na maior parte do tempo na região do Oio, mas era uma referência para o PAIGC. Para alguns como o Héliio Felgas foi um passeio, mas para o PAIGC foi a morte de centenas dos nossos soldados, e a derrota, o que nos obrigou a retirar mais tarde.

A ilha do Como continua hoje em dia a ser uma referência, pois assisti em Bissau, em 1986, a uma peça de teatro,em que os alunos de uma escola primária cantavam a derrota dos tugas na ilha do Como, ao mesmo tempo que simulavam um ataque. A ilha sempre foi um simbolo para o PAIGC, sendo referida no primeiro livro de instrução primária do PAIGC.

Um abraço

Carlos Fortunato (CCAÇ 13, 1969/71)

Webmaster da página sobre Os Leões Negros



2. Resposta do Mário [Dias]:


Caro Fortunato:

Gostosamente respondo às tuas dúvidas sobre a Op Tridente.

Antecedentes:

A ilha do Como, situada a sudoeste da Guiné, junto a Catió, era, de facto, pertença do PAIGC. Aí não existia qualquer tipo de ocupação administrativa.

Além das tabancas de Curcô, Cauane, Cachil e algumas palhotas dispersas, a única coisa que lá havia eram instalações do comerciante e produtor de arroz Manuel Pinho Brandão que explorava as bolanhas e praticamente era o dono e senhor da ilha.

Devido à sua localização, próxima da Guiné-Conacri, e por não existir lá qualquer autoridade que o impedisse, o PAIGC, inteligentemente, ocupou a ilha para dela fazer o seu santuário e território conquistado.

Pelo acima exposto, o Comandante-Chefe só tinha uma solução: a conquista da ilha.

Operação Tridente:

Resumidamente, esta operação não foi um passeio, como diz o Hélio Felgas (que nem sequer lá esteve) nem a derrota para os portugueses que refere o PAIGC. É natural que o PAIGC se refira a esta operação como um êxito para si, dentro da propaganda que tão habilmente soube utilizar, mas não foi. Não mataram centenas de soldados, como dizem. Eles, sim. Tiveram muitas baixas e nós conseguimos, de facto, conquistar a ilha.

Para que tudo fique melhor esclarecido, vou preparar um trabalho com algumas fotos e mais pormenores sobre este assunto e que, a seu tempo, enviarei para o blogue. Está prometido. Um abraço.

Mário Dias (ex-comando, 1963/66)

Guiné 63/74 - CCXCIV: Apresenta-se o comando Mário Dias, 'pai da velhice'

Estátua do Teixeira Pinto, em Bissau e não na antiga Teixeira Pinto (hoje Canchungo), como por lapso apareceu indicado no blogue. Postal da época.

Digitalizição do João Varanda (CCAÇ 2636, 1969/71).



1. Texto de Mário Dias:

Caro Luis,

Antes de mais, os meus cumprimentos e admiração pelo blogueforanada de que sou habitual frequentador e poderei mesmo dizer colaborador por intermédio do Briote que tem enviado alguns dos esclarecimentos que lhe tenho prestado.

Eu sou o Mário Dias, fui para a Guiné com 15 anos (em 1952). De lá saí em 1966. Conheço, como seria de esperar - dada a minha longa permanência naquelas terras - a quase totalidade da Guiné. Lá cumpri o serviço militar obrigatório (recruta e CSM- Curso de Sargentos Milicianos) e, estando já na disponibilidade, regressei à efectividade de serviço (em 1963) como furriel miliciano apenas com a intenção de colaborar e ajudar na guerra que tinha já começado.

Fiz parte de um grupo de oficiais e sargentos que se deslocaram a Angola para tirar o curso de comandos e, uma vez regressados, formámos um grupo que actuou na célebre Operação Tridente, na ilha do Como (Janeiro a Março de 1964). Posteriormente, demos instrução e fizemos parte dos 3 primeiros grupos de comandos da Guiné.

Mas estou a desviar-me do motivo principal desta mensagem.

Deparo, por vezes, com algumas naturais incorrecções nas descrição de assuntos relativos à Guiné como palavras do criôlo mal traduzidas e engano na identificação de alguns lugares como é o caso presente.

Ao visitar o blogue hoje, deparei com a fotografia de uma estátua de Teixeira Pinto como sendo na localidade com o mesmo nome, actual Canchungo. Ora, na verdade o postal reproduzido é em Bissau. A referida estátua ficava ao cimo da Avenida que, saindo da Praça do Império, (cujo obelisco dedicado "Ao Esforço da Raça" se pode ver ao fundo na linha do horizonte), ia até ao Alto do Crim e depois seguia como estrada para o aeroporto etc. Essa estátua estava bem próxima do depósito de água aí existente e, dada sua "pose", de mão direita estendida, nós dizíamos por brincadeira que estava a "falar mantenha" (cumprimentar) a quem passava.

Desculpe esta intromissão. Se a fiz é apenas com o desejo que quanto aqui for dito corresponda à realidade.

Um abraço do Mário Dias .

2. Resposta do L.G.:

Mário: Muito obrigado pelos teus comentários, pertinentíssimos. Posso tratar-te por tu, já que fomos camaradas ? ! Aliás, esta é uma das regras de ouro da nossa tertúlia. Fico encantado com esta nova aquisição para a nossa tertúlia… É claro que, para além da tua vivência pessoal e do teu profundo conhecimento da Guiné e dos guinéus (eles não levam a mal, se eu usar este termo arcaico ?), tens também a tua quota-parte de operacional, de combatente…

Portanto, meu amigo, não precisas de pedir licença a ninguém para entrares: tu é que estás em casa… Em boa verdade, a maior parte de nós, mal conhece a Guiné… Quem esteve no Cacheu, passou por Bissau, atravessou o Rio Mansoa em João Landim e ficou metido num buraco o tempo todo… Quem foi para Bambadinca, não foi ao Gabu, fez a LDG Bissau-Xime e, com sorte, apanhou o barco, de regresso, ao fim de 21 meses... Por outro lado, quem esteve no sul, não conheceu o leste…

Por isso, desculpa lá as nossas ingenuidades e ignorância em muitas matérias (geografia, história, cultura, etnologia, linguística…). Estás à vontade para nos ensinar e até puxar as orelhas, tens a autoridade suficiente para isso.

Agradeço-te vivamente todas as correcções que queiras e possas fazer. Tu vais passar a ser o nosso professor da disciplina Guiné! Já agoira, onde vives ? Aqui perto de nós ? Posso inscrever-te na nossa tertúlia ? Mandas-me duas fotos, uma do antigamente e outra actual, para a nossa fotogaleria ? (Claro que isto é voluntário)…

Guiné 63/74 - CCXCIV: Apresenta-se o comando Mário Dias, 'pai da velhice'

Estátua do Teixeira Pinto, em Bissau e não na antiga Teixeira Pinto (hoje Canchungo), como por lapso apareceu indicado no blogue. Postal da época.

Digitalizição do João Varanda (CCAÇ 2636, 1969/71).



1. Texto de Mário Dias:

Caro Luis,

Antes de mais, os meus cumprimentos e admiração pelo blogueforanada de que sou habitual frequentador e poderei mesmo dizer colaborador por intermédio do Briote que tem enviado alguns dos esclarecimentos que lhe tenho prestado.

Eu sou o Mário Dias, fui para a Guiné com 15 anos (em 1952). De lá saí em 1966. Conheço, como seria de esperar - dada a minha longa permanência naquelas terras - a quase totalidade da Guiné. Lá cumpri o serviço militar obrigatório (recruta e CSM- Curso de Sargentos Milicianos) e, estando já na disponibilidade, regressei à efectividade de serviço (em 1963) como furriel miliciano apenas com a intenção de colaborar e ajudar na guerra que tinha já começado.

Fiz parte de um grupo de oficiais e sargentos que se deslocaram a Angola para tirar o curso de comandos e, uma vez regressados, formámos um grupo que actuou na célebre Operação Tridente, na ilha do Como (Janeiro a Março de 1964). Posteriormente, demos instrução e fizemos parte dos 3 primeiros grupos de comandos da Guiné.

Mas estou a desviar-me do motivo principal desta mensagem.

Deparo, por vezes, com algumas naturais incorrecções nas descrição de assuntos relativos à Guiné como palavras do criôlo mal traduzidas e engano na identificação de alguns lugares como é o caso presente.

Ao visitar o blogue hoje, deparei com a fotografia de uma estátua de Teixeira Pinto como sendo na localidade com o mesmo nome, actual Canchungo. Ora, na verdade o postal reproduzido é em Bissau. A referida estátua ficava ao cimo da Avenida que, saindo da Praça do Império, (cujo obelisco dedicado "Ao Esforço da Raça" se pode ver ao fundo na linha do horizonte), ia até ao Alto do Crim e depois seguia como estrada para o aeroporto etc. Essa estátua estava bem próxima do depósito de água aí existente e, dada sua "pose", de mão direita estendida, nós dizíamos por brincadeira que estava a "falar mantenha" (cumprimentar) a quem passava.

Desculpe esta intromissão. Se a fiz é apenas com o desejo que quanto aqui for dito corresponda à realidade.

Um abraço do Mário Dias .

2. Resposta do L.G.:

Mário: Muito obrigado pelos teus comentários, pertinentíssimos. Posso tratar-te por tu, já que fomos camaradas ? ! Aliás, esta é uma das regras de ouro da nossa tertúlia. Fico encantado com esta nova aquisição para a nossa tertúlia… É claro que, para além da tua vivência pessoal e do teu profundo conhecimento da Guiné e dos guinéus (eles não levam a mal, se eu usar este termo arcaico ?), tens também a tua quota-parte de operacional, de combatente…

Portanto, meu amigo, não precisas de pedir licença a ninguém para entrares: tu é que estás em casa… Em boa verdade, a maior parte de nós, mal conhece a Guiné… Quem esteve no Cacheu, passou por Bissau, atravessou o Rio Mansoa em João Landim e ficou metido num buraco o tempo todo… Quem foi para Bambadinca, não foi ao Gabu, fez a LDG Bissau-Xime e, com sorte, apanhou o barco, de regresso, ao fim de 21 meses... Por outro lado, quem esteve no sul, não conheceu o leste…

Por isso, desculpa lá as nossas ingenuidades e ignorância em muitas matérias (geografia, história, cultura, etnologia, linguística…). Estás à vontade para nos ensinar e até puxar as orelhas, tens a autoridade suficiente para isso.

Agradeço-te vivamente todas as correcções que queiras e possas fazer. Tu vais passar a ser o nosso professor da disciplina Guiné! Já agoira, onde vives ? Aqui perto de nós ? Posso inscrever-te na nossa tertúlia ? Mandas-me duas fotos, uma do antigamente e outra actual, para a nossa fotogaleria ? (Claro que isto é voluntário)…

16 novembro 2005

Guiné 63/74 - CCXCIII: CCAÇ 2636 (Có, 1969/71) (2): "Periquito vai no mato, que a velhice vai p'ra Bissau"...

Post nº 293 (CCXCIII)


João Varanda, em Có, sentado num enorme bagabaga (feito pelas segregações das formigas gigantes).

© João Varanda (2005)



Segunda parte da história da CCAÇ 2636 (Cacheu e Zona Leste, 1969/71). Autor: João José Varanda, de Coimbra. Há uma parte sobre os "senhores da guerra" (Spínola e Nino Vieira) que será publicada, à parte, noutra altura (1).





Percurso em África

Depois de seis longos dias [em Bissau], a partida para Có levou-nos a saborear não só as implicações bélicas envolventes, mas, não menos importante, também a grandeza dos prazeres que uma terra tão pródiga e fascinante nos pode conceder.

Retirando desta experiência alguns valores acrescidos, compartilhados com o ambiente frenético e redutor da luta que então se travava dentro de uma envolvência onde a magia da terra africana serviu de estímulo e compensação perante as horas amargas da luta, do sofrimento e da alienação de outras referências essenciais.


Primeira etapa: a comissão em Có


Bissau ficará para trás passados que foram estes seis dias (sem outro atractivo que não a ausência da guerra). A noite foi toda passada a levantar arraiais e consumar despedidas, pela manhã cedo ainda nos foi servido o pequeno almoço – café com leite e casqueiro com manteiga.

Em Brá, ao longo de quinhentos metros que iam desde o centro do aquartelamento até à saída da porta de armas, a coluna auto que nos foi atribuída, composta por viaturas civis (para transporte da nossa bagagem) e viaturas militares (Unimog e GMC), foi-se espreguiçando enquanto os problemas logísticos relacionados com a nossa deslocação para Có se resolviam.

Foram longas as horas para colocar a coluna em marcha. Antes da partida, a verificação de que tudo estava em ordem, toda a bagagem, quer pessoal, quer da companhia estava nas viaturas. Cerca das 12,30 horas, com tudo em ordem, eis que após as últimas recomendações do Capitão Medina Matos, este subiu para o lado do condutor do Unimog que abria a coluna, dando ordem ao pessoal para montar nas viaturas.

G3 segura na mão, lenços coloridos no pescoço (cada cor destrinçava o grupo de combate), toca a andar!... Fora dado o sinal para iniciar a marcha até João Landim, era perto (30 Kms), estrada segura, foi rápida a viagem. João Landim era posição isolada e de paragem obrigatória. Fomos bem recebidos e assistidos por um grupo de fuzileiros que fazia segurança da zona, viviam em abrigo subterrâneo na encosta da cambança do Rio Mansoa.


Guiné > 1965/66 >

A famosa jangada que atravessava o Rio Mansoa em João Landim, ligando Bissau com a região do Cacheu

© Virgínio Briote (2005)






O rio Mansoa apresentou-se-nos calmo, com uma cor cinza. Foi atravessado de jangada. Viaturas e homens, em levas ininterruptas, foram sendo transferidos para a outra margem. Foram longas horas neste vai e vem para colocar a companhia do lado de lá de João Landim. A jangada tinha, com bom comportamento, uma vez mais realizado a sua missão. A travessia, dadas as fortes correntes, era tarefa dura. Teve de ser passada a corda de margem a margem, esta servia para evitar que se deslizasse com a corrente e para garantir a atracção no sítio certo, rampa de acesso íngreme da beira rio para a planura que nos separava de um tecto.

Cerca das 6,00 horas da tarde do mesmo dia a travessia de João Landim para a margem do corredor de acesso ao cruzamento de Bula estava finalmente no lado para onde seguíamos Có, lado esse onde nos esperavam prometidos meses de sofrimento e trabalho duríssimo.

Atravessado o rio Mansoa, tínhamos mais umas dezenas de quilómetros de tensão acrescida, uma vez que até ao cruzamento da placa para Bula era território completamente abandonado. Nem sequer era patrulhado. Um grupo de combate de tropa veterana de Có, a CCAÇ 2584, cumpriu a segurança junto à margem do rio Mansoa.

Do lado de Cá de João Landim até ao cruzamento da placa para Bula era perto e por estrada segura. Foi rápida a viagem até à pequena tabanca na margem esquerda da estrada junto à placa para Bula, onde a população veio junto da estrada ver passar a companhia, estendendo-nos o dedo polegar, à laia de saudação e boas vindas à tropa e gritando "Periquito vai no mato”.

Desta pequena tabanca para a frente foi a avançar com precaução até à fatídica curva de Bula onde do lado direito teria existido uma antiga destilaria. Esse local era zona habitualmente pouco acolhedora e de maus resultados para as nossas tropas, era (ponto negro) onde as forças do PAIGC faziam as suas repetidas emboscadas.

Daqui para a frente só Có esperava por nós, aonde chegámos já noite (cerca das 8,30 horas), exaustos por termos feito grande parte do percurso para esta tabanca em cima de viaturas sobre tapete de alcatrão que só ficara interrompido na placa que nos indicava o destacamento de Có, sem luz e cada um agarrado ao do lado para não nos perdermos na escuridão de breu. Contudo, e na primeira experiência, só o cansaço era tudo quanto se podia lamentar.


© João Varanda (2005)


Em Có fomos recebidos pela velhice daCCAÇ 2584, com grande algazarra e desejo de bom regresso. Chegados ao destacamento, o nosso pessoal começou, de imediato, o frenezim da descarga da coluna, e o desenrrascanço de como passar a primeira noite no aquartelamento de Có, já que este era pequeno e não tinha instalações suficientes para nos acolherem na sua totalidade, dado o ajuntamento da nossa companhia com a guarnição normal do aquartelamento da CCAÇ 2584. Mas na guerra há sempre lugar para mais um, e apesar dessa tensão toda a companhia ficou acomodada e tudo correu pelo seu melhor.

Era a nossa primeira noite. A companhia da velhice foi extremamente simpática para connosco, esses nossos camaradas queriam saber novidades frescas da Metrópole, porque as saudades eram imensas, escusado será dizer que todos estávamos descontraídos, embora nos sentíssemos cansados, já que a sobrecarga tinha sido bastante intensa.

Era a carga psicológica a fazer os seus efeitos. Como era dia diferente para o aquartelamento de Có, todo o pessoal, velhice e periquitos, tivemos a novidade dada pelo cantineiro de que o bar estaria toda a noite aberto e onde teríamos café e toda a espécie de bebibasd espirituosas. Foi bem passada a noite e bebeu-se muito bem.

O aquartelamento de Có tinha um aspecto airoso, cada grupo de combate tinha a responsabilidade de um sector de linha defensiva, vivíamos em abrigos subterrâneos ao longo de todo o perímetro do quadrado mal desenhado, que constituía a nossa posição, com cerca de seiscentos metros de lado. Alguns metros mais para dentro ficavam as casernas dos soldados de serviços, seguia-se o refeitório, a cozinha, a padaria, a sede (secretaria) das companhias, o posto médico, e virado para a porta de entrada do aquartelamento, ao lado de um enorme embondeiro, que dava protecção ao abrigo subterrâneo do posto rádio e à messe e alguns quartos para oficiais, ao lado destes um bar cantina, a oficina auto e nos pontos cruciais de defesa em abrigos cavados no chão estavam as peças pesadas de defesa (morteiros 60 e de 81) e as metralhadoras (Bredas, MG, Borzig). Estávamos poderosamente armados, e no centro do aquartelamento havia um imponente posto de vigia, erguido sobre troncos de palmeira e coberto a colmo.

Circundavam o aquartelamento três fiadas de arame farpado distantes entre si de alguns metros, pregadas na estacaria de palmeira, sendo a parte de fora a orla da floresta, capinada, para termos pontos de observação. Ao longo da fiada de arame mais interior estavam os postes de iluminação do perímetro do aquartelamento com os seus holofotes orientados para o exterior, e cuja a energia era garantida por um gerador, metido num abrigo subterrâneo.

Fora do perímetro defensivo situava-se a fonte de abastecimento de água, que por sua vez descarregava para um pequeno lago, onde colectivamente, nós e população, tomavamos o nosso duche diário. Ainda também, a morança e a tasca familiar (café e minimercado) do velho Tavares, um cabo-verdiano estabelecido no local, pai de duas lindas filhas, tendo uma delas perecido numa flagelação levada a cabo pelas forças do PAIGC ao aquartelamento cuja defesa estava a cargo da CCAÇ 2584, em início de comissão.

Este velho Tavares dizia-se que fazia a guerra nos dois lados, pois os guias da nossa tropa garantiam que sempre que as tropas do PAIGC se aproximavam de Có era no quintal da morança do velho Tavares que, na véspera da iminência de ataque a Có, faziam o local de abrigo e arrecadações de material de guerra inimigo.

Paredes meias com o aquartelamento ficava a tabanca, onde se poderiam ver enormes, mangueiros e palmeiras. Contornava o aquartelamento à excepção da ala norte, onde não havia habitações de africanos. A tabanca era também cercada por arame farpado, junto ao qual existiam diversos postos fortificados para sentinelas (milícias ou tropas paramilitares que faziam parte do dispositivo militar implantado no território, também designadas por tropas auxiliares, ou de segunda linha). Para estes, as causas da independência, da autonomia ou as de uma Pátria para os guineenses não constavam do seu ideário.

Sentiam-se confortavelmente bem a nosso lado, tão Portugueses como nós, sem deixarem contudo de ser Guineenses e amarem a sua terra. Nunca será demais assinalar o comportamento irrepreensível, abnegado, corajoso mesmo desta gente. Duma coragem talvez diferente da nossa, mas não menos eficaz, verdadeira, eloquente. Arquitectada numa longa experiência de combate, numa fé e num patriotismo insuperáveis. Tudo executado com simplicidade, facilidade, gosto e redobradas dose de determinação e vigor. Foram estes homens singulares que também escreveram páginas gloriosas de sangue e sacrifício, que se bateram melhor que nós por todos estes ideais, que nos fizeram acreditar no sucesso daquela guerra, que por lá ficaram. Entregues a si próprios, abandonados à sua sorte, pagando com a vida aquilo que com a mesma vida haviam combatido e sonhado, a nosso lado, sem nada nos exigirem.


A nossa história operacional


Enquanto se combatia um inimigo que não dava tréguas nem descanso numa guerra também ela intratável, havia espaço, tempo e vontade para outros combates. E homens dispostos a assumirem essas e outras preocupações que muito nos honraram, pelos resultados obtidos e pela satisfação gratificante de mais estas missões cumpridas.

À época a que se reportam estas crónicas, combatia-se por um ideário que apontava para a defesa intransigente do Império Ultramarino como parte integrante e inalienável do todo nacional. Ideário bem arquitectado e melhor montado pelo poder vigente, que entendia que a própria sobrevivência do regime e do próprio País dependia inteiramente do êxito daquelas campanhas. E a Nação, nestes primeiros anos do conflito, parecia aceitar placidamente resignada este desfecho, com algumas lamentações, outras tantas recriminações e alguns, ainda poucos, protestos. Enquanto a guerra prosseguia neste e nos restantes teatros sem outras referências ou perspectivas, alguns valores e preocupações eram simplesmente deixados para trás, num completo menosprezo pela natureza humana deste impenetrável conflito.

A vivência dos combates, pelo menos daqueles prestados em verdadeiro cenário de guerra como o nosso, ia deixando marcas impressivas em alguns dos seus intérpretes, sem que disso o poder instituído mostrasse qualquer remorso ou apresentasse qualquer tipo de terapêutica. Nós, ao nosso nível, na altura também não assumíamos por inteiro essa realidade. Não por inconsciência, má formação ou insensibilidade crónica. Unicamente, todavia, porque em relação a alguns desses aspectos não tínhamos sido alertados, nem existia no campo de preparação para este tipo de campanhas qualquer prevenção específica, profilaxia, ou simples preocupação. Não constava dos manuais, pura e simplesmente, essa séria problemática e como tal, não se discutia, sequer. Marcas essas das quais só viemos a adquirir alguma consciência no decurso dos acontecimentos e já no final do nosso percurso e, bastante tempo depois, face ao tratamento que ao assunto veio a ser dado, cientificamente, um conhecimento bem mais profundo e esclarecedor. A Nação e os seus mentores limitava-se a mandar combater a qualquer preço. Não falando já das aludidas carências materiais, técnicas, logísticas e humanas largamente referenciadas nestas ou moutras crónicas afins, o acompanhamento psicológico dos homens, se assim o quisermos singelamente denominar, em qualquer fase do seu empenhamento, nunca foi visto, tratado ou falado.

Havia efectivamente a chamada "acção psico-social", ou simplesmente "psico", mas esta era destinada unicamente aos então "terroristas", configurada a promover a sua apresentação, a renúncia à luta e aos seus propósitos, em troca de favores e de uma melhor vida, longe das agruras da mata austera. E aí alguma coisa efectivamente se fez, embora com resultados muito aquém daquilo que chegava a ser propalado. Muitos meios foram aqui empenhados, muita doutrina e recursos humanos se consumiram, muitos quadros aqui se esgotaram em campanhas de duvidosa realização, mas tudo vocacionado para a captação de um inimigo e população afectas, que nunca terá consubstanciado resultados à altura do esforço dispendido.

_____

(1) Primeira parte: vd post de 15 de Novembor de 2005 > Guiné 63/74 - CCXCI: Campanha da CCAÇ 2636 (Có, 1969/71) (1): De Santa Margarida ao Pilão ...

Guiné 63/74 - CCXCIII: CCAÇ 2636 (Có, 1969/71) (2): "Periquito vai no mato, que a velhice vai p'ra Bissau"...

Post nº 293 (CCXCIII)


João Varanda, em Có, sentado num enorme bagabaga (feito pelas segregações das formigas gigantes).

© João Varanda (2005)



Segunda parte da história da CCAÇ 2636 (Cacheu e Zona Leste, 1969/71). Autor: João José Varanda, de Coimbra. Há uma parte sobre os "senhores da guerra" (Spínola e Nino Vieira) que será publicada, à parte, noutra altura (1).





Percurso em África

Depois de seis longos dias [em Bissau], a partida para Có levou-nos a saborear não só as implicações bélicas envolventes, mas, não menos importante, também a grandeza dos prazeres que uma terra tão pródiga e fascinante nos pode conceder.

Retirando desta experiência alguns valores acrescidos, compartilhados com o ambiente frenético e redutor da luta que então se travava dentro de uma envolvência onde a magia da terra africana serviu de estímulo e compensação perante as horas amargas da luta, do sofrimento e da alienação de outras referências essenciais.


Primeira etapa: a comissão em Có


Bissau ficará para trás passados que foram estes seis dias (sem outro atractivo que não a ausência da guerra). A noite foi toda passada a levantar arraiais e consumar despedidas, pela manhã cedo ainda nos foi servido o pequeno almoço – café com leite e casqueiro com manteiga.

Em Brá, ao longo de quinhentos metros que iam desde o centro do aquartelamento até à saída da porta de armas, a coluna auto que nos foi atribuída, composta por viaturas civis (para transporte da nossa bagagem) e viaturas militares (Unimog e GMC), foi-se espreguiçando enquanto os problemas logísticos relacionados com a nossa deslocação para Có se resolviam.

Foram longas as horas para colocar a coluna em marcha. Antes da partida, a verificação de que tudo estava em ordem, toda a bagagem, quer pessoal, quer da companhia estava nas viaturas. Cerca das 12,30 horas, com tudo em ordem, eis que após as últimas recomendações do Capitão Medina Matos, este subiu para o lado do condutor do Unimog que abria a coluna, dando ordem ao pessoal para montar nas viaturas.

G3 segura na mão, lenços coloridos no pescoço (cada cor destrinçava o grupo de combate), toca a andar!... Fora dado o sinal para iniciar a marcha até João Landim, era perto (30 Kms), estrada segura, foi rápida a viagem. João Landim era posição isolada e de paragem obrigatória. Fomos bem recebidos e assistidos por um grupo de fuzileiros que fazia segurança da zona, viviam em abrigo subterrâneo na encosta da cambança do Rio Mansoa.


Guiné > 1965/66 >

A famosa jangada que atravessava o Rio Mansoa em João Landim, ligando Bissau com a região do Cacheu

© Virgínio Briote (2005)






O rio Mansoa apresentou-se-nos calmo, com uma cor cinza. Foi atravessado de jangada. Viaturas e homens, em levas ininterruptas, foram sendo transferidos para a outra margem. Foram longas horas neste vai e vem para colocar a companhia do lado de lá de João Landim. A jangada tinha, com bom comportamento, uma vez mais realizado a sua missão. A travessia, dadas as fortes correntes, era tarefa dura. Teve de ser passada a corda de margem a margem, esta servia para evitar que se deslizasse com a corrente e para garantir a atracção no sítio certo, rampa de acesso íngreme da beira rio para a planura que nos separava de um tecto.

Cerca das 6,00 horas da tarde do mesmo dia a travessia de João Landim para a margem do corredor de acesso ao cruzamento de Bula estava finalmente no lado para onde seguíamos Có, lado esse onde nos esperavam prometidos meses de sofrimento e trabalho duríssimo.

Atravessado o rio Mansoa, tínhamos mais umas dezenas de quilómetros de tensão acrescida, uma vez que até ao cruzamento da placa para Bula era território completamente abandonado. Nem sequer era patrulhado. Um grupo de combate de tropa veterana de Có, a CCAÇ 2584, cumpriu a segurança junto à margem do rio Mansoa.

Do lado de Cá de João Landim até ao cruzamento da placa para Bula era perto e por estrada segura. Foi rápida a viagem até à pequena tabanca na margem esquerda da estrada junto à placa para Bula, onde a população veio junto da estrada ver passar a companhia, estendendo-nos o dedo polegar, à laia de saudação e boas vindas à tropa e gritando "Periquito vai no mato”.

Desta pequena tabanca para a frente foi a avançar com precaução até à fatídica curva de Bula onde do lado direito teria existido uma antiga destilaria. Esse local era zona habitualmente pouco acolhedora e de maus resultados para as nossas tropas, era (ponto negro) onde as forças do PAIGC faziam as suas repetidas emboscadas.

Daqui para a frente só Có esperava por nós, aonde chegámos já noite (cerca das 8,30 horas), exaustos por termos feito grande parte do percurso para esta tabanca em cima de viaturas sobre tapete de alcatrão que só ficara interrompido na placa que nos indicava o destacamento de Có, sem luz e cada um agarrado ao do lado para não nos perdermos na escuridão de breu. Contudo, e na primeira experiência, só o cansaço era tudo quanto se podia lamentar.


© João Varanda (2005)


Em Có fomos recebidos pela velhice daCCAÇ 2584, com grande algazarra e desejo de bom regresso. Chegados ao destacamento, o nosso pessoal começou, de imediato, o frenezim da descarga da coluna, e o desenrrascanço de como passar a primeira noite no aquartelamento de Có, já que este era pequeno e não tinha instalações suficientes para nos acolherem na sua totalidade, dado o ajuntamento da nossa companhia com a guarnição normal do aquartelamento da CCAÇ 2584. Mas na guerra há sempre lugar para mais um, e apesar dessa tensão toda a companhia ficou acomodada e tudo correu pelo seu melhor.

Era a nossa primeira noite. A companhia da velhice foi extremamente simpática para connosco, esses nossos camaradas queriam saber novidades frescas da Metrópole, porque as saudades eram imensas, escusado será dizer que todos estávamos descontraídos, embora nos sentíssemos cansados, já que a sobrecarga tinha sido bastante intensa.

Era a carga psicológica a fazer os seus efeitos. Como era dia diferente para o aquartelamento de Có, todo o pessoal, velhice e periquitos, tivemos a novidade dada pelo cantineiro de que o bar estaria toda a noite aberto e onde teríamos café e toda a espécie de bebibasd espirituosas. Foi bem passada a noite e bebeu-se muito bem.

O aquartelamento de Có tinha um aspecto airoso, cada grupo de combate tinha a responsabilidade de um sector de linha defensiva, vivíamos em abrigos subterrâneos ao longo de todo o perímetro do quadrado mal desenhado, que constituía a nossa posição, com cerca de seiscentos metros de lado. Alguns metros mais para dentro ficavam as casernas dos soldados de serviços, seguia-se o refeitório, a cozinha, a padaria, a sede (secretaria) das companhias, o posto médico, e virado para a porta de entrada do aquartelamento, ao lado de um enorme embondeiro, que dava protecção ao abrigo subterrâneo do posto rádio e à messe e alguns quartos para oficiais, ao lado destes um bar cantina, a oficina auto e nos pontos cruciais de defesa em abrigos cavados no chão estavam as peças pesadas de defesa (morteiros 60 e de 81) e as metralhadoras (Bredas, MG, Borzig). Estávamos poderosamente armados, e no centro do aquartelamento havia um imponente posto de vigia, erguido sobre troncos de palmeira e coberto a colmo.

Circundavam o aquartelamento três fiadas de arame farpado distantes entre si de alguns metros, pregadas na estacaria de palmeira, sendo a parte de fora a orla da floresta, capinada, para termos pontos de observação. Ao longo da fiada de arame mais interior estavam os postes de iluminação do perímetro do aquartelamento com os seus holofotes orientados para o exterior, e cuja a energia era garantida por um gerador, metido num abrigo subterrâneo.

Fora do perímetro defensivo situava-se a fonte de abastecimento de água, que por sua vez descarregava para um pequeno lago, onde colectivamente, nós e população, tomavamos o nosso duche diário. Ainda também, a morança e a tasca familiar (café e minimercado) do velho Tavares, um cabo-verdiano estabelecido no local, pai de duas lindas filhas, tendo uma delas perecido numa flagelação levada a cabo pelas forças do PAIGC ao aquartelamento cuja defesa estava a cargo da CCAÇ 2584, em início de comissão.

Este velho Tavares dizia-se que fazia a guerra nos dois lados, pois os guias da nossa tropa garantiam que sempre que as tropas do PAIGC se aproximavam de Có era no quintal da morança do velho Tavares que, na véspera da iminência de ataque a Có, faziam o local de abrigo e arrecadações de material de guerra inimigo.

Paredes meias com o aquartelamento ficava a tabanca, onde se poderiam ver enormes, mangueiros e palmeiras. Contornava o aquartelamento à excepção da ala norte, onde não havia habitações de africanos. A tabanca era também cercada por arame farpado, junto ao qual existiam diversos postos fortificados para sentinelas (milícias ou tropas paramilitares que faziam parte do dispositivo militar implantado no território, também designadas por tropas auxiliares, ou de segunda linha). Para estes, as causas da independência, da autonomia ou as de uma Pátria para os guineenses não constavam do seu ideário.

Sentiam-se confortavelmente bem a nosso lado, tão Portugueses como nós, sem deixarem contudo de ser Guineenses e amarem a sua terra. Nunca será demais assinalar o comportamento irrepreensível, abnegado, corajoso mesmo desta gente. Duma coragem talvez diferente da nossa, mas não menos eficaz, verdadeira, eloquente. Arquitectada numa longa experiência de combate, numa fé e num patriotismo insuperáveis. Tudo executado com simplicidade, facilidade, gosto e redobradas dose de determinação e vigor. Foram estes homens singulares que também escreveram páginas gloriosas de sangue e sacrifício, que se bateram melhor que nós por todos estes ideais, que nos fizeram acreditar no sucesso daquela guerra, que por lá ficaram. Entregues a si próprios, abandonados à sua sorte, pagando com a vida aquilo que com a mesma vida haviam combatido e sonhado, a nosso lado, sem nada nos exigirem.


A nossa história operacional


Enquanto se combatia um inimigo que não dava tréguas nem descanso numa guerra também ela intratável, havia espaço, tempo e vontade para outros combates. E homens dispostos a assumirem essas e outras preocupações que muito nos honraram, pelos resultados obtidos e pela satisfação gratificante de mais estas missões cumpridas.

À época a que se reportam estas crónicas, combatia-se por um ideário que apontava para a defesa intransigente do Império Ultramarino como parte integrante e inalienável do todo nacional. Ideário bem arquitectado e melhor montado pelo poder vigente, que entendia que a própria sobrevivência do regime e do próprio País dependia inteiramente do êxito daquelas campanhas. E a Nação, nestes primeiros anos do conflito, parecia aceitar placidamente resignada este desfecho, com algumas lamentações, outras tantas recriminações e alguns, ainda poucos, protestos. Enquanto a guerra prosseguia neste e nos restantes teatros sem outras referências ou perspectivas, alguns valores e preocupações eram simplesmente deixados para trás, num completo menosprezo pela natureza humana deste impenetrável conflito.

A vivência dos combates, pelo menos daqueles prestados em verdadeiro cenário de guerra como o nosso, ia deixando marcas impressivas em alguns dos seus intérpretes, sem que disso o poder instituído mostrasse qualquer remorso ou apresentasse qualquer tipo de terapêutica. Nós, ao nosso nível, na altura também não assumíamos por inteiro essa realidade. Não por inconsciência, má formação ou insensibilidade crónica. Unicamente, todavia, porque em relação a alguns desses aspectos não tínhamos sido alertados, nem existia no campo de preparação para este tipo de campanhas qualquer prevenção específica, profilaxia, ou simples preocupação. Não constava dos manuais, pura e simplesmente, essa séria problemática e como tal, não se discutia, sequer. Marcas essas das quais só viemos a adquirir alguma consciência no decurso dos acontecimentos e já no final do nosso percurso e, bastante tempo depois, face ao tratamento que ao assunto veio a ser dado, cientificamente, um conhecimento bem mais profundo e esclarecedor. A Nação e os seus mentores limitava-se a mandar combater a qualquer preço. Não falando já das aludidas carências materiais, técnicas, logísticas e humanas largamente referenciadas nestas ou moutras crónicas afins, o acompanhamento psicológico dos homens, se assim o quisermos singelamente denominar, em qualquer fase do seu empenhamento, nunca foi visto, tratado ou falado.

Havia efectivamente a chamada "acção psico-social", ou simplesmente "psico", mas esta era destinada unicamente aos então "terroristas", configurada a promover a sua apresentação, a renúncia à luta e aos seus propósitos, em troca de favores e de uma melhor vida, longe das agruras da mata austera. E aí alguma coisa efectivamente se fez, embora com resultados muito aquém daquilo que chegava a ser propalado. Muitos meios foram aqui empenhados, muita doutrina e recursos humanos se consumiram, muitos quadros aqui se esgotaram em campanhas de duvidosa realização, mas tudo vocacionado para a captação de um inimigo e população afectas, que nunca terá consubstanciado resultados à altura do esforço dispendido.

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(1) Primeira parte: vd post de 15 de Novembor de 2005 > Guiné 63/74 - CCXCI: Campanha da CCAÇ 2636 (Có, 1969/71) (1): De Santa Margarida ao Pilão ...