1. Através do Humberto Reis, reencontrei o Jorge Cabral que é do nosso tempo de Guiné. Falei com ele pelo telefone, soube do crescente interesse com que ele tem acompanhado o desenvolvimento da nossa tertúlia e lido as nossas estórias...
O Jorge era, para mim, o mais paisano dos militares que eu conheci na Guiné: alferes miliciano, foi o comandante do Pel Caç Nat 63, afecto ao Sector L1 (Bambadinca) da Zona Leste, tendo estado em Fá Mandinga e em Missirá (1969/71).
Em Fá não se limitava a ser um heterodoxo representante do exército colonial, actor e crítico ao mesmo tempo. Era também homem grande, pai, patrão, chefe de tabanca, conselheiro, amigo do PAIGC, poeta, antropólogo, feiticeiro, cherno, médico, sexólogo, advogado e não sei que mais. Um verdadeiro Lawrence da Guiné. Alguns dos seus amigos e companheiros de Bambadinca (aonde ele ia com frequência matar a sede) chegaram a recear que ele ficasse completamente cafrealizado!...
Até ao dia em que chegou o circo dos Comandos Africanos (1): montaram tenda em Fá Mandinga e daí só zarparam para a misteriosa Op Mar Verde ... Vendo o caso mal parado, e não querendo correr o risco de ser enforcado num candeeiro público em Conacri, o Jorge lá conseguiu mexer os seus pauzinhos e ser destacado para a Missirá, mais a norte, embora se tratasse de um destacamento mais exposto às morteiradas e roquetadas dos camaradas do PAIGC... O que para o Jorge não era problema, já que era o único de todos nós a quem o PAIGG tinha respeito. Desde o famoso dia em que foi atrás deles, na bolanha, a apaziguá-los e a tranquilizá-los:
- Vocês não tenham medo, não fujam, sou o Cabral!
Ele um dia há-de contar essa estória para gáudio (e cultura militar) da nossa tertúlia... O convite está feito e ele irá aparecer por aqui, um belo dia destes... Mais: irá explicar-nos como é que foi parar, já em finais de comissão, em 1971, a Madina/Belel, sem ter sido convidado... Julgo que lá foi beber uns copos com os camaradas do PAIGC, aproveitando uma boleia dos paraquedistas!...
2. Outro Jorge, mas este Santos, que é um dos principais fornecedores desta tertúlia, tinha-me mandado há tempos, em 7 de Julho passado, uma mensagem com poemas, em anexo, sobre a Guiné. Eu não consigo dar vazão a tudo o que ele me manda: não há nada sobre a Guerra Colonial que lhe escape. Vasculhando nos arquivos da minha caixa de correio, não é que vou dar com um poema do Jorge Cabral, com data de 1970, escrito em Missirá ?
É claro que não resisto a publicá-lo. Com isso mato dois coelhos de um só tiro: dou a conhecer esta faceta de poeta que muitos dos seus camaradas de Bambadinca não conheciam; e, por outro, divulgo também a APOIAR - Associação de Apoio aos Ex-Combatentes Vítima de Stress de Guerra(2). Esta associação tem uma revista, bimestral, sendo o último número editado o 36º, de Maio-Junho de 2005. Esta associação médico, psicológico e jurídico aos seus associados, ex-combatentes da guerra colonial.
O belíssimo poema do Jorge Cabral aqui vai:
O HELICÓPTERO
Pelo ar lento que aquece
Um pássaro de ferro e aço
Leva o morto que apodrece
Na boca mais um abraço
A gente fica a pensar
Mas mais um morto que interessa
Já vêm mais pelo mar
Vêm muitos e depressa
A gente pensa
Mas fica com o dedo no gatilho
Na garganta um nó que pica
Na preta o ventre com o filho.
Jorge Cabral – Missirá, Guiné – 1970
In Jornal “Apoiar”. 23 (Jan/Mar 2002)
(Selecção de Jorge Santos, membro da nossa tertúlia, e autor da página sobre A Guerra Colonial.
3. O Jorge Cabral é hoje um ilustre advogado na nossa praça e professor universitário, director do Instituto de Criminologia da Universidade Lusófona de Humanidades e Tecnologias.
Para que os nossos tertulianos tenham uma ideia mais completa desta personalidade fascinante, dou-vos a conhecer uma entrevista que ele deu a dois dos seus alunos (3), como testemunha presencial de uma acto de mutilação genital feminina (MGF) na Guiné, em 1969. Pelo contexto e época, terá sido em Fá Mandinga. O Jorge Cabral deverá ser um dos raros homens (e brancos) a assistir a um controverso ritual de passagem como este, ainda profundamente enraízado na cultura de certos povos africanos. O problema da MGF já foi aqui abordado neste Blogue (4).
Entrevista ao Prof. Dr. Jorge Cabral
p: Quando é que assistiu à excisão?
r: Em 1969
p: Foi na Guiné Bissau?
r: Sim
p: Porque é que quis assistir?
r: Por curiosidade antropológica. Eu fui sempre uma pessoa extremamente curiosa. O problema da colonização portuguesa, que é o problema de qualquer colonização, é que o colonizador não fez um esforço para perceber a cultura do colonizado. A colonização é isto: partir da base que a nossa cultura é que é.
Neste sentido, já que eu estava numa posição privilegiada, procurei compreender alguma coisa dessa cultura e, obviamente, a excisão fazia parte dela. Também procurei compreender o tipo de famílias, as relações familiares, perceber porque é que alguns cortavam as cabeças a outros, qual o significado de cortarem a cabeça e pô-la nos pântanos... procurei entender, embora não seja antropólogo.
Eu nessa altura nunca tinha ouvido falar da excisão... em 69.
Foi uma experiência sobretudo traumatizante. Se calhar tenho o trauma da excisão!
p: Mas foi lá de férias, estava de passagem...?
r: Não, não! eu estava na guerra!
p: Qual foi o tipo de excisão a que assistiu?
r: Foi a mais simples, foi a ablação do clítoris.
p: Em que condições foi feita?
r: As condições eram más... mas estavam várias miúdas para fazer a cerimónia. A cerimónia só tinha mulheres, a rapariga... era uma miudita de onze anos talvez... estava amarrada, era evidente que gritava, gritava bastante e era uma mulher mais velha que fez o corte para a ablação do clítoris.
p: Com que objecto?
r: Com uma faca e sem quaisquer condições de higiene, aliás, como era feita a circuncisão dos miúdos. Era feita com uma faca ou com uma lâmina.
p: Como é que foi feita a abordagem, como é que se proporcionou a hipótese de ver uma excisão?
r: Eu estava numa situação muito privilegiada, primeiro porque eu era chefe daquilo tudo, segundo porque estava só com soldados africanos e com população africana, cada soldado tinha as suas três mulheres, não sei quantos filhos, de maneira que eu era, pelo menos a um nível simbólico, uma espécie de chefe. Nesse sentido, por curiosidade, falei com mulheres, não falei com homens, e disse que estaria interessado. Primeiro negaram, disseram que os homens não podiam assistir e eu lá expliquei, lá entreguei dinheiro e lá consegui.
A cerimónia não é feita na aldeia, é feita fora da aldeia.
p: Porquê?
r: Porque mesmo entre eles é dotado de algum secretismo, é uma cerimónia que tem alguma coisa de religioso por isso mesmo não é feita na aldeia, é feita na floresta.
A rapariga não sabia como era. Há simultaneamente medo mas algum orgulho porque significa uma passagem para uma idade adulta, por isso há essa duplicidade, penso eu, ao nível das miúdas que têm medo, é evidente, porque as outras também já contaram como foi e que vão sofrer muito, mas ao mesmo tempo... se calhar é como usar o primeiro sutiã. Há efectivamente um certo orgulho.
p: Qual é a posição dos homens em relação à excisão?
r: Os homens concordam até porque eles não aceitam para mulher alguém que não seja excisada.
Dentro da própria comunidade uma rapariga que não tenha passado pela excisão, dificilmente arranjará marido. Uma rapariga que não tenha feito a excisão é uma criança por isso elas submetem-se para evitarem a exclusão.
Não podemos generalizar e falar da mulher africana porque mesmo na Guiné não são todas as etnias que fazem a excisão. Normalmente são os islamizados. Há excisões muito mais gravosas principalmente na Somália, na Etiópia.
Há outro tipo de excisão, já agora. É uma excisão que se faz em Angola, eu ainda estou a começar a estudar isso, é uma excisão ao contrário, serve para mulher ter mais prazer durante o acto sexual. Ainda não vi nada disso escrito, li isso num romance. Já perguntei a várias angolanas e elas não sabem nada mas é uma excisão para dar mais prazer à mulher, não é como a outra. Não é a ablação do clítoris, é como um “desembaraçar” do clítoris e também é feita na pré-adolescência, aos 12, 13 anos.
p: A maior parte das pessoas é contra esta prática porque é uma violação dos direitos humanos...
r: Sim, embora isso hoje seja muito discutível há uma posição radical que diz que isto ofende os direitos humanos mas há vozes autorizadas que a defendem e eu já tive a oportunidade de assistir a uma conferência, creio que há três anos, em Valência, em que um professor dizia “O que é que nós temos a ver com isso?! Isso é um valor cultural, porque é que nós estamos sempre a ver de uma perspectiva europeia, europocêntrica o problema?”
Por isso há vozes que discordam desta luta contra a mutilação sexual.
p: Mas hoje em dia há organizações e outras pessoas k trabalham no terreno, no sentido de dissuadirem as mulheres a praticar este tipo de ritual.
r: Pode ter o efeito contrário, não é?!, se é proibido...
P: O isolamento destas tribos torna muito mais difícil o acesso a qualquer alteração na mentalidade destas pessoas?
R: Será muito difícil. Se nós defendêssemos sempre os mesmo valores culturais não havia evolução. É precisamente a mesma coisa, os chineses partiam os pés às crianças, os aztecas apertavam os olhos, o meu avô tomava banho uma vez por mês... quer dizer esses são valores culturais. As coisas alteram-se.
p: O que é que a lei portuguesa diz acerca disto?
r: A lei portuguesa não prevê a excisão. Se aparecer algum caso será um crime contra a integridade física grave, se aparecer algum caso.
Já me contaram um caso que apareceu num hospital em que os próprios médicos nunca tinham ouvido falar da excisão e não foi levantado nenhum processo crime. Os médicos apenas verificaram que havia uma ablação mas não sabiam mais nada.
p: A quem seria aplicada a medida?
r: Neste caso seria contra a mãe. Ela é que é responsável porque leva a criança e, também, contra quem fez isso. É evidente que os casos vão aparecer. Será inevitável que qualquer dia apareça um caso destes, em França já foram julgados alguns casos.
p: Quer dizer que não estamos preparados...
r: Claro que não! É natural que uma miúda apanhe uma infecção qualquer, vá para a Estefânia e... é natural! O que o médico devia fazer era participar imediatamente mas para isso é preciso que os médicos saibam o que é a excisão e que se pratica em Portugal .
_____________
Notas de L.G.
(1) Vd. post de 11 de Julho de 2005 > Guiné 69/71 - CIII: Comandos africanos: do Pilão a Conacri
Já na altura eu tinha escrito o seguinte parágrafo, referindo o nome do Cabral:
"Um dos comandos africanos mais tristemente famosos era o furriel Uloma, filho de régulo, da zona de Varela, e um dos raros felupes que vestiam a farda do exército português, segundo se dizia no meu tempo. Uloma era uma espécie de coqueluche ou mscote da companhia, não só pelo seu aspecto físico de orangotango (sem ofensa para os felupes e para os orangotangos) como sobretduo pelos seus estranhos rituais de guerra e pela sua macabra colecção de cabeças cortadas ao inimigo, conservadas em álcool (trinta e duas, ao que parece, segundo os cálculos do Carlos França, que terá privado com ele, em Fá).
"Essas práticas culturais de bom selvagem teriam a ver com as reminiscências do canibalismo ritual entre os felupes – como me tentava, em vão, explicar, em jeito de antropólogo, com uma garrafa de uísque na mão, o meu amigo Cabral, poeta, antifascista, calejado nas lutas estudantis, antimilitarista, filho de militar de carreira, alferes miliciano, tão dilacerado como eu pela brutal irracionalidade daquela guerra, e que privava como os comandos africanos na sua qualidade de comandante do Pelotão de Caçadores Nativos local, o PEL CAÇ NAT 63".
(2) Sede da Associaão Apoiar:
Rua C, Lote 10, Loja 1.10 - Piso 1
Bairro da Liberdade
1070-023 Lisboa~
Telefones: 213 870 174 / 213 808 000
E-mail: apoiar@mail.telepac.pt
(3) Mafalda Sofia Félix dos Santos; Paulo César Lino Belchior de Matos - Mutilação genital feminina. Trabalho apresentado na Universidade Lusófona de Humanidades e Tecnologias no Curso de Pós-Graduação em Criminologia. s/d.
(4) Vd. post de 4 de Maio de 2005 > Guiné 69/71 - XII: O silêncio dos tugas face à MGF (Mutilação Genital Feminina)
blogue-fora-nada. homo socius ergo blogus [sum]. homem social logo blogador. em sociobloguês nos entendemos. o port(ug)al dos (por)tugas. a prova dos blogue-fora-nada. a guerra colonial. a guiné. do chacheu ao boe. de bissau a bambadinca. os cacimbados. o geba. o corubal. os rios. o macaréu da nossa revolta. o humor nosso de cada dia nos dai hoje.lá vamos blogando e rindo. e venham mais cinco (camaradas). e vieram tantos que isto se transformou numa caserna. a maior caserna virtual da Net!
17 dezembro 2005
Guiné 63/74 - CCCLXXXII: Vocês não tenham medo, não fujam, sou o Cabral (Fá, 1969/71)
1. Através do Humberto Reis, reencontrei o Jorge Cabral que é do nosso tempo de Guiné. Falei com ele pelo telefone, soube do crescente interesse com que ele tem acompanhado o desenvolvimento da nossa tertúlia e lido as nossas estórias...
O Jorge era, para mim, o mais paisano dos militares que eu conheci na Guiné: alferes miliciano, foi o comandante do Pel Caç Nat 63, afecto ao Sector L1 (Bambadinca) da Zona Leste, tendo estado em Fá Mandinga e em Missirá (1969/71).
Em Fá não se limitava a ser um heterodoxo representante do exército colonial, actor e crítico ao mesmo tempo. Era também homem grande, pai, patrão, chefe de tabanca, conselheiro, amigo do PAIGC, poeta, antropólogo, feiticeiro, cherno, médico, sexólogo, advogado e não sei que mais. Um verdadeiro Lawrence da Guiné. Alguns dos seus amigos e companheiros de Bambadinca (aonde ele ia com frequência matar a sede) chegaram a recear que ele ficasse completamente cafrealizado!...
Até ao dia em que chegou o circo dos Comandos Africanos (1): montaram tenda em Fá Mandinga e daí só zarparam para a misteriosa Op Mar Verde ... Vendo o caso mal parado, e não querendo correr o risco de ser enforcado num candeeiro público em Conacri, o Jorge lá conseguiu mexer os seus pauzinhos e ser destacado para a Missirá, mais a norte, embora se tratasse de um destacamento mais exposto às morteiradas e roquetadas dos camaradas do PAIGC... O que para o Jorge não era problema, já que era o único de todos nós a quem o PAIGG tinha respeito. Desde o famoso dia em que foi atrás deles, na bolanha, a apaziguá-los e a tranquilizá-los:
- Vocês não tenham medo, não fujam, sou o Cabral!
Ele um dia há-de contar essa estória para gáudio (e cultura militar) da nossa tertúlia... O convite está feito e ele irá aparecer por aqui, um belo dia destes... Mais: irá explicar-nos como é que foi parar, já em finais de comissão, em 1971, a Madina/Belel, sem ter sido convidado... Julgo que lá foi beber uns copos com os camaradas do PAIGC, aproveitando uma boleia dos paraquedistas!...
2. Outro Jorge, mas este Santos, que é um dos principais fornecedores desta tertúlia, tinha-me mandado há tempos, em 7 de Julho passado, uma mensagem com poemas, em anexo, sobre a Guiné. Eu não consigo dar vazão a tudo o que ele me manda: não há nada sobre a Guerra Colonial que lhe escape. Vasculhando nos arquivos da minha caixa de correio, não é que vou dar com um poema do Jorge Cabral, com data de 1970, escrito em Missirá ?
É claro que não resisto a publicá-lo. Com isso mato dois coelhos de um só tiro: dou a conhecer esta faceta de poeta que muitos dos seus camaradas de Bambadinca não conheciam; e, por outro, divulgo também a APOIAR - Associação de Apoio aos Ex-Combatentes Vítima de Stress de Guerra(2). Esta associação tem uma revista, bimestral, sendo o último número editado o 36º, de Maio-Junho de 2005. Esta associação médico, psicológico e jurídico aos seus associados, ex-combatentes da guerra colonial.
O belíssimo poema do Jorge Cabral aqui vai:
O HELICÓPTERO
Pelo ar lento que aquece
Um pássaro de ferro e aço
Leva o morto que apodrece
Na boca mais um abraço
A gente fica a pensar
Mas mais um morto que interessa
Já vêm mais pelo mar
Vêm muitos e depressa
A gente pensa
Mas fica com o dedo no gatilho
Na garganta um nó que pica
Na preta o ventre com o filho.
Jorge Cabral – Missirá, Guiné – 1970
In Jornal “Apoiar”. 23 (Jan/Mar 2002)
(Selecção de Jorge Santos, membro da nossa tertúlia, e autor da página sobre A Guerra Colonial.
3. O Jorge Cabral é hoje um ilustre advogado na nossa praça e professor universitário, director do Instituto de Criminologia da Universidade Lusófona de Humanidades e Tecnologias.
Para que os nossos tertulianos tenham uma ideia mais completa desta personalidade fascinante, dou-vos a conhecer uma entrevista que ele deu a dois dos seus alunos (3), como testemunha presencial de uma acto de mutilação genital feminina (MGF) na Guiné, em 1969. Pelo contexto e época, terá sido em Fá Mandinga. O Jorge Cabral deverá ser um dos raros homens (e brancos) a assistir a um controverso ritual de passagem como este, ainda profundamente enraízado na cultura de certos povos africanos. O problema da MGF já foi aqui abordado neste Blogue (4).
Entrevista ao Prof. Dr. Jorge Cabral
p: Quando é que assistiu à excisão?
r: Em 1969
p: Foi na Guiné Bissau?
r: Sim
p: Porque é que quis assistir?
r: Por curiosidade antropológica. Eu fui sempre uma pessoa extremamente curiosa. O problema da colonização portuguesa, que é o problema de qualquer colonização, é que o colonizador não fez um esforço para perceber a cultura do colonizado. A colonização é isto: partir da base que a nossa cultura é que é.
Neste sentido, já que eu estava numa posição privilegiada, procurei compreender alguma coisa dessa cultura e, obviamente, a excisão fazia parte dela. Também procurei compreender o tipo de famílias, as relações familiares, perceber porque é que alguns cortavam as cabeças a outros, qual o significado de cortarem a cabeça e pô-la nos pântanos... procurei entender, embora não seja antropólogo.
Eu nessa altura nunca tinha ouvido falar da excisão... em 69.
Foi uma experiência sobretudo traumatizante. Se calhar tenho o trauma da excisão!
p: Mas foi lá de férias, estava de passagem...?
r: Não, não! eu estava na guerra!
p: Qual foi o tipo de excisão a que assistiu?
r: Foi a mais simples, foi a ablação do clítoris.
p: Em que condições foi feita?
r: As condições eram más... mas estavam várias miúdas para fazer a cerimónia. A cerimónia só tinha mulheres, a rapariga... era uma miudita de onze anos talvez... estava amarrada, era evidente que gritava, gritava bastante e era uma mulher mais velha que fez o corte para a ablação do clítoris.
p: Com que objecto?
r: Com uma faca e sem quaisquer condições de higiene, aliás, como era feita a circuncisão dos miúdos. Era feita com uma faca ou com uma lâmina.
p: Como é que foi feita a abordagem, como é que se proporcionou a hipótese de ver uma excisão?
r: Eu estava numa situação muito privilegiada, primeiro porque eu era chefe daquilo tudo, segundo porque estava só com soldados africanos e com população africana, cada soldado tinha as suas três mulheres, não sei quantos filhos, de maneira que eu era, pelo menos a um nível simbólico, uma espécie de chefe. Nesse sentido, por curiosidade, falei com mulheres, não falei com homens, e disse que estaria interessado. Primeiro negaram, disseram que os homens não podiam assistir e eu lá expliquei, lá entreguei dinheiro e lá consegui.
A cerimónia não é feita na aldeia, é feita fora da aldeia.
p: Porquê?
r: Porque mesmo entre eles é dotado de algum secretismo, é uma cerimónia que tem alguma coisa de religioso por isso mesmo não é feita na aldeia, é feita na floresta.
A rapariga não sabia como era. Há simultaneamente medo mas algum orgulho porque significa uma passagem para uma idade adulta, por isso há essa duplicidade, penso eu, ao nível das miúdas que têm medo, é evidente, porque as outras também já contaram como foi e que vão sofrer muito, mas ao mesmo tempo... se calhar é como usar o primeiro sutiã. Há efectivamente um certo orgulho.
p: Qual é a posição dos homens em relação à excisão?
r: Os homens concordam até porque eles não aceitam para mulher alguém que não seja excisada.
Dentro da própria comunidade uma rapariga que não tenha passado pela excisão, dificilmente arranjará marido. Uma rapariga que não tenha feito a excisão é uma criança por isso elas submetem-se para evitarem a exclusão.
Não podemos generalizar e falar da mulher africana porque mesmo na Guiné não são todas as etnias que fazem a excisão. Normalmente são os islamizados. Há excisões muito mais gravosas principalmente na Somália, na Etiópia.
Há outro tipo de excisão, já agora. É uma excisão que se faz em Angola, eu ainda estou a começar a estudar isso, é uma excisão ao contrário, serve para mulher ter mais prazer durante o acto sexual. Ainda não vi nada disso escrito, li isso num romance. Já perguntei a várias angolanas e elas não sabem nada mas é uma excisão para dar mais prazer à mulher, não é como a outra. Não é a ablação do clítoris, é como um “desembaraçar” do clítoris e também é feita na pré-adolescência, aos 12, 13 anos.
p: A maior parte das pessoas é contra esta prática porque é uma violação dos direitos humanos...
r: Sim, embora isso hoje seja muito discutível há uma posição radical que diz que isto ofende os direitos humanos mas há vozes autorizadas que a defendem e eu já tive a oportunidade de assistir a uma conferência, creio que há três anos, em Valência, em que um professor dizia “O que é que nós temos a ver com isso?! Isso é um valor cultural, porque é que nós estamos sempre a ver de uma perspectiva europeia, europocêntrica o problema?”
Por isso há vozes que discordam desta luta contra a mutilação sexual.
p: Mas hoje em dia há organizações e outras pessoas k trabalham no terreno, no sentido de dissuadirem as mulheres a praticar este tipo de ritual.
r: Pode ter o efeito contrário, não é?!, se é proibido...
P: O isolamento destas tribos torna muito mais difícil o acesso a qualquer alteração na mentalidade destas pessoas?
R: Será muito difícil. Se nós defendêssemos sempre os mesmo valores culturais não havia evolução. É precisamente a mesma coisa, os chineses partiam os pés às crianças, os aztecas apertavam os olhos, o meu avô tomava banho uma vez por mês... quer dizer esses são valores culturais. As coisas alteram-se.
p: O que é que a lei portuguesa diz acerca disto?
r: A lei portuguesa não prevê a excisão. Se aparecer algum caso será um crime contra a integridade física grave, se aparecer algum caso.
Já me contaram um caso que apareceu num hospital em que os próprios médicos nunca tinham ouvido falar da excisão e não foi levantado nenhum processo crime. Os médicos apenas verificaram que havia uma ablação mas não sabiam mais nada.
p: A quem seria aplicada a medida?
r: Neste caso seria contra a mãe. Ela é que é responsável porque leva a criança e, também, contra quem fez isso. É evidente que os casos vão aparecer. Será inevitável que qualquer dia apareça um caso destes, em França já foram julgados alguns casos.
p: Quer dizer que não estamos preparados...
r: Claro que não! É natural que uma miúda apanhe uma infecção qualquer, vá para a Estefânia e... é natural! O que o médico devia fazer era participar imediatamente mas para isso é preciso que os médicos saibam o que é a excisão e que se pratica em Portugal .
_____________
Notas de L.G.
(1) Vd. post de 11 de Julho de 2005 > Guiné 69/71 - CIII: Comandos africanos: do Pilão a Conacri
Já na altura eu tinha escrito o seguinte parágrafo, referindo o nome do Cabral:
"Um dos comandos africanos mais tristemente famosos era o furriel Uloma, filho de régulo, da zona de Varela, e um dos raros felupes que vestiam a farda do exército português, segundo se dizia no meu tempo. Uloma era uma espécie de coqueluche ou mscote da companhia, não só pelo seu aspecto físico de orangotango (sem ofensa para os felupes e para os orangotangos) como sobretduo pelos seus estranhos rituais de guerra e pela sua macabra colecção de cabeças cortadas ao inimigo, conservadas em álcool (trinta e duas, ao que parece, segundo os cálculos do Carlos França, que terá privado com ele, em Fá).
"Essas práticas culturais de bom selvagem teriam a ver com as reminiscências do canibalismo ritual entre os felupes – como me tentava, em vão, explicar, em jeito de antropólogo, com uma garrafa de uísque na mão, o meu amigo Cabral, poeta, antifascista, calejado nas lutas estudantis, antimilitarista, filho de militar de carreira, alferes miliciano, tão dilacerado como eu pela brutal irracionalidade daquela guerra, e que privava como os comandos africanos na sua qualidade de comandante do Pelotão de Caçadores Nativos local, o PEL CAÇ NAT 63".
(2) Sede da Associaão Apoiar:
Rua C, Lote 10, Loja 1.10 - Piso 1
Bairro da Liberdade
1070-023 Lisboa~
Telefones: 213 870 174 / 213 808 000
E-mail: apoiar@mail.telepac.pt
(3) Mafalda Sofia Félix dos Santos; Paulo César Lino Belchior de Matos - Mutilação genital feminina. Trabalho apresentado na Universidade Lusófona de Humanidades e Tecnologias no Curso de Pós-Graduação em Criminologia. s/d.
(4) Vd. post de 4 de Maio de 2005 > Guiné 69/71 - XII: O silêncio dos tugas face à MGF (Mutilação Genital Feminina)
O Jorge era, para mim, o mais paisano dos militares que eu conheci na Guiné: alferes miliciano, foi o comandante do Pel Caç Nat 63, afecto ao Sector L1 (Bambadinca) da Zona Leste, tendo estado em Fá Mandinga e em Missirá (1969/71).
Em Fá não se limitava a ser um heterodoxo representante do exército colonial, actor e crítico ao mesmo tempo. Era também homem grande, pai, patrão, chefe de tabanca, conselheiro, amigo do PAIGC, poeta, antropólogo, feiticeiro, cherno, médico, sexólogo, advogado e não sei que mais. Um verdadeiro Lawrence da Guiné. Alguns dos seus amigos e companheiros de Bambadinca (aonde ele ia com frequência matar a sede) chegaram a recear que ele ficasse completamente cafrealizado!...
Até ao dia em que chegou o circo dos Comandos Africanos (1): montaram tenda em Fá Mandinga e daí só zarparam para a misteriosa Op Mar Verde ... Vendo o caso mal parado, e não querendo correr o risco de ser enforcado num candeeiro público em Conacri, o Jorge lá conseguiu mexer os seus pauzinhos e ser destacado para a Missirá, mais a norte, embora se tratasse de um destacamento mais exposto às morteiradas e roquetadas dos camaradas do PAIGC... O que para o Jorge não era problema, já que era o único de todos nós a quem o PAIGG tinha respeito. Desde o famoso dia em que foi atrás deles, na bolanha, a apaziguá-los e a tranquilizá-los:
- Vocês não tenham medo, não fujam, sou o Cabral!
Ele um dia há-de contar essa estória para gáudio (e cultura militar) da nossa tertúlia... O convite está feito e ele irá aparecer por aqui, um belo dia destes... Mais: irá explicar-nos como é que foi parar, já em finais de comissão, em 1971, a Madina/Belel, sem ter sido convidado... Julgo que lá foi beber uns copos com os camaradas do PAIGC, aproveitando uma boleia dos paraquedistas!...
2. Outro Jorge, mas este Santos, que é um dos principais fornecedores desta tertúlia, tinha-me mandado há tempos, em 7 de Julho passado, uma mensagem com poemas, em anexo, sobre a Guiné. Eu não consigo dar vazão a tudo o que ele me manda: não há nada sobre a Guerra Colonial que lhe escape. Vasculhando nos arquivos da minha caixa de correio, não é que vou dar com um poema do Jorge Cabral, com data de 1970, escrito em Missirá ?
É claro que não resisto a publicá-lo. Com isso mato dois coelhos de um só tiro: dou a conhecer esta faceta de poeta que muitos dos seus camaradas de Bambadinca não conheciam; e, por outro, divulgo também a APOIAR - Associação de Apoio aos Ex-Combatentes Vítima de Stress de Guerra(2). Esta associação tem uma revista, bimestral, sendo o último número editado o 36º, de Maio-Junho de 2005. Esta associação médico, psicológico e jurídico aos seus associados, ex-combatentes da guerra colonial.
O belíssimo poema do Jorge Cabral aqui vai:
O HELICÓPTERO
Pelo ar lento que aquece
Um pássaro de ferro e aço
Leva o morto que apodrece
Na boca mais um abraço
A gente fica a pensar
Mas mais um morto que interessa
Já vêm mais pelo mar
Vêm muitos e depressa
A gente pensa
Mas fica com o dedo no gatilho
Na garganta um nó que pica
Na preta o ventre com o filho.
Jorge Cabral – Missirá, Guiné – 1970
In Jornal “Apoiar”. 23 (Jan/Mar 2002)
(Selecção de Jorge Santos, membro da nossa tertúlia, e autor da página sobre A Guerra Colonial.
3. O Jorge Cabral é hoje um ilustre advogado na nossa praça e professor universitário, director do Instituto de Criminologia da Universidade Lusófona de Humanidades e Tecnologias.
Para que os nossos tertulianos tenham uma ideia mais completa desta personalidade fascinante, dou-vos a conhecer uma entrevista que ele deu a dois dos seus alunos (3), como testemunha presencial de uma acto de mutilação genital feminina (MGF) na Guiné, em 1969. Pelo contexto e época, terá sido em Fá Mandinga. O Jorge Cabral deverá ser um dos raros homens (e brancos) a assistir a um controverso ritual de passagem como este, ainda profundamente enraízado na cultura de certos povos africanos. O problema da MGF já foi aqui abordado neste Blogue (4).
Entrevista ao Prof. Dr. Jorge Cabral
p: Quando é que assistiu à excisão?
r: Em 1969
p: Foi na Guiné Bissau?
r: Sim
p: Porque é que quis assistir?
r: Por curiosidade antropológica. Eu fui sempre uma pessoa extremamente curiosa. O problema da colonização portuguesa, que é o problema de qualquer colonização, é que o colonizador não fez um esforço para perceber a cultura do colonizado. A colonização é isto: partir da base que a nossa cultura é que é.
Neste sentido, já que eu estava numa posição privilegiada, procurei compreender alguma coisa dessa cultura e, obviamente, a excisão fazia parte dela. Também procurei compreender o tipo de famílias, as relações familiares, perceber porque é que alguns cortavam as cabeças a outros, qual o significado de cortarem a cabeça e pô-la nos pântanos... procurei entender, embora não seja antropólogo.
Eu nessa altura nunca tinha ouvido falar da excisão... em 69.
Foi uma experiência sobretudo traumatizante. Se calhar tenho o trauma da excisão!
p: Mas foi lá de férias, estava de passagem...?
r: Não, não! eu estava na guerra!
p: Qual foi o tipo de excisão a que assistiu?
r: Foi a mais simples, foi a ablação do clítoris.
p: Em que condições foi feita?
r: As condições eram más... mas estavam várias miúdas para fazer a cerimónia. A cerimónia só tinha mulheres, a rapariga... era uma miudita de onze anos talvez... estava amarrada, era evidente que gritava, gritava bastante e era uma mulher mais velha que fez o corte para a ablação do clítoris.
p: Com que objecto?
r: Com uma faca e sem quaisquer condições de higiene, aliás, como era feita a circuncisão dos miúdos. Era feita com uma faca ou com uma lâmina.
p: Como é que foi feita a abordagem, como é que se proporcionou a hipótese de ver uma excisão?
r: Eu estava numa situação muito privilegiada, primeiro porque eu era chefe daquilo tudo, segundo porque estava só com soldados africanos e com população africana, cada soldado tinha as suas três mulheres, não sei quantos filhos, de maneira que eu era, pelo menos a um nível simbólico, uma espécie de chefe. Nesse sentido, por curiosidade, falei com mulheres, não falei com homens, e disse que estaria interessado. Primeiro negaram, disseram que os homens não podiam assistir e eu lá expliquei, lá entreguei dinheiro e lá consegui.
A cerimónia não é feita na aldeia, é feita fora da aldeia.
p: Porquê?
r: Porque mesmo entre eles é dotado de algum secretismo, é uma cerimónia que tem alguma coisa de religioso por isso mesmo não é feita na aldeia, é feita na floresta.
A rapariga não sabia como era. Há simultaneamente medo mas algum orgulho porque significa uma passagem para uma idade adulta, por isso há essa duplicidade, penso eu, ao nível das miúdas que têm medo, é evidente, porque as outras também já contaram como foi e que vão sofrer muito, mas ao mesmo tempo... se calhar é como usar o primeiro sutiã. Há efectivamente um certo orgulho.
p: Qual é a posição dos homens em relação à excisão?
r: Os homens concordam até porque eles não aceitam para mulher alguém que não seja excisada.
Dentro da própria comunidade uma rapariga que não tenha passado pela excisão, dificilmente arranjará marido. Uma rapariga que não tenha feito a excisão é uma criança por isso elas submetem-se para evitarem a exclusão.
Não podemos generalizar e falar da mulher africana porque mesmo na Guiné não são todas as etnias que fazem a excisão. Normalmente são os islamizados. Há excisões muito mais gravosas principalmente na Somália, na Etiópia.
Há outro tipo de excisão, já agora. É uma excisão que se faz em Angola, eu ainda estou a começar a estudar isso, é uma excisão ao contrário, serve para mulher ter mais prazer durante o acto sexual. Ainda não vi nada disso escrito, li isso num romance. Já perguntei a várias angolanas e elas não sabem nada mas é uma excisão para dar mais prazer à mulher, não é como a outra. Não é a ablação do clítoris, é como um “desembaraçar” do clítoris e também é feita na pré-adolescência, aos 12, 13 anos.
p: A maior parte das pessoas é contra esta prática porque é uma violação dos direitos humanos...
r: Sim, embora isso hoje seja muito discutível há uma posição radical que diz que isto ofende os direitos humanos mas há vozes autorizadas que a defendem e eu já tive a oportunidade de assistir a uma conferência, creio que há três anos, em Valência, em que um professor dizia “O que é que nós temos a ver com isso?! Isso é um valor cultural, porque é que nós estamos sempre a ver de uma perspectiva europeia, europocêntrica o problema?”
Por isso há vozes que discordam desta luta contra a mutilação sexual.
p: Mas hoje em dia há organizações e outras pessoas k trabalham no terreno, no sentido de dissuadirem as mulheres a praticar este tipo de ritual.
r: Pode ter o efeito contrário, não é?!, se é proibido...
P: O isolamento destas tribos torna muito mais difícil o acesso a qualquer alteração na mentalidade destas pessoas?
R: Será muito difícil. Se nós defendêssemos sempre os mesmo valores culturais não havia evolução. É precisamente a mesma coisa, os chineses partiam os pés às crianças, os aztecas apertavam os olhos, o meu avô tomava banho uma vez por mês... quer dizer esses são valores culturais. As coisas alteram-se.
p: O que é que a lei portuguesa diz acerca disto?
r: A lei portuguesa não prevê a excisão. Se aparecer algum caso será um crime contra a integridade física grave, se aparecer algum caso.
Já me contaram um caso que apareceu num hospital em que os próprios médicos nunca tinham ouvido falar da excisão e não foi levantado nenhum processo crime. Os médicos apenas verificaram que havia uma ablação mas não sabiam mais nada.
p: A quem seria aplicada a medida?
r: Neste caso seria contra a mãe. Ela é que é responsável porque leva a criança e, também, contra quem fez isso. É evidente que os casos vão aparecer. Será inevitável que qualquer dia apareça um caso destes, em França já foram julgados alguns casos.
p: Quer dizer que não estamos preparados...
r: Claro que não! É natural que uma miúda apanhe uma infecção qualquer, vá para a Estefânia e... é natural! O que o médico devia fazer era participar imediatamente mas para isso é preciso que os médicos saibam o que é a excisão e que se pratica em Portugal .
_____________
Notas de L.G.
(1) Vd. post de 11 de Julho de 2005 > Guiné 69/71 - CIII: Comandos africanos: do Pilão a Conacri
Já na altura eu tinha escrito o seguinte parágrafo, referindo o nome do Cabral:
"Um dos comandos africanos mais tristemente famosos era o furriel Uloma, filho de régulo, da zona de Varela, e um dos raros felupes que vestiam a farda do exército português, segundo se dizia no meu tempo. Uloma era uma espécie de coqueluche ou mscote da companhia, não só pelo seu aspecto físico de orangotango (sem ofensa para os felupes e para os orangotangos) como sobretduo pelos seus estranhos rituais de guerra e pela sua macabra colecção de cabeças cortadas ao inimigo, conservadas em álcool (trinta e duas, ao que parece, segundo os cálculos do Carlos França, que terá privado com ele, em Fá).
"Essas práticas culturais de bom selvagem teriam a ver com as reminiscências do canibalismo ritual entre os felupes – como me tentava, em vão, explicar, em jeito de antropólogo, com uma garrafa de uísque na mão, o meu amigo Cabral, poeta, antifascista, calejado nas lutas estudantis, antimilitarista, filho de militar de carreira, alferes miliciano, tão dilacerado como eu pela brutal irracionalidade daquela guerra, e que privava como os comandos africanos na sua qualidade de comandante do Pelotão de Caçadores Nativos local, o PEL CAÇ NAT 63".
(2) Sede da Associaão Apoiar:
Rua C, Lote 10, Loja 1.10 - Piso 1
Bairro da Liberdade
1070-023 Lisboa~
Telefones: 213 870 174 / 213 808 000
E-mail: apoiar@mail.telepac.pt
(3) Mafalda Sofia Félix dos Santos; Paulo César Lino Belchior de Matos - Mutilação genital feminina. Trabalho apresentado na Universidade Lusófona de Humanidades e Tecnologias no Curso de Pós-Graduação em Criminologia. s/d.
(4) Vd. post de 4 de Maio de 2005 > Guiné 69/71 - XII: O silêncio dos tugas face à MGF (Mutilação Genital Feminina)
Guiné 63/74 - CCCLXXXI: Poesia de Cabo Verde (Aguinaldo Fonseca)
Cabo Verde > Ilha de São Vicente > Mindelo >
"O belo porto de mar de São Vicente; ao centro o ilhéu que se confunde com um barco. Outubro de 1941".
Luís Henriques (ex-1º Cabo nº 188/41 da 3ª Companhia do 1º Batalhão Expedicionário do Regimento de Infantaria nº 5, que esteve em Cabo Verde, Ilha de São Vicente, no Lazareto, 1941/43).
© Luís Graça (2005)
Selecção do nosso camarada Jorge Santos
Aguinaldo Fonseca (1)
POVO
É sempre a mesma história repetida.
É sempre o mesmo lodo, a mesma fome
É sempre a mesma vida mal vivida
De quem amassa o pão mas não o come.
É sempre a mesma angústia desgrenhada
De quem naufraga em terra olhando o oceano;
O rubro desespero, a mão crispada,
O sonho a desfolhar-se… e o desengano.
É sempre este horizonte de fuligem,
É sempre este arranhar em duro chão,
Com fúria até ao centro da vertigem
Em busca da raiz da salvação.
In “Boletim Mensagem”, Ano III, nº 1, Janeiro de 1960
TERRA MORTA
Os meus irmãos, na terra estéril,
Seguem aos tombos pela vida fora,
Tontos de sol
Fartos de vento,
E sobre as ondas
Nas claras noites de lua cheia
Bóiam miragens
De verdes prados e extensos bosques.
Os meus irmãos na terra triste
(O mar em volta, o céu por cima)
Arrastam longas canções de bruma
Que sobem no ar buscando céus
E depois caem de asas fechadas
Desamparados.
Os meus irmãos na terra morta
Exposta ao vento, ao sol, às aves
Olham o mar
Olham as nuvens…
- Ficam à espera
De mãos vazias.
In “Mensagem – Casa dos Estudantes do Império, 2º Vol. ”, ALAC Editor, Outubro 1996.
_____
(1) Há um texto de Amílcar Cabral, originalmente publicado em 1952, onde se faz referência ao jovem poeta Aguinaldo Fonseca:
"A Poesia Cabo-Verdiana abre os olhos, descobre-se a si própria, - e é o romper duma nova aurora. É a claridade que surge, dando forma às coisas reais, apontando o mar, as rochas escalvadas, o povo a debater-se nas crises, a luta do cabo-verdiano "anónimo", enfim, a terra e o povo de Cabo Verde. Por isso, o caracter intencional - e felizmente intencional - do nome da revista que revela essa profunda modificação na Poesia Cabo-Verdiana: Claridade (...).
"As mensagens da Claridade e da Certeza têm de ser transcendidas. O sonho de evasão, o desejo de "querer partir", não pode eternizar-se. O sonho tem de ser outro, e aos Poetas - os que continuam de mãos dadas com o povo, de pés fincados na terra e participando no drama comum - compete cantá-lo. O cabo-verdiano, de olhos bem abertos, compreenderá o seu próprio sonho, descobrirá a sua própria voz, na mensagem dos Poetas.
"Parece que António Nunes e Aguinaldo Fonseca estão na vanguarda dessa nova Poesia. Não se conformam com a estagnação. A prisão não está no Mar.
"O primeiro, auscultando a terra e o povo, sonha com um "Amanhã" diferente, que antevê possível. E descreve a alteração que há de operar-se: "Em vez dos campos sem nada..." E profetiza, para a terra cabo-verdiana, a "vivificação da Vida".
"O segundo exprime, em toda a sua grandeza, o "naufrágio em terra" do povo a que pertence. Retrata os "homens calados" sofrendo a "dor da Terra-Mãe...num abandono de não ter remédio". Dos homens, "presos na cadeia da desesperança". E o seu sonho, não é de "querer partir": é de
Outra terra dentro da nossa terra".
Amílcar Cabral > Apontamentos sobre a Poesia Caboverdiana (*)
* Apareceu pela primeira vez em Boletim de Propaganda e Informação III, 28 (01/01/1952). Reproduzido em Obras Escolhidas de Amílcar Cabral, Vol. I: A Arma da Teoria - Unidade e Luta. Lisboa: Seara Nova. 1976. 25-29.
"O belo porto de mar de São Vicente; ao centro o ilhéu que se confunde com um barco. Outubro de 1941".
Luís Henriques (ex-1º Cabo nº 188/41 da 3ª Companhia do 1º Batalhão Expedicionário do Regimento de Infantaria nº 5, que esteve em Cabo Verde, Ilha de São Vicente, no Lazareto, 1941/43).
© Luís Graça (2005)
Selecção do nosso camarada Jorge Santos
Aguinaldo Fonseca (1)
POVO
É sempre a mesma história repetida.
É sempre o mesmo lodo, a mesma fome
É sempre a mesma vida mal vivida
De quem amassa o pão mas não o come.
É sempre a mesma angústia desgrenhada
De quem naufraga em terra olhando o oceano;
O rubro desespero, a mão crispada,
O sonho a desfolhar-se… e o desengano.
É sempre este horizonte de fuligem,
É sempre este arranhar em duro chão,
Com fúria até ao centro da vertigem
Em busca da raiz da salvação.
In “Boletim Mensagem”, Ano III, nº 1, Janeiro de 1960
TERRA MORTA
Os meus irmãos, na terra estéril,
Seguem aos tombos pela vida fora,
Tontos de sol
Fartos de vento,
E sobre as ondas
Nas claras noites de lua cheia
Bóiam miragens
De verdes prados e extensos bosques.
Os meus irmãos na terra triste
(O mar em volta, o céu por cima)
Arrastam longas canções de bruma
Que sobem no ar buscando céus
E depois caem de asas fechadas
Desamparados.
Os meus irmãos na terra morta
Exposta ao vento, ao sol, às aves
Olham o mar
Olham as nuvens…
- Ficam à espera
De mãos vazias.
In “Mensagem – Casa dos Estudantes do Império, 2º Vol. ”, ALAC Editor, Outubro 1996.
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(1) Há um texto de Amílcar Cabral, originalmente publicado em 1952, onde se faz referência ao jovem poeta Aguinaldo Fonseca:
"A Poesia Cabo-Verdiana abre os olhos, descobre-se a si própria, - e é o romper duma nova aurora. É a claridade que surge, dando forma às coisas reais, apontando o mar, as rochas escalvadas, o povo a debater-se nas crises, a luta do cabo-verdiano "anónimo", enfim, a terra e o povo de Cabo Verde. Por isso, o caracter intencional - e felizmente intencional - do nome da revista que revela essa profunda modificação na Poesia Cabo-Verdiana: Claridade (...).
"As mensagens da Claridade e da Certeza têm de ser transcendidas. O sonho de evasão, o desejo de "querer partir", não pode eternizar-se. O sonho tem de ser outro, e aos Poetas - os que continuam de mãos dadas com o povo, de pés fincados na terra e participando no drama comum - compete cantá-lo. O cabo-verdiano, de olhos bem abertos, compreenderá o seu próprio sonho, descobrirá a sua própria voz, na mensagem dos Poetas.
"Parece que António Nunes e Aguinaldo Fonseca estão na vanguarda dessa nova Poesia. Não se conformam com a estagnação. A prisão não está no Mar.
"O primeiro, auscultando a terra e o povo, sonha com um "Amanhã" diferente, que antevê possível. E descreve a alteração que há de operar-se: "Em vez dos campos sem nada..." E profetiza, para a terra cabo-verdiana, a "vivificação da Vida".
"O segundo exprime, em toda a sua grandeza, o "naufrágio em terra" do povo a que pertence. Retrata os "homens calados" sofrendo a "dor da Terra-Mãe...num abandono de não ter remédio". Dos homens, "presos na cadeia da desesperança". E o seu sonho, não é de "querer partir": é de
Outra terra dentro da nossa terra".
Amílcar Cabral > Apontamentos sobre a Poesia Caboverdiana (*)
* Apareceu pela primeira vez em Boletim de Propaganda e Informação III, 28 (01/01/1952). Reproduzido em Obras Escolhidas de Amílcar Cabral, Vol. I: A Arma da Teoria - Unidade e Luta. Lisboa: Seara Nova. 1976. 25-29.
Guiné 63/74 - CCCLXXXI: Poesia de Cabo Verde (Aguinaldo Fonseca)
Cabo Verde > Ilha de São Vicente > Mindelo >
"O belo porto de mar de São Vicente; ao centro o ilhéu que se confunde com um barco. Outubro de 1941".
Luís Henriques (ex-1º Cabo nº 188/41 da 3ª Companhia do 1º Batalhão Expedicionário do Regimento de Infantaria nº 5, que esteve em Cabo Verde, Ilha de São Vicente, no Lazareto, 1941/43).
© Luís Graça (2005)
Selecção do nosso camarada Jorge Santos
Aguinaldo Fonseca (1)
POVO
É sempre a mesma história repetida.
É sempre o mesmo lodo, a mesma fome
É sempre a mesma vida mal vivida
De quem amassa o pão mas não o come.
É sempre a mesma angústia desgrenhada
De quem naufraga em terra olhando o oceano;
O rubro desespero, a mão crispada,
O sonho a desfolhar-se… e o desengano.
É sempre este horizonte de fuligem,
É sempre este arranhar em duro chão,
Com fúria até ao centro da vertigem
Em busca da raiz da salvação.
In “Boletim Mensagem”, Ano III, nº 1, Janeiro de 1960
TERRA MORTA
Os meus irmãos, na terra estéril,
Seguem aos tombos pela vida fora,
Tontos de sol
Fartos de vento,
E sobre as ondas
Nas claras noites de lua cheia
Bóiam miragens
De verdes prados e extensos bosques.
Os meus irmãos na terra triste
(O mar em volta, o céu por cima)
Arrastam longas canções de bruma
Que sobem no ar buscando céus
E depois caem de asas fechadas
Desamparados.
Os meus irmãos na terra morta
Exposta ao vento, ao sol, às aves
Olham o mar
Olham as nuvens…
- Ficam à espera
De mãos vazias.
In “Mensagem – Casa dos Estudantes do Império, 2º Vol. ”, ALAC Editor, Outubro 1996.
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(1) Há um texto de Amílcar Cabral, originalmente publicado em 1952, onde se faz referência ao jovem poeta Aguinaldo Fonseca:
"A Poesia Cabo-Verdiana abre os olhos, descobre-se a si própria, - e é o romper duma nova aurora. É a claridade que surge, dando forma às coisas reais, apontando o mar, as rochas escalvadas, o povo a debater-se nas crises, a luta do cabo-verdiano "anónimo", enfim, a terra e o povo de Cabo Verde. Por isso, o caracter intencional - e felizmente intencional - do nome da revista que revela essa profunda modificação na Poesia Cabo-Verdiana: Claridade (...).
"As mensagens da Claridade e da Certeza têm de ser transcendidas. O sonho de evasão, o desejo de "querer partir", não pode eternizar-se. O sonho tem de ser outro, e aos Poetas - os que continuam de mãos dadas com o povo, de pés fincados na terra e participando no drama comum - compete cantá-lo. O cabo-verdiano, de olhos bem abertos, compreenderá o seu próprio sonho, descobrirá a sua própria voz, na mensagem dos Poetas.
"Parece que António Nunes e Aguinaldo Fonseca estão na vanguarda dessa nova Poesia. Não se conformam com a estagnação. A prisão não está no Mar.
"O primeiro, auscultando a terra e o povo, sonha com um "Amanhã" diferente, que antevê possível. E descreve a alteração que há de operar-se: "Em vez dos campos sem nada..." E profetiza, para a terra cabo-verdiana, a "vivificação da Vida".
"O segundo exprime, em toda a sua grandeza, o "naufrágio em terra" do povo a que pertence. Retrata os "homens calados" sofrendo a "dor da Terra-Mãe...num abandono de não ter remédio". Dos homens, "presos na cadeia da desesperança". E o seu sonho, não é de "querer partir": é de
Outra terra dentro da nossa terra".
Amílcar Cabral > Apontamentos sobre a Poesia Caboverdiana (*)
* Apareceu pela primeira vez em Boletim de Propaganda e Informação III, 28 (01/01/1952). Reproduzido em Obras Escolhidas de Amílcar Cabral, Vol. I: A Arma da Teoria - Unidade e Luta. Lisboa: Seara Nova. 1976. 25-29.
"O belo porto de mar de São Vicente; ao centro o ilhéu que se confunde com um barco. Outubro de 1941".
Luís Henriques (ex-1º Cabo nº 188/41 da 3ª Companhia do 1º Batalhão Expedicionário do Regimento de Infantaria nº 5, que esteve em Cabo Verde, Ilha de São Vicente, no Lazareto, 1941/43).
© Luís Graça (2005)
Selecção do nosso camarada Jorge Santos
Aguinaldo Fonseca (1)
POVO
É sempre a mesma história repetida.
É sempre o mesmo lodo, a mesma fome
É sempre a mesma vida mal vivida
De quem amassa o pão mas não o come.
É sempre a mesma angústia desgrenhada
De quem naufraga em terra olhando o oceano;
O rubro desespero, a mão crispada,
O sonho a desfolhar-se… e o desengano.
É sempre este horizonte de fuligem,
É sempre este arranhar em duro chão,
Com fúria até ao centro da vertigem
Em busca da raiz da salvação.
In “Boletim Mensagem”, Ano III, nº 1, Janeiro de 1960
TERRA MORTA
Os meus irmãos, na terra estéril,
Seguem aos tombos pela vida fora,
Tontos de sol
Fartos de vento,
E sobre as ondas
Nas claras noites de lua cheia
Bóiam miragens
De verdes prados e extensos bosques.
Os meus irmãos na terra triste
(O mar em volta, o céu por cima)
Arrastam longas canções de bruma
Que sobem no ar buscando céus
E depois caem de asas fechadas
Desamparados.
Os meus irmãos na terra morta
Exposta ao vento, ao sol, às aves
Olham o mar
Olham as nuvens…
- Ficam à espera
De mãos vazias.
In “Mensagem – Casa dos Estudantes do Império, 2º Vol. ”, ALAC Editor, Outubro 1996.
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(1) Há um texto de Amílcar Cabral, originalmente publicado em 1952, onde se faz referência ao jovem poeta Aguinaldo Fonseca:
"A Poesia Cabo-Verdiana abre os olhos, descobre-se a si própria, - e é o romper duma nova aurora. É a claridade que surge, dando forma às coisas reais, apontando o mar, as rochas escalvadas, o povo a debater-se nas crises, a luta do cabo-verdiano "anónimo", enfim, a terra e o povo de Cabo Verde. Por isso, o caracter intencional - e felizmente intencional - do nome da revista que revela essa profunda modificação na Poesia Cabo-Verdiana: Claridade (...).
"As mensagens da Claridade e da Certeza têm de ser transcendidas. O sonho de evasão, o desejo de "querer partir", não pode eternizar-se. O sonho tem de ser outro, e aos Poetas - os que continuam de mãos dadas com o povo, de pés fincados na terra e participando no drama comum - compete cantá-lo. O cabo-verdiano, de olhos bem abertos, compreenderá o seu próprio sonho, descobrirá a sua própria voz, na mensagem dos Poetas.
"Parece que António Nunes e Aguinaldo Fonseca estão na vanguarda dessa nova Poesia. Não se conformam com a estagnação. A prisão não está no Mar.
"O primeiro, auscultando a terra e o povo, sonha com um "Amanhã" diferente, que antevê possível. E descreve a alteração que há de operar-se: "Em vez dos campos sem nada..." E profetiza, para a terra cabo-verdiana, a "vivificação da Vida".
"O segundo exprime, em toda a sua grandeza, o "naufrágio em terra" do povo a que pertence. Retrata os "homens calados" sofrendo a "dor da Terra-Mãe...num abandono de não ter remédio". Dos homens, "presos na cadeia da desesperança". E o seu sonho, não é de "querer partir": é de
Outra terra dentro da nossa terra".
Amílcar Cabral > Apontamentos sobre a Poesia Caboverdiana (*)
* Apareceu pela primeira vez em Boletim de Propaganda e Informação III, 28 (01/01/1952). Reproduzido em Obras Escolhidas de Amílcar Cabral, Vol. I: A Arma da Teoria - Unidade e Luta. Lisboa: Seara Nova. 1976. 25-29.
Guiné 63/74 - CCCLXXX: Op Tridente (Ilha do Como, 1964): III Parte (Mário Dias)
Quase 42 anos depois da Operação Tridente, alguns dos elementos que nela tomaram parte, pertencentes ao Grupo de Comandos, fotografados a 24 de Setembro de 2005,durante o convívio dos Grupos de Comandos que actuaram na Guiné entre 1964/66. © Mário Dias,
Da esquerda para a direita: (i) sold João Firmino Martins Correia; (ii) 1ºcabo Marcelino da Mata; (iii) 1º cabo Fernando Celestino Raimundo; (iv) fur mil António M. Vassalo Miranda; (v) fur Mário F. Roseira Dias; (vi) sold Joaquim Trindade Cavaco(Os postos, referentes a cada uma, são os que tinham à época dos acontecimentos).
Texto da autoria do Mário Dias, sargento comando (Brá, 1963/66):
OPERAÇÃO TRIDENTE > Guiné > Ilha do Como > De 14 de Janeiro a 24 de Março de 1964
III (e última) Parte
7. As abelhas
Dia 23 de Fevereiro novamente embarcados numa LDM com o Pelotão de de Paraquedistas e 8º Destacamento de Fuzileiros, rumo a Curcô onde pernoitámos.
No dia seguinte, com mais um grupo de combate da CCAV 488, iniciámos uma batida à mata. Por duas vezes tivemos contacto com um numeroso grupo de guerrilheiros que dispunham de um morteiro 82 e 1 metralhadora pesada 12,7mm. As NT causaram 7 mortos confirmados, sendo 3 caboverdeanos, armados com pistola-metralhadora, dois deles fardados de caqui. Nesta acção, o Pel Paraquedistas teve 1 morto, 1 ferido grave e 1 ferido ligeiro. Uma rajada de PPSH inutilizou a arma do comandante dos páras, que ficou ferido na cabeça.
Quando me recordo, à distância dos anos, do que aconteceu a seguir, dá-me vontade de rir da cena caricata que devemos ter feito.
Eu conto: tendo nós conseguido sempre levar a melhor nos contactos com o IN, eis que um enorme enxame de abelhas se abateu sobre nós. Toda a gente a sacudir-se, ferroadas de criar bicho, correria desenfreada. Quem diria… pequenos insectos conseguiram aquilo que o IN nunca foi capaz: pôr-nos em fuga. Com o pessoal todo picado, já havia muitos olhos tumefactos, nada poderíamos fazer a não ser o regresso a Curcô. Ganharam as abelhas.
Na orla da mata perto de Curcô, ainda descobrimos uma plataforma construída sobre palafitas, com cerca de 1,80m de altura, e que servia como posto de vigia sobre aquela localidade. Deixámo-la ficar armadilhada. Não sei se a armadilha chegou ou não a ser activada. Hoje, faço votos para que não.
8. Acentuam-se os indícios de fraqueza do IN
Que bem dormia eu quando, naquela madrugada do dia 27 de Fevereiro, “às 4 da matina” me acordaram:
- Porra… são lá horas de acordar um pacato cidadão embrenhado em sonhos tão deliciosos!...
- Vamos embora! - Mais uma vez a mata espera por nós. E fomos.
Sol já a brilhar, movimentos suspeitos no tarrafe. Avançámos cautelosamente para averiguar. Apenas algumas pegadas de 2 ou 3 pessoas que devem ter fugido com a nossa aproximação.
Nesse dia, juntamente com o Pel Paraq e 1 grupo de combate de elementos das CCCAV 487 e 489 foi destruída a tabanca de Catabão Segundo onde fizemos um prisioneiro e apreendemos 2 binóculos, 1 cantil, 1 espimgarda G3 com 4 carregadores, e 3 granadas de mão. Mais uma acção em que o IN não deu sinais de vida.
Voltemos então para a praia.
Decididamente não me concedem o prazer de me entregar nos braços de Morfeu tranquilamente.
- Eh pá, ainda só são cinco horas.
- Deixa-te de tretas e vamos embora. Temos que explorar uma informação importante dada pelo prisioneiro que capturámos no dia 27.
- É isso? É para já.
Enfiar camuflado, botas, pegar no equipamento e armamento. Está tudo em ordem? Claro que está. A arma de um comando está sempre junto dele e pronta a funcionar ao segundo.
Progressão silenciosa, escondidos, calma, devagar, parar e escutar com frequência. Sem surpresa é impossível um golpe de mão bem sucedido.
Acampamento atingido e assaltado às 9 horas, praticamente sem resistência (o IN fugiu). Era constituído por cerca de 50 casas de mato com uma centena de camas de madeira e de ferro. Viva o luxo!...até havia mosquiteiros, colchões, lençóis, colchas e outras “mordomias”. Espalhados por diversos locais, máquina de escrever, máquinas de costura, roupa já confeccionada e peças de tecido, muitos livros de instrução primária em português, muita correspondência, e os habituais utensílios de uso doméstico. O acampamento estava rodeado por alguns abrigos e tinha postos de observação nas árvores.
Incendiadas as casas de mato começou o habitual estoiro de munições e granadas que ali se encontravam escondidas escapadas à nossa observação.
Nas proximidades estava um cemitério com 30 sepulturas recentes.
Desta acção, realizada no dia 1 de Março, trouxemos para a base (rica praia!): 1 cunhete com 800 cartuchos 7,9; 80 cartuchos 7,62; muitas munições de diversos calibres; 1 granada de mão incendiária; 1 cantil USA; catanas.
Aos poucos, a forte resistência inicial do PAIGC vai caindo por terra. Mostram já sinais evidentes da falta de agressividade, que é parte da doutrina da guerrilha: “ataca quando o IN está fraco; esconde-te se ele é mais forte”.
Mensagem de Nino aos seus guerrilheiros em poder de um prisioneiro por nós capturado:
“Hoje faz 48 dias que os nossos camaradas estão enfrentando corajosamente as forças inimigas. Camaradas, tenham paciência, porque não tenho outra safa senão o vosso auxílio… As tropas estão a aumentar cada vez mais as suas forças…camaradas, não tenho mais nada a dizer-vos, somente posso dizer-vos que de um dia para o outro vamos ficar sem a população e sem os nossos guerrilheiros. Já estamos a contar com as baixas de 23 camaradas… do vosso camarada, Marga - Nino “,
Emboscadas do grupo de comandos na mata de S. Nicolau, na noite de 5 de Março até à tarde do dia seguinte, mais uma vez os guerrilheiros não compareceram.
9. As vacas e o arroz
Um agrupamento constituído pelo grupo de comandos, 8º Dest.Fuz, e um grupo de combate da CCAV 489, iniciaram, por volta das 8 da manhã de 12 de Março, uma acção sobre Catunco Papel e Catunco Balanta a fim de cercar e bater todas a zona destruindo tudo quanto possa constituir abrigo ou abastecimento para o IN e que não seja possível recuperar pelas NT.
Cercada a tabanca de Catundo Papel e de seguida Catunco Balanta, foram as casas revistadas e destruídas, tarefa que demorou quase 5 horas. Foram recuperadas 5 toneladas de arroz; capturado um elemento IN e apreendidas 2 granadas de mão, livros escolares em português, cadernos, fotografias, facturas, recibos de imposto indígena, e um envelope endereçado a BIAQUE DEHETHÉ, sendo remetente MUSSA SAMBU de Conakry.
Terminamos este dia com a acção que mais me custou durante toda a permanência no Como. Têm que ser abatidas cerca de uma centena de vacas que por ali andavam na bolanha bucolicamente pastando. Não havia forma de podermos transportá-las connosco. Começado o tiro ao alvo, iam caindo sem remédio. Pobres bichos. E que desperdício. Enquanto fazia pontaria ia ironicamente pensando naquela carne que por ali ia ficar para os jagudis enquanto nós tínhamos andado 23 dias a ração de combate.
- Que desperdício!... - E pensava:
- Olha aquele lombo como ficava bom num espeto a rodar, bem temperado com sal, limão e malagueta!...(pum) e aquela, que belo fígado deve ter para uma saborosas iscas !...pum… e pum… e mais pum até chorar de raiva.
Coisas da guerra … sempre impiedosa.
Concluída a mortandade, ainda alguns esquartejaram pernas e extraíram lombos para uma refeição extra. Deve ter sido fruto desta acção, a oferta pelos fuzileiros de carne de vaca à CCAV 489 a que se refere o Joaquim Ganhão na sua ”Cónica do soldado 328” (1).
10. Últimas operações.
Às 03H30 do dia 16 de Março, chegados a Curcô, aguardamos a aurora pondo-nos a caminho com a CCAV 489 (-). A missão era bater a mata até Cassca e daí virar a Sul até Cauane, eliminando ou aprisionando qualquer elemento IN e detectar e destruir tudo quanto possa oferecer abrigo ou recursos para o IN. Resistência ?...mais uma vez, nada.
Foi encontrado um acampamento com 15 casas de mato. Uma delas bem grande que nos pareceu ser destinada a reuniões onde estava um molho de panfletos de acção psicológica das NT, recentemente lançados na ilha pelos nossos aviões. Numa outra barraca, um caderno de cópias de INÁCIO BATALÉ, datado de 12 de Novembro de 1963. Nas imediações foram descobertos e destruídos 3 depósitos de arroz, estimando-se serem cerca de 15 toneladas.
Progredindo para Sul, dentro da mata da região de Cauane, e a cerca de 600 metros da tabanca, detectou-se um grupo de 7 elementos armados de espingarda e de pistola-metralhadora. Fogo…pum. Dois tiros chegaram e caiu um. Mais dois tiros e caiu outro armado de PPSH e de farda camuflada. Mais um tiro e outro ferido que fugiu aos gritos.
Os sobrantes puseram-se em fuga. O inimigo não parecia o mesmo das primeiras semanas da batalha do Como. Estava de facto enfraquecido e fugia ao contacto.
Com a operação a chegar ao fim previsto, o Comandante das Forças Terrestres, Ten Cor Cavaleiro, saiu com o grupo de comandos e o pelotão de paraquedistas às 23H30 do dia 20 de Março, atravessando a mata de Cauane, Cassaca e Cachil com a finalidade de verificar pessoalmente a capacidade de combate do IN.
Passagem e pequena paragem na tabanca de Cauane, troca de informações com o comandante da CCAV 488, dono da casa, e iniciámos a penetração na mata à 1 hora do dia 21, partindo da casa Brandão. Reacção do IN?...nenhuma. Progredimos até Cassaca que foi alcançada às 02H30. Feita uma batida cuidadosa à região, encontraram-se a Norte algumas casas de mato quase destruídas e há muito abandonadas.
Siga a tropa. Para a frente é que é o caminho. Já próximo da orla da mata de Cachil, ao “romper da bela aurora”, detectados 3 elementos IN um armado de PPSH e os outros dois de espingarda. Meia dúzia de tiros foram suficientes para fugirem. Um deles, ferido, deixou para trás a espingarda Mauser 7,9mm e 5 cartuchos da mesma. Tinha sangue na coronha.
Mais tarde, outro grupo de 5 elementos, avistados um pouco à distância, foram alvejados e fugiram sem responder ao nosso fogo. Levaram dois feridos.
Atingimos Cachil, na outra extremidade da ilha, que foi atravessada pacificamente de Sul para Norte sem qualquer beliscadura nem qualquer oposição à nossa presença por parte dos guerrilheiros.
Embarcados na LDM, lá fomos nós de regresso à praia. Foi a última operação da batalha do Como.
Por brincadeira dizíamos que tínhamos ido “fechar as portas da guerra”.
Foram também os últimos banhos.
No dia 22 de Março, o grupo de comandos regressou a Bissau, aproveitando a boleia da Dornier e alguns hélis que em diversas vagas nos transportaram. O Grupo de Comandos não teve baixas, nem feridos, nem nenhum elemento evacuado por doença, fazendo juz ao nosso lema: “Audaces fortuna juvat” (2)
Para as restantes tropas foram mais dois dias de trabalho a “desmontar o arraial.” Creio que foi o que menos lhes custou.
BAIXAS DE AMBOS OS LADOS
Das NT:
8 Mortos
15 Feridos
Do IN:
76 Mortos (confirmados)
29 Feridos
9 Prisioneiros
CONCLUSÕES
De tudo quanto descrevi, e que corresponde à realidade por mim vivida durante a Operação Tridente, podemos verificar que nem sempre, ou quase nunca, a história é escrita com isenção. Na verdade, tem-se especulado muito sobre o que realmente se passou no Como. Derrota para as tropas portuguesas, dizem uns, grande vitória, contrapõem outros.
Para mim, nem uma coisa nem outra, porque na guerra, em qualquer guerra, não há vencedores: todos são vencidos pela existência da própria guerra.
Porém, analisando a Operação Tridente no âmbito estritamente militar, facilmente se chega à conclusão que:
- O PAIGC dominava a Ilha do Como em 1963;
- Nas primeiras duas semanas opôs feroz resistência às NT, a quem causou baixas, não
permitindo a nossa progressão pela mata onde estava fortemente instalado;
- Graças à nossa persistência no combate, favorecida pela superioridade de meios que
na altura ainda tínhamos, fomos aos poucos dominando a situação;
- A partir da 3ª semana já conseguíamos entrar e progredir na mata;
- Sensivelmente na 5ª semana, já nos movimentávamos facilmente por toda a ilha e os
guerrilheiros opunham esporádica e fraca resistência;
- Começou a notar-se, a partir da 7ª semana, uma completa desagregação da
capacidade de combate dos guerrilheiros: basta ler a mensagem do Nino dirigida ao
seu pessoal e transcrita nesta crónica;
- No final da operação o PAIGC já não dominava a ilha;
A teoria defendida por alguns, sobretudo pelo PAIGC (mas essa não é de admirar) que as tropas portuguesas se viram forçadas a abandonar a ilha, não é verdadeira:
1) As tropas retiraram por ter terminado a operação e não se justificar a sua continuação uma vez alcançado o objectivo: o domínio da ilha pelas NT;
2) A ilha não foi abandonada pois ficou instalada em Cachil (na tal “fortaleza” de troncos de palmeira) uma companhia para patrulhar e não deixar que o IN se reorganizasse naquela região;
3) Se mais tarde se veio a verificar o recrudescer da actividade no local, isso deve-se ao facto de a Companhia que lá ficou se ter refugiado na “fortaleza”, nunca de lá saindo a não ser para ir para Catió quando era substituída por outra (Mas isso, é outra história);
Finalmente, uma palavra de apreço a quantos, de ambos os lados, se esforçaram e sacrificaram superando todas as dificuldades e,
Sentida homenagem aos que tombaram. A todos. De ambos os lados.
COMO É BOM VIVER EM PAZ!...
Quase 42 anos depois da Operação Tridente, alguns dos elementos que nela tomaram parte, pertencentes ao Grupo de Comandos, fotografados a 24 de Setembro de 2005,durante o convívio dos Grupos de Comandos que actuaram na Guiné entre 1964/66. Da esquerda para a direita [vd. foto no início deste pot]:
Sold João Firmino Martins Correia;
1ºcabo Marcelino da Mata;
1º cabo Fernando Celestino Raimundo;
Fur mil António M. Vassalo Miranda;
Fur Mário F.Roseira Dias;
Sold Joaquim Trindade Cavaco.
(Os postos referentes a cada uma, são os que tinham à época dos acontecimentos.)
Guiné > Brá > 1966 > O Alf Mil Briote, à esquerda, ladeado de dois dos primeiros comandos africanos, o Jamanta e o Joaquim. O Jamanta será mais tarde, em 1975, fuzilado no Cumeré, juntamente com outros comandos africanos.
© Virgínio Briote (2005)
Não posso deixar aqui de referir e prestar homenagem a alguns extraordinários elementos deste grupo, já falecidos:
- Fur mil Artur Pereira Pires, morto alguns meses depois na explosão de uma mina anti carro, nas proximidades de Madina do Boé;
- 1º Cabo Abdulai Queta Jamanca, fuzilado, juntamente com muitos outros ex-comandos africanos após a independência, por ordem de Luís Cabral;
- Por causa do natural e inexorável girar da roda da vida: Alf Maurício Leonel de Sousa Saraiva e Alf mil Justino Coelho Godinho.
PAZ ÀS SUAS ALMAS!
Da esquerda para a direita: (i) sold João Firmino Martins Correia; (ii) 1ºcabo Marcelino da Mata; (iii) 1º cabo Fernando Celestino Raimundo; (iv) fur mil António M. Vassalo Miranda; (v) fur Mário F. Roseira Dias; (vi) sold Joaquim Trindade Cavaco(Os postos, referentes a cada uma, são os que tinham à época dos acontecimentos).
Texto da autoria do Mário Dias, sargento comando (Brá, 1963/66):
OPERAÇÃO TRIDENTE > Guiné > Ilha do Como > De 14 de Janeiro a 24 de Março de 1964
III (e última) Parte
7. As abelhas
Dia 23 de Fevereiro novamente embarcados numa LDM com o Pelotão de de Paraquedistas e 8º Destacamento de Fuzileiros, rumo a Curcô onde pernoitámos.
No dia seguinte, com mais um grupo de combate da CCAV 488, iniciámos uma batida à mata. Por duas vezes tivemos contacto com um numeroso grupo de guerrilheiros que dispunham de um morteiro 82 e 1 metralhadora pesada 12,7mm. As NT causaram 7 mortos confirmados, sendo 3 caboverdeanos, armados com pistola-metralhadora, dois deles fardados de caqui. Nesta acção, o Pel Paraquedistas teve 1 morto, 1 ferido grave e 1 ferido ligeiro. Uma rajada de PPSH inutilizou a arma do comandante dos páras, que ficou ferido na cabeça.
Quando me recordo, à distância dos anos, do que aconteceu a seguir, dá-me vontade de rir da cena caricata que devemos ter feito.
Eu conto: tendo nós conseguido sempre levar a melhor nos contactos com o IN, eis que um enorme enxame de abelhas se abateu sobre nós. Toda a gente a sacudir-se, ferroadas de criar bicho, correria desenfreada. Quem diria… pequenos insectos conseguiram aquilo que o IN nunca foi capaz: pôr-nos em fuga. Com o pessoal todo picado, já havia muitos olhos tumefactos, nada poderíamos fazer a não ser o regresso a Curcô. Ganharam as abelhas.
Na orla da mata perto de Curcô, ainda descobrimos uma plataforma construída sobre palafitas, com cerca de 1,80m de altura, e que servia como posto de vigia sobre aquela localidade. Deixámo-la ficar armadilhada. Não sei se a armadilha chegou ou não a ser activada. Hoje, faço votos para que não.
8. Acentuam-se os indícios de fraqueza do IN
Que bem dormia eu quando, naquela madrugada do dia 27 de Fevereiro, “às 4 da matina” me acordaram:
- Porra… são lá horas de acordar um pacato cidadão embrenhado em sonhos tão deliciosos!...
- Vamos embora! - Mais uma vez a mata espera por nós. E fomos.
Sol já a brilhar, movimentos suspeitos no tarrafe. Avançámos cautelosamente para averiguar. Apenas algumas pegadas de 2 ou 3 pessoas que devem ter fugido com a nossa aproximação.
Nesse dia, juntamente com o Pel Paraq e 1 grupo de combate de elementos das CCCAV 487 e 489 foi destruída a tabanca de Catabão Segundo onde fizemos um prisioneiro e apreendemos 2 binóculos, 1 cantil, 1 espimgarda G3 com 4 carregadores, e 3 granadas de mão. Mais uma acção em que o IN não deu sinais de vida.
Voltemos então para a praia.
Decididamente não me concedem o prazer de me entregar nos braços de Morfeu tranquilamente.
- Eh pá, ainda só são cinco horas.
- Deixa-te de tretas e vamos embora. Temos que explorar uma informação importante dada pelo prisioneiro que capturámos no dia 27.
- É isso? É para já.
Enfiar camuflado, botas, pegar no equipamento e armamento. Está tudo em ordem? Claro que está. A arma de um comando está sempre junto dele e pronta a funcionar ao segundo.
Progressão silenciosa, escondidos, calma, devagar, parar e escutar com frequência. Sem surpresa é impossível um golpe de mão bem sucedido.
Acampamento atingido e assaltado às 9 horas, praticamente sem resistência (o IN fugiu). Era constituído por cerca de 50 casas de mato com uma centena de camas de madeira e de ferro. Viva o luxo!...até havia mosquiteiros, colchões, lençóis, colchas e outras “mordomias”. Espalhados por diversos locais, máquina de escrever, máquinas de costura, roupa já confeccionada e peças de tecido, muitos livros de instrução primária em português, muita correspondência, e os habituais utensílios de uso doméstico. O acampamento estava rodeado por alguns abrigos e tinha postos de observação nas árvores.
Incendiadas as casas de mato começou o habitual estoiro de munições e granadas que ali se encontravam escondidas escapadas à nossa observação.
Nas proximidades estava um cemitério com 30 sepulturas recentes.
Desta acção, realizada no dia 1 de Março, trouxemos para a base (rica praia!): 1 cunhete com 800 cartuchos 7,9; 80 cartuchos 7,62; muitas munições de diversos calibres; 1 granada de mão incendiária; 1 cantil USA; catanas.
Aos poucos, a forte resistência inicial do PAIGC vai caindo por terra. Mostram já sinais evidentes da falta de agressividade, que é parte da doutrina da guerrilha: “ataca quando o IN está fraco; esconde-te se ele é mais forte”.
Mensagem de Nino aos seus guerrilheiros em poder de um prisioneiro por nós capturado:
“Hoje faz 48 dias que os nossos camaradas estão enfrentando corajosamente as forças inimigas. Camaradas, tenham paciência, porque não tenho outra safa senão o vosso auxílio… As tropas estão a aumentar cada vez mais as suas forças…camaradas, não tenho mais nada a dizer-vos, somente posso dizer-vos que de um dia para o outro vamos ficar sem a população e sem os nossos guerrilheiros. Já estamos a contar com as baixas de 23 camaradas… do vosso camarada, Marga - Nino “,
Emboscadas do grupo de comandos na mata de S. Nicolau, na noite de 5 de Março até à tarde do dia seguinte, mais uma vez os guerrilheiros não compareceram.
9. As vacas e o arroz
Um agrupamento constituído pelo grupo de comandos, 8º Dest.Fuz, e um grupo de combate da CCAV 489, iniciaram, por volta das 8 da manhã de 12 de Março, uma acção sobre Catunco Papel e Catunco Balanta a fim de cercar e bater todas a zona destruindo tudo quanto possa constituir abrigo ou abastecimento para o IN e que não seja possível recuperar pelas NT.
Cercada a tabanca de Catundo Papel e de seguida Catunco Balanta, foram as casas revistadas e destruídas, tarefa que demorou quase 5 horas. Foram recuperadas 5 toneladas de arroz; capturado um elemento IN e apreendidas 2 granadas de mão, livros escolares em português, cadernos, fotografias, facturas, recibos de imposto indígena, e um envelope endereçado a BIAQUE DEHETHÉ, sendo remetente MUSSA SAMBU de Conakry.
Terminamos este dia com a acção que mais me custou durante toda a permanência no Como. Têm que ser abatidas cerca de uma centena de vacas que por ali andavam na bolanha bucolicamente pastando. Não havia forma de podermos transportá-las connosco. Começado o tiro ao alvo, iam caindo sem remédio. Pobres bichos. E que desperdício. Enquanto fazia pontaria ia ironicamente pensando naquela carne que por ali ia ficar para os jagudis enquanto nós tínhamos andado 23 dias a ração de combate.
- Que desperdício!... - E pensava:
- Olha aquele lombo como ficava bom num espeto a rodar, bem temperado com sal, limão e malagueta!...(pum) e aquela, que belo fígado deve ter para uma saborosas iscas !...pum… e pum… e mais pum até chorar de raiva.
Coisas da guerra … sempre impiedosa.
Concluída a mortandade, ainda alguns esquartejaram pernas e extraíram lombos para uma refeição extra. Deve ter sido fruto desta acção, a oferta pelos fuzileiros de carne de vaca à CCAV 489 a que se refere o Joaquim Ganhão na sua ”Cónica do soldado 328” (1).
10. Últimas operações.
Às 03H30 do dia 16 de Março, chegados a Curcô, aguardamos a aurora pondo-nos a caminho com a CCAV 489 (-). A missão era bater a mata até Cassca e daí virar a Sul até Cauane, eliminando ou aprisionando qualquer elemento IN e detectar e destruir tudo quanto possa oferecer abrigo ou recursos para o IN. Resistência ?...mais uma vez, nada.
Foi encontrado um acampamento com 15 casas de mato. Uma delas bem grande que nos pareceu ser destinada a reuniões onde estava um molho de panfletos de acção psicológica das NT, recentemente lançados na ilha pelos nossos aviões. Numa outra barraca, um caderno de cópias de INÁCIO BATALÉ, datado de 12 de Novembro de 1963. Nas imediações foram descobertos e destruídos 3 depósitos de arroz, estimando-se serem cerca de 15 toneladas.
Progredindo para Sul, dentro da mata da região de Cauane, e a cerca de 600 metros da tabanca, detectou-se um grupo de 7 elementos armados de espingarda e de pistola-metralhadora. Fogo…pum. Dois tiros chegaram e caiu um. Mais dois tiros e caiu outro armado de PPSH e de farda camuflada. Mais um tiro e outro ferido que fugiu aos gritos.
Os sobrantes puseram-se em fuga. O inimigo não parecia o mesmo das primeiras semanas da batalha do Como. Estava de facto enfraquecido e fugia ao contacto.
Com a operação a chegar ao fim previsto, o Comandante das Forças Terrestres, Ten Cor Cavaleiro, saiu com o grupo de comandos e o pelotão de paraquedistas às 23H30 do dia 20 de Março, atravessando a mata de Cauane, Cassaca e Cachil com a finalidade de verificar pessoalmente a capacidade de combate do IN.
Passagem e pequena paragem na tabanca de Cauane, troca de informações com o comandante da CCAV 488, dono da casa, e iniciámos a penetração na mata à 1 hora do dia 21, partindo da casa Brandão. Reacção do IN?...nenhuma. Progredimos até Cassaca que foi alcançada às 02H30. Feita uma batida cuidadosa à região, encontraram-se a Norte algumas casas de mato quase destruídas e há muito abandonadas.
Siga a tropa. Para a frente é que é o caminho. Já próximo da orla da mata de Cachil, ao “romper da bela aurora”, detectados 3 elementos IN um armado de PPSH e os outros dois de espingarda. Meia dúzia de tiros foram suficientes para fugirem. Um deles, ferido, deixou para trás a espingarda Mauser 7,9mm e 5 cartuchos da mesma. Tinha sangue na coronha.
Mais tarde, outro grupo de 5 elementos, avistados um pouco à distância, foram alvejados e fugiram sem responder ao nosso fogo. Levaram dois feridos.
Atingimos Cachil, na outra extremidade da ilha, que foi atravessada pacificamente de Sul para Norte sem qualquer beliscadura nem qualquer oposição à nossa presença por parte dos guerrilheiros.
Embarcados na LDM, lá fomos nós de regresso à praia. Foi a última operação da batalha do Como.
Por brincadeira dizíamos que tínhamos ido “fechar as portas da guerra”.
Foram também os últimos banhos.
No dia 22 de Março, o grupo de comandos regressou a Bissau, aproveitando a boleia da Dornier e alguns hélis que em diversas vagas nos transportaram. O Grupo de Comandos não teve baixas, nem feridos, nem nenhum elemento evacuado por doença, fazendo juz ao nosso lema: “Audaces fortuna juvat” (2)
Para as restantes tropas foram mais dois dias de trabalho a “desmontar o arraial.” Creio que foi o que menos lhes custou.
BAIXAS DE AMBOS OS LADOS
Das NT:
8 Mortos
15 Feridos
Do IN:
76 Mortos (confirmados)
29 Feridos
9 Prisioneiros
CONCLUSÕES
De tudo quanto descrevi, e que corresponde à realidade por mim vivida durante a Operação Tridente, podemos verificar que nem sempre, ou quase nunca, a história é escrita com isenção. Na verdade, tem-se especulado muito sobre o que realmente se passou no Como. Derrota para as tropas portuguesas, dizem uns, grande vitória, contrapõem outros.
Para mim, nem uma coisa nem outra, porque na guerra, em qualquer guerra, não há vencedores: todos são vencidos pela existência da própria guerra.
Porém, analisando a Operação Tridente no âmbito estritamente militar, facilmente se chega à conclusão que:
- O PAIGC dominava a Ilha do Como em 1963;
- Nas primeiras duas semanas opôs feroz resistência às NT, a quem causou baixas, não
permitindo a nossa progressão pela mata onde estava fortemente instalado;
- Graças à nossa persistência no combate, favorecida pela superioridade de meios que
na altura ainda tínhamos, fomos aos poucos dominando a situação;
- A partir da 3ª semana já conseguíamos entrar e progredir na mata;
- Sensivelmente na 5ª semana, já nos movimentávamos facilmente por toda a ilha e os
guerrilheiros opunham esporádica e fraca resistência;
- Começou a notar-se, a partir da 7ª semana, uma completa desagregação da
capacidade de combate dos guerrilheiros: basta ler a mensagem do Nino dirigida ao
seu pessoal e transcrita nesta crónica;
- No final da operação o PAIGC já não dominava a ilha;
A teoria defendida por alguns, sobretudo pelo PAIGC (mas essa não é de admirar) que as tropas portuguesas se viram forçadas a abandonar a ilha, não é verdadeira:
1) As tropas retiraram por ter terminado a operação e não se justificar a sua continuação uma vez alcançado o objectivo: o domínio da ilha pelas NT;
2) A ilha não foi abandonada pois ficou instalada em Cachil (na tal “fortaleza” de troncos de palmeira) uma companhia para patrulhar e não deixar que o IN se reorganizasse naquela região;
3) Se mais tarde se veio a verificar o recrudescer da actividade no local, isso deve-se ao facto de a Companhia que lá ficou se ter refugiado na “fortaleza”, nunca de lá saindo a não ser para ir para Catió quando era substituída por outra (Mas isso, é outra história);
Finalmente, uma palavra de apreço a quantos, de ambos os lados, se esforçaram e sacrificaram superando todas as dificuldades e,
Sentida homenagem aos que tombaram. A todos. De ambos os lados.
COMO É BOM VIVER EM PAZ!...
Quase 42 anos depois da Operação Tridente, alguns dos elementos que nela tomaram parte, pertencentes ao Grupo de Comandos, fotografados a 24 de Setembro de 2005,durante o convívio dos Grupos de Comandos que actuaram na Guiné entre 1964/66. Da esquerda para a direita [vd. foto no início deste pot]:
Sold João Firmino Martins Correia;
1ºcabo Marcelino da Mata;
1º cabo Fernando Celestino Raimundo;
Fur mil António M. Vassalo Miranda;
Fur Mário F.Roseira Dias;
Sold Joaquim Trindade Cavaco.
(Os postos referentes a cada uma, são os que tinham à época dos acontecimentos.)
Guiné > Brá > 1966 > O Alf Mil Briote, à esquerda, ladeado de dois dos primeiros comandos africanos, o Jamanta e o Joaquim. O Jamanta será mais tarde, em 1975, fuzilado no Cumeré, juntamente com outros comandos africanos.
© Virgínio Briote (2005)
Não posso deixar aqui de referir e prestar homenagem a alguns extraordinários elementos deste grupo, já falecidos:
- Fur mil Artur Pereira Pires, morto alguns meses depois na explosão de uma mina anti carro, nas proximidades de Madina do Boé;
- 1º Cabo Abdulai Queta Jamanca, fuzilado, juntamente com muitos outros ex-comandos africanos após a independência, por ordem de Luís Cabral;
- Por causa do natural e inexorável girar da roda da vida: Alf Maurício Leonel de Sousa Saraiva e Alf mil Justino Coelho Godinho.
PAZ ÀS SUAS ALMAS!
Guiné 63/74 - CCCLXXX: Op Tridente (Ilha do Como, 1964): III Parte (Mário Dias)
Quase 42 anos depois da Operação Tridente, alguns dos elementos que nela tomaram parte, pertencentes ao Grupo de Comandos, fotografados a 24 de Setembro de 2005,durante o convívio dos Grupos de Comandos que actuaram na Guiné entre 1964/66. © Mário Dias,
Da esquerda para a direita: (i) sold João Firmino Martins Correia; (ii) 1ºcabo Marcelino da Mata; (iii) 1º cabo Fernando Celestino Raimundo; (iv) fur mil António M. Vassalo Miranda; (v) fur Mário F. Roseira Dias; (vi) sold Joaquim Trindade Cavaco(Os postos, referentes a cada uma, são os que tinham à época dos acontecimentos).
Texto da autoria do Mário Dias, sargento comando (Brá, 1963/66):
OPERAÇÃO TRIDENTE > Guiné > Ilha do Como > De 14 de Janeiro a 24 de Março de 1964
III (e última) Parte
7. As abelhas
Dia 23 de Fevereiro novamente embarcados numa LDM com o Pelotão de de Paraquedistas e 8º Destacamento de Fuzileiros, rumo a Curcô onde pernoitámos.
No dia seguinte, com mais um grupo de combate da CCAV 488, iniciámos uma batida à mata. Por duas vezes tivemos contacto com um numeroso grupo de guerrilheiros que dispunham de um morteiro 82 e 1 metralhadora pesada 12,7mm. As NT causaram 7 mortos confirmados, sendo 3 caboverdeanos, armados com pistola-metralhadora, dois deles fardados de caqui. Nesta acção, o Pel Paraquedistas teve 1 morto, 1 ferido grave e 1 ferido ligeiro. Uma rajada de PPSH inutilizou a arma do comandante dos páras, que ficou ferido na cabeça.
Quando me recordo, à distância dos anos, do que aconteceu a seguir, dá-me vontade de rir da cena caricata que devemos ter feito.
Eu conto: tendo nós conseguido sempre levar a melhor nos contactos com o IN, eis que um enorme enxame de abelhas se abateu sobre nós. Toda a gente a sacudir-se, ferroadas de criar bicho, correria desenfreada. Quem diria… pequenos insectos conseguiram aquilo que o IN nunca foi capaz: pôr-nos em fuga. Com o pessoal todo picado, já havia muitos olhos tumefactos, nada poderíamos fazer a não ser o regresso a Curcô. Ganharam as abelhas.
Na orla da mata perto de Curcô, ainda descobrimos uma plataforma construída sobre palafitas, com cerca de 1,80m de altura, e que servia como posto de vigia sobre aquela localidade. Deixámo-la ficar armadilhada. Não sei se a armadilha chegou ou não a ser activada. Hoje, faço votos para que não.
8. Acentuam-se os indícios de fraqueza do IN
Que bem dormia eu quando, naquela madrugada do dia 27 de Fevereiro, “às 4 da matina” me acordaram:
- Porra… são lá horas de acordar um pacato cidadão embrenhado em sonhos tão deliciosos!...
- Vamos embora! - Mais uma vez a mata espera por nós. E fomos.
Sol já a brilhar, movimentos suspeitos no tarrafe. Avançámos cautelosamente para averiguar. Apenas algumas pegadas de 2 ou 3 pessoas que devem ter fugido com a nossa aproximação.
Nesse dia, juntamente com o Pel Paraq e 1 grupo de combate de elementos das CCCAV 487 e 489 foi destruída a tabanca de Catabão Segundo onde fizemos um prisioneiro e apreendemos 2 binóculos, 1 cantil, 1 espimgarda G3 com 4 carregadores, e 3 granadas de mão. Mais uma acção em que o IN não deu sinais de vida.
Voltemos então para a praia.
Decididamente não me concedem o prazer de me entregar nos braços de Morfeu tranquilamente.
- Eh pá, ainda só são cinco horas.
- Deixa-te de tretas e vamos embora. Temos que explorar uma informação importante dada pelo prisioneiro que capturámos no dia 27.
- É isso? É para já.
Enfiar camuflado, botas, pegar no equipamento e armamento. Está tudo em ordem? Claro que está. A arma de um comando está sempre junto dele e pronta a funcionar ao segundo.
Progressão silenciosa, escondidos, calma, devagar, parar e escutar com frequência. Sem surpresa é impossível um golpe de mão bem sucedido.
Acampamento atingido e assaltado às 9 horas, praticamente sem resistência (o IN fugiu). Era constituído por cerca de 50 casas de mato com uma centena de camas de madeira e de ferro. Viva o luxo!...até havia mosquiteiros, colchões, lençóis, colchas e outras “mordomias”. Espalhados por diversos locais, máquina de escrever, máquinas de costura, roupa já confeccionada e peças de tecido, muitos livros de instrução primária em português, muita correspondência, e os habituais utensílios de uso doméstico. O acampamento estava rodeado por alguns abrigos e tinha postos de observação nas árvores.
Incendiadas as casas de mato começou o habitual estoiro de munições e granadas que ali se encontravam escondidas escapadas à nossa observação.
Nas proximidades estava um cemitério com 30 sepulturas recentes.
Desta acção, realizada no dia 1 de Março, trouxemos para a base (rica praia!): 1 cunhete com 800 cartuchos 7,9; 80 cartuchos 7,62; muitas munições de diversos calibres; 1 granada de mão incendiária; 1 cantil USA; catanas.
Aos poucos, a forte resistência inicial do PAIGC vai caindo por terra. Mostram já sinais evidentes da falta de agressividade, que é parte da doutrina da guerrilha: “ataca quando o IN está fraco; esconde-te se ele é mais forte”.
Mensagem de Nino aos seus guerrilheiros em poder de um prisioneiro por nós capturado:
“Hoje faz 48 dias que os nossos camaradas estão enfrentando corajosamente as forças inimigas. Camaradas, tenham paciência, porque não tenho outra safa senão o vosso auxílio… As tropas estão a aumentar cada vez mais as suas forças…camaradas, não tenho mais nada a dizer-vos, somente posso dizer-vos que de um dia para o outro vamos ficar sem a população e sem os nossos guerrilheiros. Já estamos a contar com as baixas de 23 camaradas… do vosso camarada, Marga - Nino “,
Emboscadas do grupo de comandos na mata de S. Nicolau, na noite de 5 de Março até à tarde do dia seguinte, mais uma vez os guerrilheiros não compareceram.
9. As vacas e o arroz
Um agrupamento constituído pelo grupo de comandos, 8º Dest.Fuz, e um grupo de combate da CCAV 489, iniciaram, por volta das 8 da manhã de 12 de Março, uma acção sobre Catunco Papel e Catunco Balanta a fim de cercar e bater todas a zona destruindo tudo quanto possa constituir abrigo ou abastecimento para o IN e que não seja possível recuperar pelas NT.
Cercada a tabanca de Catundo Papel e de seguida Catunco Balanta, foram as casas revistadas e destruídas, tarefa que demorou quase 5 horas. Foram recuperadas 5 toneladas de arroz; capturado um elemento IN e apreendidas 2 granadas de mão, livros escolares em português, cadernos, fotografias, facturas, recibos de imposto indígena, e um envelope endereçado a BIAQUE DEHETHÉ, sendo remetente MUSSA SAMBU de Conakry.
Terminamos este dia com a acção que mais me custou durante toda a permanência no Como. Têm que ser abatidas cerca de uma centena de vacas que por ali andavam na bolanha bucolicamente pastando. Não havia forma de podermos transportá-las connosco. Começado o tiro ao alvo, iam caindo sem remédio. Pobres bichos. E que desperdício. Enquanto fazia pontaria ia ironicamente pensando naquela carne que por ali ia ficar para os jagudis enquanto nós tínhamos andado 23 dias a ração de combate.
- Que desperdício!... - E pensava:
- Olha aquele lombo como ficava bom num espeto a rodar, bem temperado com sal, limão e malagueta!...(pum) e aquela, que belo fígado deve ter para uma saborosas iscas !...pum… e pum… e mais pum até chorar de raiva.
Coisas da guerra … sempre impiedosa.
Concluída a mortandade, ainda alguns esquartejaram pernas e extraíram lombos para uma refeição extra. Deve ter sido fruto desta acção, a oferta pelos fuzileiros de carne de vaca à CCAV 489 a que se refere o Joaquim Ganhão na sua ”Cónica do soldado 328” (1).
10. Últimas operações.
Às 03H30 do dia 16 de Março, chegados a Curcô, aguardamos a aurora pondo-nos a caminho com a CCAV 489 (-). A missão era bater a mata até Cassca e daí virar a Sul até Cauane, eliminando ou aprisionando qualquer elemento IN e detectar e destruir tudo quanto possa oferecer abrigo ou recursos para o IN. Resistência ?...mais uma vez, nada.
Foi encontrado um acampamento com 15 casas de mato. Uma delas bem grande que nos pareceu ser destinada a reuniões onde estava um molho de panfletos de acção psicológica das NT, recentemente lançados na ilha pelos nossos aviões. Numa outra barraca, um caderno de cópias de INÁCIO BATALÉ, datado de 12 de Novembro de 1963. Nas imediações foram descobertos e destruídos 3 depósitos de arroz, estimando-se serem cerca de 15 toneladas.
Progredindo para Sul, dentro da mata da região de Cauane, e a cerca de 600 metros da tabanca, detectou-se um grupo de 7 elementos armados de espingarda e de pistola-metralhadora. Fogo…pum. Dois tiros chegaram e caiu um. Mais dois tiros e caiu outro armado de PPSH e de farda camuflada. Mais um tiro e outro ferido que fugiu aos gritos.
Os sobrantes puseram-se em fuga. O inimigo não parecia o mesmo das primeiras semanas da batalha do Como. Estava de facto enfraquecido e fugia ao contacto.
Com a operação a chegar ao fim previsto, o Comandante das Forças Terrestres, Ten Cor Cavaleiro, saiu com o grupo de comandos e o pelotão de paraquedistas às 23H30 do dia 20 de Março, atravessando a mata de Cauane, Cassaca e Cachil com a finalidade de verificar pessoalmente a capacidade de combate do IN.
Passagem e pequena paragem na tabanca de Cauane, troca de informações com o comandante da CCAV 488, dono da casa, e iniciámos a penetração na mata à 1 hora do dia 21, partindo da casa Brandão. Reacção do IN?...nenhuma. Progredimos até Cassaca que foi alcançada às 02H30. Feita uma batida cuidadosa à região, encontraram-se a Norte algumas casas de mato quase destruídas e há muito abandonadas.
Siga a tropa. Para a frente é que é o caminho. Já próximo da orla da mata de Cachil, ao “romper da bela aurora”, detectados 3 elementos IN um armado de PPSH e os outros dois de espingarda. Meia dúzia de tiros foram suficientes para fugirem. Um deles, ferido, deixou para trás a espingarda Mauser 7,9mm e 5 cartuchos da mesma. Tinha sangue na coronha.
Mais tarde, outro grupo de 5 elementos, avistados um pouco à distância, foram alvejados e fugiram sem responder ao nosso fogo. Levaram dois feridos.
Atingimos Cachil, na outra extremidade da ilha, que foi atravessada pacificamente de Sul para Norte sem qualquer beliscadura nem qualquer oposição à nossa presença por parte dos guerrilheiros.
Embarcados na LDM, lá fomos nós de regresso à praia. Foi a última operação da batalha do Como.
Por brincadeira dizíamos que tínhamos ido “fechar as portas da guerra”.
Foram também os últimos banhos.
No dia 22 de Março, o grupo de comandos regressou a Bissau, aproveitando a boleia da Dornier e alguns hélis que em diversas vagas nos transportaram. O Grupo de Comandos não teve baixas, nem feridos, nem nenhum elemento evacuado por doença, fazendo juz ao nosso lema: “Audaces fortuna juvat” (2)
Para as restantes tropas foram mais dois dias de trabalho a “desmontar o arraial.” Creio que foi o que menos lhes custou.
BAIXAS DE AMBOS OS LADOS
Das NT:
8 Mortos
15 Feridos
Do IN:
76 Mortos (confirmados)
29 Feridos
9 Prisioneiros
CONCLUSÕES
De tudo quanto descrevi, e que corresponde à realidade por mim vivida durante a Operação Tridente, podemos verificar que nem sempre, ou quase nunca, a história é escrita com isenção. Na verdade, tem-se especulado muito sobre o que realmente se passou no Como. Derrota para as tropas portuguesas, dizem uns, grande vitória, contrapõem outros.
Para mim, nem uma coisa nem outra, porque na guerra, em qualquer guerra, não há vencedores: todos são vencidos pela existência da própria guerra.
Porém, analisando a Operação Tridente no âmbito estritamente militar, facilmente se chega à conclusão que:
- O PAIGC dominava a Ilha do Como em 1963;
- Nas primeiras duas semanas opôs feroz resistência às NT, a quem causou baixas, não
permitindo a nossa progressão pela mata onde estava fortemente instalado;
- Graças à nossa persistência no combate, favorecida pela superioridade de meios que
na altura ainda tínhamos, fomos aos poucos dominando a situação;
- A partir da 3ª semana já conseguíamos entrar e progredir na mata;
- Sensivelmente na 5ª semana, já nos movimentávamos facilmente por toda a ilha e os
guerrilheiros opunham esporádica e fraca resistência;
- Começou a notar-se, a partir da 7ª semana, uma completa desagregação da
capacidade de combate dos guerrilheiros: basta ler a mensagem do Nino dirigida ao
seu pessoal e transcrita nesta crónica;
- No final da operação o PAIGC já não dominava a ilha;
A teoria defendida por alguns, sobretudo pelo PAIGC (mas essa não é de admirar) que as tropas portuguesas se viram forçadas a abandonar a ilha, não é verdadeira:
1) As tropas retiraram por ter terminado a operação e não se justificar a sua continuação uma vez alcançado o objectivo: o domínio da ilha pelas NT;
2) A ilha não foi abandonada pois ficou instalada em Cachil (na tal “fortaleza” de troncos de palmeira) uma companhia para patrulhar e não deixar que o IN se reorganizasse naquela região;
3) Se mais tarde se veio a verificar o recrudescer da actividade no local, isso deve-se ao facto de a Companhia que lá ficou se ter refugiado na “fortaleza”, nunca de lá saindo a não ser para ir para Catió quando era substituída por outra (Mas isso, é outra história);
Finalmente, uma palavra de apreço a quantos, de ambos os lados, se esforçaram e sacrificaram superando todas as dificuldades e,
Sentida homenagem aos que tombaram. A todos. De ambos os lados.
COMO É BOM VIVER EM PAZ!...
Quase 42 anos depois da Operação Tridente, alguns dos elementos que nela tomaram parte, pertencentes ao Grupo de Comandos, fotografados a 24 de Setembro de 2005,durante o convívio dos Grupos de Comandos que actuaram na Guiné entre 1964/66. Da esquerda para a direita [vd. foto no início deste pot]:
Sold João Firmino Martins Correia;
1ºcabo Marcelino da Mata;
1º cabo Fernando Celestino Raimundo;
Fur mil António M. Vassalo Miranda;
Fur Mário F.Roseira Dias;
Sold Joaquim Trindade Cavaco.
(Os postos referentes a cada uma, são os que tinham à época dos acontecimentos.)
Guiné > Brá > 1966 > O Alf Mil Briote, à esquerda, ladeado de dois dos primeiros comandos africanos, o Jamanta e o Joaquim. O Jamanta será mais tarde, em 1975, fuzilado no Cumeré, juntamente com outros comandos africanos.
© Virgínio Briote (2005)
Não posso deixar aqui de referir e prestar homenagem a alguns extraordinários elementos deste grupo, já falecidos:
- Fur mil Artur Pereira Pires, morto alguns meses depois na explosão de uma mina anti carro, nas proximidades de Madina do Boé;
- 1º Cabo Abdulai Queta Jamanca, fuzilado, juntamente com muitos outros ex-comandos africanos após a independência, por ordem de Luís Cabral;
- Por causa do natural e inexorável girar da roda da vida: Alf Maurício Leonel de Sousa Saraiva e Alf mil Justino Coelho Godinho.
PAZ ÀS SUAS ALMAS!
Da esquerda para a direita: (i) sold João Firmino Martins Correia; (ii) 1ºcabo Marcelino da Mata; (iii) 1º cabo Fernando Celestino Raimundo; (iv) fur mil António M. Vassalo Miranda; (v) fur Mário F. Roseira Dias; (vi) sold Joaquim Trindade Cavaco(Os postos, referentes a cada uma, são os que tinham à época dos acontecimentos).
Texto da autoria do Mário Dias, sargento comando (Brá, 1963/66):
OPERAÇÃO TRIDENTE > Guiné > Ilha do Como > De 14 de Janeiro a 24 de Março de 1964
III (e última) Parte
7. As abelhas
Dia 23 de Fevereiro novamente embarcados numa LDM com o Pelotão de de Paraquedistas e 8º Destacamento de Fuzileiros, rumo a Curcô onde pernoitámos.
No dia seguinte, com mais um grupo de combate da CCAV 488, iniciámos uma batida à mata. Por duas vezes tivemos contacto com um numeroso grupo de guerrilheiros que dispunham de um morteiro 82 e 1 metralhadora pesada 12,7mm. As NT causaram 7 mortos confirmados, sendo 3 caboverdeanos, armados com pistola-metralhadora, dois deles fardados de caqui. Nesta acção, o Pel Paraquedistas teve 1 morto, 1 ferido grave e 1 ferido ligeiro. Uma rajada de PPSH inutilizou a arma do comandante dos páras, que ficou ferido na cabeça.
Quando me recordo, à distância dos anos, do que aconteceu a seguir, dá-me vontade de rir da cena caricata que devemos ter feito.
Eu conto: tendo nós conseguido sempre levar a melhor nos contactos com o IN, eis que um enorme enxame de abelhas se abateu sobre nós. Toda a gente a sacudir-se, ferroadas de criar bicho, correria desenfreada. Quem diria… pequenos insectos conseguiram aquilo que o IN nunca foi capaz: pôr-nos em fuga. Com o pessoal todo picado, já havia muitos olhos tumefactos, nada poderíamos fazer a não ser o regresso a Curcô. Ganharam as abelhas.
Na orla da mata perto de Curcô, ainda descobrimos uma plataforma construída sobre palafitas, com cerca de 1,80m de altura, e que servia como posto de vigia sobre aquela localidade. Deixámo-la ficar armadilhada. Não sei se a armadilha chegou ou não a ser activada. Hoje, faço votos para que não.
8. Acentuam-se os indícios de fraqueza do IN
Que bem dormia eu quando, naquela madrugada do dia 27 de Fevereiro, “às 4 da matina” me acordaram:
- Porra… são lá horas de acordar um pacato cidadão embrenhado em sonhos tão deliciosos!...
- Vamos embora! - Mais uma vez a mata espera por nós. E fomos.
Sol já a brilhar, movimentos suspeitos no tarrafe. Avançámos cautelosamente para averiguar. Apenas algumas pegadas de 2 ou 3 pessoas que devem ter fugido com a nossa aproximação.
Nesse dia, juntamente com o Pel Paraq e 1 grupo de combate de elementos das CCCAV 487 e 489 foi destruída a tabanca de Catabão Segundo onde fizemos um prisioneiro e apreendemos 2 binóculos, 1 cantil, 1 espimgarda G3 com 4 carregadores, e 3 granadas de mão. Mais uma acção em que o IN não deu sinais de vida.
Voltemos então para a praia.
Decididamente não me concedem o prazer de me entregar nos braços de Morfeu tranquilamente.
- Eh pá, ainda só são cinco horas.
- Deixa-te de tretas e vamos embora. Temos que explorar uma informação importante dada pelo prisioneiro que capturámos no dia 27.
- É isso? É para já.
Enfiar camuflado, botas, pegar no equipamento e armamento. Está tudo em ordem? Claro que está. A arma de um comando está sempre junto dele e pronta a funcionar ao segundo.
Progressão silenciosa, escondidos, calma, devagar, parar e escutar com frequência. Sem surpresa é impossível um golpe de mão bem sucedido.
Acampamento atingido e assaltado às 9 horas, praticamente sem resistência (o IN fugiu). Era constituído por cerca de 50 casas de mato com uma centena de camas de madeira e de ferro. Viva o luxo!...até havia mosquiteiros, colchões, lençóis, colchas e outras “mordomias”. Espalhados por diversos locais, máquina de escrever, máquinas de costura, roupa já confeccionada e peças de tecido, muitos livros de instrução primária em português, muita correspondência, e os habituais utensílios de uso doméstico. O acampamento estava rodeado por alguns abrigos e tinha postos de observação nas árvores.
Incendiadas as casas de mato começou o habitual estoiro de munições e granadas que ali se encontravam escondidas escapadas à nossa observação.
Nas proximidades estava um cemitério com 30 sepulturas recentes.
Desta acção, realizada no dia 1 de Março, trouxemos para a base (rica praia!): 1 cunhete com 800 cartuchos 7,9; 80 cartuchos 7,62; muitas munições de diversos calibres; 1 granada de mão incendiária; 1 cantil USA; catanas.
Aos poucos, a forte resistência inicial do PAIGC vai caindo por terra. Mostram já sinais evidentes da falta de agressividade, que é parte da doutrina da guerrilha: “ataca quando o IN está fraco; esconde-te se ele é mais forte”.
Mensagem de Nino aos seus guerrilheiros em poder de um prisioneiro por nós capturado:
“Hoje faz 48 dias que os nossos camaradas estão enfrentando corajosamente as forças inimigas. Camaradas, tenham paciência, porque não tenho outra safa senão o vosso auxílio… As tropas estão a aumentar cada vez mais as suas forças…camaradas, não tenho mais nada a dizer-vos, somente posso dizer-vos que de um dia para o outro vamos ficar sem a população e sem os nossos guerrilheiros. Já estamos a contar com as baixas de 23 camaradas… do vosso camarada, Marga - Nino “,
Emboscadas do grupo de comandos na mata de S. Nicolau, na noite de 5 de Março até à tarde do dia seguinte, mais uma vez os guerrilheiros não compareceram.
9. As vacas e o arroz
Um agrupamento constituído pelo grupo de comandos, 8º Dest.Fuz, e um grupo de combate da CCAV 489, iniciaram, por volta das 8 da manhã de 12 de Março, uma acção sobre Catunco Papel e Catunco Balanta a fim de cercar e bater todas a zona destruindo tudo quanto possa constituir abrigo ou abastecimento para o IN e que não seja possível recuperar pelas NT.
Cercada a tabanca de Catundo Papel e de seguida Catunco Balanta, foram as casas revistadas e destruídas, tarefa que demorou quase 5 horas. Foram recuperadas 5 toneladas de arroz; capturado um elemento IN e apreendidas 2 granadas de mão, livros escolares em português, cadernos, fotografias, facturas, recibos de imposto indígena, e um envelope endereçado a BIAQUE DEHETHÉ, sendo remetente MUSSA SAMBU de Conakry.
Terminamos este dia com a acção que mais me custou durante toda a permanência no Como. Têm que ser abatidas cerca de uma centena de vacas que por ali andavam na bolanha bucolicamente pastando. Não havia forma de podermos transportá-las connosco. Começado o tiro ao alvo, iam caindo sem remédio. Pobres bichos. E que desperdício. Enquanto fazia pontaria ia ironicamente pensando naquela carne que por ali ia ficar para os jagudis enquanto nós tínhamos andado 23 dias a ração de combate.
- Que desperdício!... - E pensava:
- Olha aquele lombo como ficava bom num espeto a rodar, bem temperado com sal, limão e malagueta!...(pum) e aquela, que belo fígado deve ter para uma saborosas iscas !...pum… e pum… e mais pum até chorar de raiva.
Coisas da guerra … sempre impiedosa.
Concluída a mortandade, ainda alguns esquartejaram pernas e extraíram lombos para uma refeição extra. Deve ter sido fruto desta acção, a oferta pelos fuzileiros de carne de vaca à CCAV 489 a que se refere o Joaquim Ganhão na sua ”Cónica do soldado 328” (1).
10. Últimas operações.
Às 03H30 do dia 16 de Março, chegados a Curcô, aguardamos a aurora pondo-nos a caminho com a CCAV 489 (-). A missão era bater a mata até Cassca e daí virar a Sul até Cauane, eliminando ou aprisionando qualquer elemento IN e detectar e destruir tudo quanto possa oferecer abrigo ou recursos para o IN. Resistência ?...mais uma vez, nada.
Foi encontrado um acampamento com 15 casas de mato. Uma delas bem grande que nos pareceu ser destinada a reuniões onde estava um molho de panfletos de acção psicológica das NT, recentemente lançados na ilha pelos nossos aviões. Numa outra barraca, um caderno de cópias de INÁCIO BATALÉ, datado de 12 de Novembro de 1963. Nas imediações foram descobertos e destruídos 3 depósitos de arroz, estimando-se serem cerca de 15 toneladas.
Progredindo para Sul, dentro da mata da região de Cauane, e a cerca de 600 metros da tabanca, detectou-se um grupo de 7 elementos armados de espingarda e de pistola-metralhadora. Fogo…pum. Dois tiros chegaram e caiu um. Mais dois tiros e caiu outro armado de PPSH e de farda camuflada. Mais um tiro e outro ferido que fugiu aos gritos.
Os sobrantes puseram-se em fuga. O inimigo não parecia o mesmo das primeiras semanas da batalha do Como. Estava de facto enfraquecido e fugia ao contacto.
Com a operação a chegar ao fim previsto, o Comandante das Forças Terrestres, Ten Cor Cavaleiro, saiu com o grupo de comandos e o pelotão de paraquedistas às 23H30 do dia 20 de Março, atravessando a mata de Cauane, Cassaca e Cachil com a finalidade de verificar pessoalmente a capacidade de combate do IN.
Passagem e pequena paragem na tabanca de Cauane, troca de informações com o comandante da CCAV 488, dono da casa, e iniciámos a penetração na mata à 1 hora do dia 21, partindo da casa Brandão. Reacção do IN?...nenhuma. Progredimos até Cassaca que foi alcançada às 02H30. Feita uma batida cuidadosa à região, encontraram-se a Norte algumas casas de mato quase destruídas e há muito abandonadas.
Siga a tropa. Para a frente é que é o caminho. Já próximo da orla da mata de Cachil, ao “romper da bela aurora”, detectados 3 elementos IN um armado de PPSH e os outros dois de espingarda. Meia dúzia de tiros foram suficientes para fugirem. Um deles, ferido, deixou para trás a espingarda Mauser 7,9mm e 5 cartuchos da mesma. Tinha sangue na coronha.
Mais tarde, outro grupo de 5 elementos, avistados um pouco à distância, foram alvejados e fugiram sem responder ao nosso fogo. Levaram dois feridos.
Atingimos Cachil, na outra extremidade da ilha, que foi atravessada pacificamente de Sul para Norte sem qualquer beliscadura nem qualquer oposição à nossa presença por parte dos guerrilheiros.
Embarcados na LDM, lá fomos nós de regresso à praia. Foi a última operação da batalha do Como.
Por brincadeira dizíamos que tínhamos ido “fechar as portas da guerra”.
Foram também os últimos banhos.
No dia 22 de Março, o grupo de comandos regressou a Bissau, aproveitando a boleia da Dornier e alguns hélis que em diversas vagas nos transportaram. O Grupo de Comandos não teve baixas, nem feridos, nem nenhum elemento evacuado por doença, fazendo juz ao nosso lema: “Audaces fortuna juvat” (2)
Para as restantes tropas foram mais dois dias de trabalho a “desmontar o arraial.” Creio que foi o que menos lhes custou.
BAIXAS DE AMBOS OS LADOS
Das NT:
8 Mortos
15 Feridos
Do IN:
76 Mortos (confirmados)
29 Feridos
9 Prisioneiros
CONCLUSÕES
De tudo quanto descrevi, e que corresponde à realidade por mim vivida durante a Operação Tridente, podemos verificar que nem sempre, ou quase nunca, a história é escrita com isenção. Na verdade, tem-se especulado muito sobre o que realmente se passou no Como. Derrota para as tropas portuguesas, dizem uns, grande vitória, contrapõem outros.
Para mim, nem uma coisa nem outra, porque na guerra, em qualquer guerra, não há vencedores: todos são vencidos pela existência da própria guerra.
Porém, analisando a Operação Tridente no âmbito estritamente militar, facilmente se chega à conclusão que:
- O PAIGC dominava a Ilha do Como em 1963;
- Nas primeiras duas semanas opôs feroz resistência às NT, a quem causou baixas, não
permitindo a nossa progressão pela mata onde estava fortemente instalado;
- Graças à nossa persistência no combate, favorecida pela superioridade de meios que
na altura ainda tínhamos, fomos aos poucos dominando a situação;
- A partir da 3ª semana já conseguíamos entrar e progredir na mata;
- Sensivelmente na 5ª semana, já nos movimentávamos facilmente por toda a ilha e os
guerrilheiros opunham esporádica e fraca resistência;
- Começou a notar-se, a partir da 7ª semana, uma completa desagregação da
capacidade de combate dos guerrilheiros: basta ler a mensagem do Nino dirigida ao
seu pessoal e transcrita nesta crónica;
- No final da operação o PAIGC já não dominava a ilha;
A teoria defendida por alguns, sobretudo pelo PAIGC (mas essa não é de admirar) que as tropas portuguesas se viram forçadas a abandonar a ilha, não é verdadeira:
1) As tropas retiraram por ter terminado a operação e não se justificar a sua continuação uma vez alcançado o objectivo: o domínio da ilha pelas NT;
2) A ilha não foi abandonada pois ficou instalada em Cachil (na tal “fortaleza” de troncos de palmeira) uma companhia para patrulhar e não deixar que o IN se reorganizasse naquela região;
3) Se mais tarde se veio a verificar o recrudescer da actividade no local, isso deve-se ao facto de a Companhia que lá ficou se ter refugiado na “fortaleza”, nunca de lá saindo a não ser para ir para Catió quando era substituída por outra (Mas isso, é outra história);
Finalmente, uma palavra de apreço a quantos, de ambos os lados, se esforçaram e sacrificaram superando todas as dificuldades e,
Sentida homenagem aos que tombaram. A todos. De ambos os lados.
COMO É BOM VIVER EM PAZ!...
Quase 42 anos depois da Operação Tridente, alguns dos elementos que nela tomaram parte, pertencentes ao Grupo de Comandos, fotografados a 24 de Setembro de 2005,durante o convívio dos Grupos de Comandos que actuaram na Guiné entre 1964/66. Da esquerda para a direita [vd. foto no início deste pot]:
Sold João Firmino Martins Correia;
1ºcabo Marcelino da Mata;
1º cabo Fernando Celestino Raimundo;
Fur mil António M. Vassalo Miranda;
Fur Mário F.Roseira Dias;
Sold Joaquim Trindade Cavaco.
(Os postos referentes a cada uma, são os que tinham à época dos acontecimentos.)
Guiné > Brá > 1966 > O Alf Mil Briote, à esquerda, ladeado de dois dos primeiros comandos africanos, o Jamanta e o Joaquim. O Jamanta será mais tarde, em 1975, fuzilado no Cumeré, juntamente com outros comandos africanos.
© Virgínio Briote (2005)
Não posso deixar aqui de referir e prestar homenagem a alguns extraordinários elementos deste grupo, já falecidos:
- Fur mil Artur Pereira Pires, morto alguns meses depois na explosão de uma mina anti carro, nas proximidades de Madina do Boé;
- 1º Cabo Abdulai Queta Jamanca, fuzilado, juntamente com muitos outros ex-comandos africanos após a independência, por ordem de Luís Cabral;
- Por causa do natural e inexorável girar da roda da vida: Alf Maurício Leonel de Sousa Saraiva e Alf mil Justino Coelho Godinho.
PAZ ÀS SUAS ALMAS!
Guiné 63/74 - CCCLXXIX: Uma aposta estúpida (Rui Esteves)
Guiné > João Landim > 1965/66 > A famosa jangada que atravessava o Rio Mansoa em João Landim, ligando Bissau com a região do Cacheu.
Aqui o rio é largo e lodoso.
© Virgínio Briote (2005)
Uma aposta estúpida, por Rui Esteves (1)
Estávamos na região de Teixeira Pinto / Cacheu e tínhamos vindo a Bissau tratar de assuntos da Companhia.
No regresso, enquanto aguardávamos vez que os nossos Unimogs tivessem lugar na barcaça que fazia a passagem do rio (em João Landim, se bem me lembro), entretinha-me a deitar pedras para o meio do lodaçal que ficava a descoberto pela maré vasa.
Era um lodaçal preto, viscoso, com cerca de 50 metros de extensão, onde se viam centenas de caranguejos a passear.
Qualquer pedra que atirássemos, fosse leve ou pesada, era rapidamente engolida por aquele lodaçal.
Ao meu lado estava o 70, um soldado cozinheiro da minha Companhia, um pouco destravado.
Comentei com ele que, se um homem se aventurasse naquele lodaçal, provavelmente ficaria ali, afogado.
Diz-me logo o 70:
- O meu furriel quer apostar como vou ali à beira do rio sem me afogar?
Há dias assim, uma pessoa não pensa e dei por mim a aceitar a aposta, convencido que ele não teria a coragem ou a imprudência para arriscar a própria vida.
Ora o 70 não primava pela prudência e também não era conhecido pelo juízo e, quando dei por ele, estava completamente despido e a atravessar o dito lodaçal.
Devagar, fui vendo o 70 a avançar, afundando-se mais e mais, até chegar a um ponto em que só se via a cabeça.
Escusado será dizer que, à medida que o 70 ia ficando submerso em lodo, cada vez ficava mais preocupado, temendo que duma aposta estúpida resultasse a morte de um homem.
Bom, o 70 chegou ao tal ponto de só se ver a cabeça, acenou, e assim como foi, assim regressou à margem, completamente coberto de lama.
Passou-se por água, retirou a maior parte da lama, vestiu-se e disse-me:
- Furriel, ganhei a aposta, dê-me os meus 500 pesos!
Era muito dinheiro, quase metade da remuneração de um soldado no Ultramar, mas acho que nunca paguei tão bem uma aposta perdida.
E serviu-me de lição, que quem faz apostas com tolos…
____________
Lavadores, 13 de Dezembro de 2005.
(1) Rui Esteves, ex-furriel miliciano enfermeiro, CCCAÇ 3327 (Teixeira Pinto e Bissássema, 1971/73).
O Rui diz-me que "aos poucos e poucos" se vai (re)lembrando de alguns episódios da Guiné. Este é um deles.
Aqui o rio é largo e lodoso.
© Virgínio Briote (2005)
Uma aposta estúpida, por Rui Esteves (1)
Estávamos na região de Teixeira Pinto / Cacheu e tínhamos vindo a Bissau tratar de assuntos da Companhia.
No regresso, enquanto aguardávamos vez que os nossos Unimogs tivessem lugar na barcaça que fazia a passagem do rio (em João Landim, se bem me lembro), entretinha-me a deitar pedras para o meio do lodaçal que ficava a descoberto pela maré vasa.
Era um lodaçal preto, viscoso, com cerca de 50 metros de extensão, onde se viam centenas de caranguejos a passear.
Qualquer pedra que atirássemos, fosse leve ou pesada, era rapidamente engolida por aquele lodaçal.
Ao meu lado estava o 70, um soldado cozinheiro da minha Companhia, um pouco destravado.
Comentei com ele que, se um homem se aventurasse naquele lodaçal, provavelmente ficaria ali, afogado.
Diz-me logo o 70:
- O meu furriel quer apostar como vou ali à beira do rio sem me afogar?
Há dias assim, uma pessoa não pensa e dei por mim a aceitar a aposta, convencido que ele não teria a coragem ou a imprudência para arriscar a própria vida.
Ora o 70 não primava pela prudência e também não era conhecido pelo juízo e, quando dei por ele, estava completamente despido e a atravessar o dito lodaçal.
Devagar, fui vendo o 70 a avançar, afundando-se mais e mais, até chegar a um ponto em que só se via a cabeça.
Escusado será dizer que, à medida que o 70 ia ficando submerso em lodo, cada vez ficava mais preocupado, temendo que duma aposta estúpida resultasse a morte de um homem.
Bom, o 70 chegou ao tal ponto de só se ver a cabeça, acenou, e assim como foi, assim regressou à margem, completamente coberto de lama.
Passou-se por água, retirou a maior parte da lama, vestiu-se e disse-me:
- Furriel, ganhei a aposta, dê-me os meus 500 pesos!
Era muito dinheiro, quase metade da remuneração de um soldado no Ultramar, mas acho que nunca paguei tão bem uma aposta perdida.
E serviu-me de lição, que quem faz apostas com tolos…
____________
Lavadores, 13 de Dezembro de 2005.
(1) Rui Esteves, ex-furriel miliciano enfermeiro, CCCAÇ 3327 (Teixeira Pinto e Bissássema, 1971/73).
O Rui diz-me que "aos poucos e poucos" se vai (re)lembrando de alguns episódios da Guiné. Este é um deles.
Guiné 63/74 - CCCLXXIX: Uma aposta estúpida (Rui Esteves)
Guiné > João Landim > 1965/66 > A famosa jangada que atravessava o Rio Mansoa em João Landim, ligando Bissau com a região do Cacheu.
Aqui o rio é largo e lodoso.
© Virgínio Briote (2005)
Uma aposta estúpida, por Rui Esteves (1)
Estávamos na região de Teixeira Pinto / Cacheu e tínhamos vindo a Bissau tratar de assuntos da Companhia.
No regresso, enquanto aguardávamos vez que os nossos Unimogs tivessem lugar na barcaça que fazia a passagem do rio (em João Landim, se bem me lembro), entretinha-me a deitar pedras para o meio do lodaçal que ficava a descoberto pela maré vasa.
Era um lodaçal preto, viscoso, com cerca de 50 metros de extensão, onde se viam centenas de caranguejos a passear.
Qualquer pedra que atirássemos, fosse leve ou pesada, era rapidamente engolida por aquele lodaçal.
Ao meu lado estava o 70, um soldado cozinheiro da minha Companhia, um pouco destravado.
Comentei com ele que, se um homem se aventurasse naquele lodaçal, provavelmente ficaria ali, afogado.
Diz-me logo o 70:
- O meu furriel quer apostar como vou ali à beira do rio sem me afogar?
Há dias assim, uma pessoa não pensa e dei por mim a aceitar a aposta, convencido que ele não teria a coragem ou a imprudência para arriscar a própria vida.
Ora o 70 não primava pela prudência e também não era conhecido pelo juízo e, quando dei por ele, estava completamente despido e a atravessar o dito lodaçal.
Devagar, fui vendo o 70 a avançar, afundando-se mais e mais, até chegar a um ponto em que só se via a cabeça.
Escusado será dizer que, à medida que o 70 ia ficando submerso em lodo, cada vez ficava mais preocupado, temendo que duma aposta estúpida resultasse a morte de um homem.
Bom, o 70 chegou ao tal ponto de só se ver a cabeça, acenou, e assim como foi, assim regressou à margem, completamente coberto de lama.
Passou-se por água, retirou a maior parte da lama, vestiu-se e disse-me:
- Furriel, ganhei a aposta, dê-me os meus 500 pesos!
Era muito dinheiro, quase metade da remuneração de um soldado no Ultramar, mas acho que nunca paguei tão bem uma aposta perdida.
E serviu-me de lição, que quem faz apostas com tolos…
____________
Lavadores, 13 de Dezembro de 2005.
(1) Rui Esteves, ex-furriel miliciano enfermeiro, CCCAÇ 3327 (Teixeira Pinto e Bissássema, 1971/73).
O Rui diz-me que "aos poucos e poucos" se vai (re)lembrando de alguns episódios da Guiné. Este é um deles.
Aqui o rio é largo e lodoso.
© Virgínio Briote (2005)
Uma aposta estúpida, por Rui Esteves (1)
Estávamos na região de Teixeira Pinto / Cacheu e tínhamos vindo a Bissau tratar de assuntos da Companhia.
No regresso, enquanto aguardávamos vez que os nossos Unimogs tivessem lugar na barcaça que fazia a passagem do rio (em João Landim, se bem me lembro), entretinha-me a deitar pedras para o meio do lodaçal que ficava a descoberto pela maré vasa.
Era um lodaçal preto, viscoso, com cerca de 50 metros de extensão, onde se viam centenas de caranguejos a passear.
Qualquer pedra que atirássemos, fosse leve ou pesada, era rapidamente engolida por aquele lodaçal.
Ao meu lado estava o 70, um soldado cozinheiro da minha Companhia, um pouco destravado.
Comentei com ele que, se um homem se aventurasse naquele lodaçal, provavelmente ficaria ali, afogado.
Diz-me logo o 70:
- O meu furriel quer apostar como vou ali à beira do rio sem me afogar?
Há dias assim, uma pessoa não pensa e dei por mim a aceitar a aposta, convencido que ele não teria a coragem ou a imprudência para arriscar a própria vida.
Ora o 70 não primava pela prudência e também não era conhecido pelo juízo e, quando dei por ele, estava completamente despido e a atravessar o dito lodaçal.
Devagar, fui vendo o 70 a avançar, afundando-se mais e mais, até chegar a um ponto em que só se via a cabeça.
Escusado será dizer que, à medida que o 70 ia ficando submerso em lodo, cada vez ficava mais preocupado, temendo que duma aposta estúpida resultasse a morte de um homem.
Bom, o 70 chegou ao tal ponto de só se ver a cabeça, acenou, e assim como foi, assim regressou à margem, completamente coberto de lama.
Passou-se por água, retirou a maior parte da lama, vestiu-se e disse-me:
- Furriel, ganhei a aposta, dê-me os meus 500 pesos!
Era muito dinheiro, quase metade da remuneração de um soldado no Ultramar, mas acho que nunca paguei tão bem uma aposta perdida.
E serviu-me de lição, que quem faz apostas com tolos…
____________
Lavadores, 13 de Dezembro de 2005.
(1) Rui Esteves, ex-furriel miliciano enfermeiro, CCCAÇ 3327 (Teixeira Pinto e Bissássema, 1971/73).
O Rui diz-me que "aos poucos e poucos" se vai (re)lembrando de alguns episódios da Guiné. Este é um deles.
16 dezembro 2005
Guiné 63/74 - CCCLXXVIII: Um conto de Natal (Artur Augusto Silva, 1962)
Guiné > Bissau > Brá > 1965 O General Schultz (à esquerda)
© Virgínio Briote (2005)
Texto do Carlos Schwarz (mais conhecido por Pepito, na sua terra natal, a Guiné-Bissau)
Caro Luís,
Envio-te um conto de Natal, escrito por meu pai, Artur Augusto Silva que nasceu na Ilha da Brava, em Cabo Verde, e que foi advogado na Guiné-Bissau desde 1948, tendo defendido os presos políticos do PAIGC, em 61 julgamentos, um dos quais com 23 réus tendo tido apenas duas condenações.
Em 1966, a mando do governador Arnaldo Schultz, foi preso pela Pide, no aeroporto de Lisboa, quando vinha de férias tendo ficado cinco meses na prisão de Caxias. Quando foi libertado, proibiram-no de regressar à Guiné e fixaram-lhe residência em Lisboa.
Em 1976, quando me veio visitar a Bissau, o então Presidente Luís Cabral convidou-o a trabalhar como juiz do Supremo Tribunal de Justiça, tendo também leccionado Direito Consuetudinário na Escola de Direito de Bissau desde que ela foi criada e até a 1983, quando faleceu.
Trata-se de um conto de que gosto muito (nós, os 3 filhos, pensamos editar em Fevereiro de 2006 um livro com os contos dele)e por isso te envio como postal de Feliz Natal.
abraços
pepito
Comentário de L.G.: Obrigado, Pepito, é um gesto muito bonito e que nos sensibiliza a todos nós, tertulianos. O teu pai deve ter sido um grande homem, de coragem e de cultura. E este pequeno conto é de primeira água. Que descanse em paz o Dr. Artur Augusto Silva. E paz na Guiné-Bissau e no resto da terra aos homens e às mulheres de boa vontade!
________
Um conto de Natal
Noite luarenta de Dezembro …
Na povoação de Quebo, perdida no sertão da terra dos Fulas, o tubabo conversa com seu velho amigo, Tcherno Rachid (1), enquanto as pessoas graves da morança, sentadas em volta, ouvem as sábias palavras do Homem de Deus.
Esse Homem de Deus é um Fula, nascido na região, mas cujos antepassados remotos vieram, há talvez três mil anos, das margens do Nilo.
Mestre da Lei Corânica e filósofo, Tcherno Rachid ligou-se de amizade profunda com o tubabo - o branco - vai para quinze anos, quando este chegou à sua povoação e se lhe dirigiu em fula.
O tubabo é também um filósofo que veio procurar em África aquela paz de consciência que o mundo europeu lhe não podia dar.
Fora, noutros tempos, um crítico de Arte e um poeta, um paladino das ideias novas, e porque proclamara em concorrida assembleia de jovens que um automóvel lançado a cem quilómetros à hora era mais belo do que a Victória de Samotrácia, firmara seus créditos de «pensador profundo».
Se alguém perguntasse ao branco porque razão se encontrava ali, no coração de África, naquela noite de Natal, talvez obtivesse como resposta um simples encolher de ombros ou, talvez, ouvisse que o seu espírito necessitava daquelas palavras simples que consolam a alma dos justos e acendem uma luz no peito dos homens .
Tcherno Rachid acabara, nesse momento, de repetir as palavras do Profeta: «Nenhum homem é superior a outro senão pela sua piedade».
- Irmão, retorquiu o tubabo: então o crente não é superior ao infiel?
- São ambos filhos de Deus - respondeu o tcherno - e aos homens não compete julgar a obra do seu Criador.
Aquele que só ama os que pensam como ele, não ama os outros, antes se ama a si próprio. Só quem ama os que pensam diversamente, venera Deus, que é pai comum de todos.
Assim como tu podes adorar Deus em diversas línguas, assim podes entrar numa igreja, numa mesquita, ou numa sinagoga.
Quando vais pelo mato e admiras o grande porte de uma árvore, as penas vistosas de um pássaro, a força do elefante ou a destreza da gazela, tu murmuras uma oração que agrada a Deus, Criador de tudo o que existe, mais do que agradam as orações que só os lábios pronunciam e o coração não sente.
- Irmão tcherno, e aquele que não acredita em Deus, esse merece a tua estima ?
Rachid semi-cerrou os olhos, alongou a mão descarnada para a lua cheia, então nascente, e disse:
- Ouvirás a muitos que esse não merece o olhar dos homens: mas eu penso que o descrente merece mais o nosso amor do que o crente. É um companheiro de caminho que se perdeu. Devemos procurá-lo, ajudá-lo, e até levá-lo para nossa casa, a fim de repousar. É um filho de Deus como tu, como eu … como todos nós.
A lua, antes de ter em si tanta luz como a que tem hoje, esteve sete dias obscura, sem ser vista de ninguém, se não de Deus.
Ouve, irmão: quem julga que não crê em Deus, é porque acredita em si próprio e, crendo em si, já crê em Deus, porque o homem foi iluminado com o sopro Divino e é, assim, uma sua imagem.
A lua ia subindo nos céus, lenta, majestosa, iluminando a povoação e a floresta, os rios e os mares…
Os homens graves, de autoridade e conselho, aprovavam as palavras do tcherno, e o branco, oprimido pela ideia de que lá longe, a muitos milhares de quilómetros, reunidos em volta de uma mesa de consoada, seus avós, pais e irmãos, celebravam uma festa antiquíssima e lembravam, por certo, o «filho pródigo», deixou nascer uma lágrima que se avolumou e correu pela face tisnada pelo ardente sol dos trópicos.
Artur Augusto Silva, 1962
__________
Nota de L.G.
(1) Julgo ser o mesmo Cherno Rachid que eu vi, de relance, em Bambadinca, em 10 de Janeiro de 1970... Vd. post de 16 de Junho de 2005 > Guiné 69/71 - LVII: O Cherno Rachid, de Aldeia Formosa (aliás, Quebo)
© Virgínio Briote (2005)
Texto do Carlos Schwarz (mais conhecido por Pepito, na sua terra natal, a Guiné-Bissau)
Caro Luís,
Envio-te um conto de Natal, escrito por meu pai, Artur Augusto Silva que nasceu na Ilha da Brava, em Cabo Verde, e que foi advogado na Guiné-Bissau desde 1948, tendo defendido os presos políticos do PAIGC, em 61 julgamentos, um dos quais com 23 réus tendo tido apenas duas condenações.
Em 1966, a mando do governador Arnaldo Schultz, foi preso pela Pide, no aeroporto de Lisboa, quando vinha de férias tendo ficado cinco meses na prisão de Caxias. Quando foi libertado, proibiram-no de regressar à Guiné e fixaram-lhe residência em Lisboa.
Em 1976, quando me veio visitar a Bissau, o então Presidente Luís Cabral convidou-o a trabalhar como juiz do Supremo Tribunal de Justiça, tendo também leccionado Direito Consuetudinário na Escola de Direito de Bissau desde que ela foi criada e até a 1983, quando faleceu.
Trata-se de um conto de que gosto muito (nós, os 3 filhos, pensamos editar em Fevereiro de 2006 um livro com os contos dele)e por isso te envio como postal de Feliz Natal.
abraços
pepito
Comentário de L.G.: Obrigado, Pepito, é um gesto muito bonito e que nos sensibiliza a todos nós, tertulianos. O teu pai deve ter sido um grande homem, de coragem e de cultura. E este pequeno conto é de primeira água. Que descanse em paz o Dr. Artur Augusto Silva. E paz na Guiné-Bissau e no resto da terra aos homens e às mulheres de boa vontade!
________
Um conto de Natal
Noite luarenta de Dezembro …
Na povoação de Quebo, perdida no sertão da terra dos Fulas, o tubabo conversa com seu velho amigo, Tcherno Rachid (1), enquanto as pessoas graves da morança, sentadas em volta, ouvem as sábias palavras do Homem de Deus.
Esse Homem de Deus é um Fula, nascido na região, mas cujos antepassados remotos vieram, há talvez três mil anos, das margens do Nilo.
Mestre da Lei Corânica e filósofo, Tcherno Rachid ligou-se de amizade profunda com o tubabo - o branco - vai para quinze anos, quando este chegou à sua povoação e se lhe dirigiu em fula.
O tubabo é também um filósofo que veio procurar em África aquela paz de consciência que o mundo europeu lhe não podia dar.
Fora, noutros tempos, um crítico de Arte e um poeta, um paladino das ideias novas, e porque proclamara em concorrida assembleia de jovens que um automóvel lançado a cem quilómetros à hora era mais belo do que a Victória de Samotrácia, firmara seus créditos de «pensador profundo».
Se alguém perguntasse ao branco porque razão se encontrava ali, no coração de África, naquela noite de Natal, talvez obtivesse como resposta um simples encolher de ombros ou, talvez, ouvisse que o seu espírito necessitava daquelas palavras simples que consolam a alma dos justos e acendem uma luz no peito dos homens .
Tcherno Rachid acabara, nesse momento, de repetir as palavras do Profeta: «Nenhum homem é superior a outro senão pela sua piedade».
- Irmão, retorquiu o tubabo: então o crente não é superior ao infiel?
- São ambos filhos de Deus - respondeu o tcherno - e aos homens não compete julgar a obra do seu Criador.
Aquele que só ama os que pensam como ele, não ama os outros, antes se ama a si próprio. Só quem ama os que pensam diversamente, venera Deus, que é pai comum de todos.
Assim como tu podes adorar Deus em diversas línguas, assim podes entrar numa igreja, numa mesquita, ou numa sinagoga.
Quando vais pelo mato e admiras o grande porte de uma árvore, as penas vistosas de um pássaro, a força do elefante ou a destreza da gazela, tu murmuras uma oração que agrada a Deus, Criador de tudo o que existe, mais do que agradam as orações que só os lábios pronunciam e o coração não sente.
- Irmão tcherno, e aquele que não acredita em Deus, esse merece a tua estima ?
Rachid semi-cerrou os olhos, alongou a mão descarnada para a lua cheia, então nascente, e disse:
- Ouvirás a muitos que esse não merece o olhar dos homens: mas eu penso que o descrente merece mais o nosso amor do que o crente. É um companheiro de caminho que se perdeu. Devemos procurá-lo, ajudá-lo, e até levá-lo para nossa casa, a fim de repousar. É um filho de Deus como tu, como eu … como todos nós.
A lua, antes de ter em si tanta luz como a que tem hoje, esteve sete dias obscura, sem ser vista de ninguém, se não de Deus.
Ouve, irmão: quem julga que não crê em Deus, é porque acredita em si próprio e, crendo em si, já crê em Deus, porque o homem foi iluminado com o sopro Divino e é, assim, uma sua imagem.
A lua ia subindo nos céus, lenta, majestosa, iluminando a povoação e a floresta, os rios e os mares…
Os homens graves, de autoridade e conselho, aprovavam as palavras do tcherno, e o branco, oprimido pela ideia de que lá longe, a muitos milhares de quilómetros, reunidos em volta de uma mesa de consoada, seus avós, pais e irmãos, celebravam uma festa antiquíssima e lembravam, por certo, o «filho pródigo», deixou nascer uma lágrima que se avolumou e correu pela face tisnada pelo ardente sol dos trópicos.
Artur Augusto Silva, 1962
__________
Nota de L.G.
(1) Julgo ser o mesmo Cherno Rachid que eu vi, de relance, em Bambadinca, em 10 de Janeiro de 1970... Vd. post de 16 de Junho de 2005 > Guiné 69/71 - LVII: O Cherno Rachid, de Aldeia Formosa (aliás, Quebo)
Guiné 63/74 - CCCLXXVIII: Um conto de Natal (Artur Augusto Silva, 1962)
Guiné > Bissau > Brá > 1965 O General Schultz (à esquerda)
© Virgínio Briote (2005)
Texto do Carlos Schwarz (mais conhecido por Pepito, na sua terra natal, a Guiné-Bissau)
Caro Luís,
Envio-te um conto de Natal, escrito por meu pai, Artur Augusto Silva que nasceu na Ilha da Brava, em Cabo Verde, e que foi advogado na Guiné-Bissau desde 1948, tendo defendido os presos políticos do PAIGC, em 61 julgamentos, um dos quais com 23 réus tendo tido apenas duas condenações.
Em 1966, a mando do governador Arnaldo Schultz, foi preso pela Pide, no aeroporto de Lisboa, quando vinha de férias tendo ficado cinco meses na prisão de Caxias. Quando foi libertado, proibiram-no de regressar à Guiné e fixaram-lhe residência em Lisboa.
Em 1976, quando me veio visitar a Bissau, o então Presidente Luís Cabral convidou-o a trabalhar como juiz do Supremo Tribunal de Justiça, tendo também leccionado Direito Consuetudinário na Escola de Direito de Bissau desde que ela foi criada e até a 1983, quando faleceu.
Trata-se de um conto de que gosto muito (nós, os 3 filhos, pensamos editar em Fevereiro de 2006 um livro com os contos dele)e por isso te envio como postal de Feliz Natal.
abraços
pepito
Comentário de L.G.: Obrigado, Pepito, é um gesto muito bonito e que nos sensibiliza a todos nós, tertulianos. O teu pai deve ter sido um grande homem, de coragem e de cultura. E este pequeno conto é de primeira água. Que descanse em paz o Dr. Artur Augusto Silva. E paz na Guiné-Bissau e no resto da terra aos homens e às mulheres de boa vontade!
________
Um conto de Natal
Noite luarenta de Dezembro …
Na povoação de Quebo, perdida no sertão da terra dos Fulas, o tubabo conversa com seu velho amigo, Tcherno Rachid (1), enquanto as pessoas graves da morança, sentadas em volta, ouvem as sábias palavras do Homem de Deus.
Esse Homem de Deus é um Fula, nascido na região, mas cujos antepassados remotos vieram, há talvez três mil anos, das margens do Nilo.
Mestre da Lei Corânica e filósofo, Tcherno Rachid ligou-se de amizade profunda com o tubabo - o branco - vai para quinze anos, quando este chegou à sua povoação e se lhe dirigiu em fula.
O tubabo é também um filósofo que veio procurar em África aquela paz de consciência que o mundo europeu lhe não podia dar.
Fora, noutros tempos, um crítico de Arte e um poeta, um paladino das ideias novas, e porque proclamara em concorrida assembleia de jovens que um automóvel lançado a cem quilómetros à hora era mais belo do que a Victória de Samotrácia, firmara seus créditos de «pensador profundo».
Se alguém perguntasse ao branco porque razão se encontrava ali, no coração de África, naquela noite de Natal, talvez obtivesse como resposta um simples encolher de ombros ou, talvez, ouvisse que o seu espírito necessitava daquelas palavras simples que consolam a alma dos justos e acendem uma luz no peito dos homens .
Tcherno Rachid acabara, nesse momento, de repetir as palavras do Profeta: «Nenhum homem é superior a outro senão pela sua piedade».
- Irmão, retorquiu o tubabo: então o crente não é superior ao infiel?
- São ambos filhos de Deus - respondeu o tcherno - e aos homens não compete julgar a obra do seu Criador.
Aquele que só ama os que pensam como ele, não ama os outros, antes se ama a si próprio. Só quem ama os que pensam diversamente, venera Deus, que é pai comum de todos.
Assim como tu podes adorar Deus em diversas línguas, assim podes entrar numa igreja, numa mesquita, ou numa sinagoga.
Quando vais pelo mato e admiras o grande porte de uma árvore, as penas vistosas de um pássaro, a força do elefante ou a destreza da gazela, tu murmuras uma oração que agrada a Deus, Criador de tudo o que existe, mais do que agradam as orações que só os lábios pronunciam e o coração não sente.
- Irmão tcherno, e aquele que não acredita em Deus, esse merece a tua estima ?
Rachid semi-cerrou os olhos, alongou a mão descarnada para a lua cheia, então nascente, e disse:
- Ouvirás a muitos que esse não merece o olhar dos homens: mas eu penso que o descrente merece mais o nosso amor do que o crente. É um companheiro de caminho que se perdeu. Devemos procurá-lo, ajudá-lo, e até levá-lo para nossa casa, a fim de repousar. É um filho de Deus como tu, como eu … como todos nós.
A lua, antes de ter em si tanta luz como a que tem hoje, esteve sete dias obscura, sem ser vista de ninguém, se não de Deus.
Ouve, irmão: quem julga que não crê em Deus, é porque acredita em si próprio e, crendo em si, já crê em Deus, porque o homem foi iluminado com o sopro Divino e é, assim, uma sua imagem.
A lua ia subindo nos céus, lenta, majestosa, iluminando a povoação e a floresta, os rios e os mares…
Os homens graves, de autoridade e conselho, aprovavam as palavras do tcherno, e o branco, oprimido pela ideia de que lá longe, a muitos milhares de quilómetros, reunidos em volta de uma mesa de consoada, seus avós, pais e irmãos, celebravam uma festa antiquíssima e lembravam, por certo, o «filho pródigo», deixou nascer uma lágrima que se avolumou e correu pela face tisnada pelo ardente sol dos trópicos.
Artur Augusto Silva, 1962
__________
Nota de L.G.
(1) Julgo ser o mesmo Cherno Rachid que eu vi, de relance, em Bambadinca, em 10 de Janeiro de 1970... Vd. post de 16 de Junho de 2005 > Guiné 69/71 - LVII: O Cherno Rachid, de Aldeia Formosa (aliás, Quebo)
© Virgínio Briote (2005)
Texto do Carlos Schwarz (mais conhecido por Pepito, na sua terra natal, a Guiné-Bissau)
Caro Luís,
Envio-te um conto de Natal, escrito por meu pai, Artur Augusto Silva que nasceu na Ilha da Brava, em Cabo Verde, e que foi advogado na Guiné-Bissau desde 1948, tendo defendido os presos políticos do PAIGC, em 61 julgamentos, um dos quais com 23 réus tendo tido apenas duas condenações.
Em 1966, a mando do governador Arnaldo Schultz, foi preso pela Pide, no aeroporto de Lisboa, quando vinha de férias tendo ficado cinco meses na prisão de Caxias. Quando foi libertado, proibiram-no de regressar à Guiné e fixaram-lhe residência em Lisboa.
Em 1976, quando me veio visitar a Bissau, o então Presidente Luís Cabral convidou-o a trabalhar como juiz do Supremo Tribunal de Justiça, tendo também leccionado Direito Consuetudinário na Escola de Direito de Bissau desde que ela foi criada e até a 1983, quando faleceu.
Trata-se de um conto de que gosto muito (nós, os 3 filhos, pensamos editar em Fevereiro de 2006 um livro com os contos dele)e por isso te envio como postal de Feliz Natal.
abraços
pepito
Comentário de L.G.: Obrigado, Pepito, é um gesto muito bonito e que nos sensibiliza a todos nós, tertulianos. O teu pai deve ter sido um grande homem, de coragem e de cultura. E este pequeno conto é de primeira água. Que descanse em paz o Dr. Artur Augusto Silva. E paz na Guiné-Bissau e no resto da terra aos homens e às mulheres de boa vontade!
________
Um conto de Natal
Noite luarenta de Dezembro …
Na povoação de Quebo, perdida no sertão da terra dos Fulas, o tubabo conversa com seu velho amigo, Tcherno Rachid (1), enquanto as pessoas graves da morança, sentadas em volta, ouvem as sábias palavras do Homem de Deus.
Esse Homem de Deus é um Fula, nascido na região, mas cujos antepassados remotos vieram, há talvez três mil anos, das margens do Nilo.
Mestre da Lei Corânica e filósofo, Tcherno Rachid ligou-se de amizade profunda com o tubabo - o branco - vai para quinze anos, quando este chegou à sua povoação e se lhe dirigiu em fula.
O tubabo é também um filósofo que veio procurar em África aquela paz de consciência que o mundo europeu lhe não podia dar.
Fora, noutros tempos, um crítico de Arte e um poeta, um paladino das ideias novas, e porque proclamara em concorrida assembleia de jovens que um automóvel lançado a cem quilómetros à hora era mais belo do que a Victória de Samotrácia, firmara seus créditos de «pensador profundo».
Se alguém perguntasse ao branco porque razão se encontrava ali, no coração de África, naquela noite de Natal, talvez obtivesse como resposta um simples encolher de ombros ou, talvez, ouvisse que o seu espírito necessitava daquelas palavras simples que consolam a alma dos justos e acendem uma luz no peito dos homens .
Tcherno Rachid acabara, nesse momento, de repetir as palavras do Profeta: «Nenhum homem é superior a outro senão pela sua piedade».
- Irmão, retorquiu o tubabo: então o crente não é superior ao infiel?
- São ambos filhos de Deus - respondeu o tcherno - e aos homens não compete julgar a obra do seu Criador.
Aquele que só ama os que pensam como ele, não ama os outros, antes se ama a si próprio. Só quem ama os que pensam diversamente, venera Deus, que é pai comum de todos.
Assim como tu podes adorar Deus em diversas línguas, assim podes entrar numa igreja, numa mesquita, ou numa sinagoga.
Quando vais pelo mato e admiras o grande porte de uma árvore, as penas vistosas de um pássaro, a força do elefante ou a destreza da gazela, tu murmuras uma oração que agrada a Deus, Criador de tudo o que existe, mais do que agradam as orações que só os lábios pronunciam e o coração não sente.
- Irmão tcherno, e aquele que não acredita em Deus, esse merece a tua estima ?
Rachid semi-cerrou os olhos, alongou a mão descarnada para a lua cheia, então nascente, e disse:
- Ouvirás a muitos que esse não merece o olhar dos homens: mas eu penso que o descrente merece mais o nosso amor do que o crente. É um companheiro de caminho que se perdeu. Devemos procurá-lo, ajudá-lo, e até levá-lo para nossa casa, a fim de repousar. É um filho de Deus como tu, como eu … como todos nós.
A lua, antes de ter em si tanta luz como a que tem hoje, esteve sete dias obscura, sem ser vista de ninguém, se não de Deus.
Ouve, irmão: quem julga que não crê em Deus, é porque acredita em si próprio e, crendo em si, já crê em Deus, porque o homem foi iluminado com o sopro Divino e é, assim, uma sua imagem.
A lua ia subindo nos céus, lenta, majestosa, iluminando a povoação e a floresta, os rios e os mares…
Os homens graves, de autoridade e conselho, aprovavam as palavras do tcherno, e o branco, oprimido pela ideia de que lá longe, a muitos milhares de quilómetros, reunidos em volta de uma mesa de consoada, seus avós, pais e irmãos, celebravam uma festa antiquíssima e lembravam, por certo, o «filho pródigo», deixou nascer uma lágrima que se avolumou e correu pela face tisnada pelo ardente sol dos trópicos.
Artur Augusto Silva, 1962
__________
Nota de L.G.
(1) Julgo ser o mesmo Cherno Rachid que eu vi, de relance, em Bambadinca, em 10 de Janeiro de 1970... Vd. post de 16 de Junho de 2005 > Guiné 69/71 - LVII: O Cherno Rachid, de Aldeia Formosa (aliás, Quebo)
Guiné 63/74 - CCCLXXVI: Aquelas noites frias de Dezembro (2) (David Guimarães)
Guiné > Zona Leste > Xitole > 1970 >
Os belos penteados que se fazia no quartel para ver as mamas da bajuda e afinal tudo tudo isso era a Guiné, era o nosso dia a dia... Com boinas diferentes, uns como querendo ser melhor que outros e outros descansando ao esforço dos mais simples...
© David J. Guimarães (2005)
Texto do David Guimarães, ex-furriel miliciano de minas e armadilhas, da CART 2716, aquartelada no Xitole (1970/1972), e pertencente ao BART 2917, sediado em Bambadinca.
"Estórias que ajudam a fazer a História do nosso país, daquele país, daquele povo tão massacrado. Merecem melhor sorte".
1. Humberto, muito bem!... São mesmo estas histórias que ajudam a fazer outras histórias e relembrar os espaços de guerra que percorremos... E a guerra que tivemos... a surdez do massacre e a resistência dos heróis. Nãão daqueles que descreveram grande feitos mas daqueles que humildemente cumpriram o que lhes era ordenado e viveram os espaços que outros contaram e contam... "Como grandes operações"... Grandes feitos através de situações ligadas à ficção e em que se põem como actores principais.
Lembro o grande discurso feito por Sua Excelência, o Sr. General Spínola. Era assim... um discurso inflamado ao Batalhão [2917], em Brá... Lindo discurso patriótico em que falava das falsas elites da retaguarda... Lembro que de imediato se reuniu com todos os oficiais e sargentos e o seu discurso começou assim:
- Eu costumo punir... responsabilizando um a um até ao Furriel, porque se o cabo e o soldado eram maus a culpa era dele que não os tinha sabido instruir e/ou comandar...
Ele, afinal esqueceu-se de dizer uma coisa e hoje ainda lembro:
- Se esta merda está assim a culpa é minha porque como COM-CHEFE terei que saber conduzir este Comando Territorial.... Isso esqueceu-se ele. Morreu herói... e um grande homem... Bem melhor do que aqueles que lhe lamberam as botas. Mas não era dos piores, não, ele era intocável...
2. Tenho lido atentamente tudo - mesmo tudo o que se escreve nesta bela tertúlia. Hoje por acidente até já sonhei ... Curioso., sonhei com o tempo em que estávamos todos naquele barco, naquele charco quente de mosquitos, rãs que coaxavam a noite inteira, os serviços, os macacos e essa amálgama toda de coisas que se sucediam... Os tempos em que partíamos armados até aos dentes e lá íamos ... Guiné fora... E no meio daquela amálgama de coisas, carros novos da última grande Guerra e aviões T6 que parece que tinham custado 1 Dólar... As granadas que temos na cabeça e não temos os calibres - ai senhor do céu, tanta coisa!...
Mas é isto, a guerra era isto... e de repente um rebentamento, mais uma evacuação, ai e ali morreu fulano e beltrano e mais um batalhão que chegou - alto... Os belos penteados que se fazia no quartel para ver as mamas da bajuda e afinal tudo tudo isso era a Guiné, era o nosso dia a dia... Com boinas diferentes, uns como querendo ser melhor que outros e outros descansando ao esforço dos mais simples...
Mas a Cavalaria, essa sim - imperava, era a arma de Sua Excelência...
Um aparte e quem quiser que desminta. Ou não se acredite em mim... Em Bafatá no fim da comissão do nosso Batalhão, em 1972, perto de Maio, lá fazíamos nós guardas avançadas para que a cidade dormisse... Exactamente, Humberto, isso mesmo...
Guiné-Bissau > Zona Leste > Xitole 2001: Ó David J. Guimarães à entrada da Ponte Marechal Carmona , sobre o Rio Corubal, do lado da estrada que conduzia ao aquartelamento do Xitole, a 5 km. Trinta anos depois...
© David J. Guimarães (2005)
Depois de tanta guerra que já tínhamos tido, cabia-nos essa missão: guardar as costas dos senhores da guerra e dos negócios. Mas a peripécia é mais linda... Quantas vezes picámos a estrada por onde depois passariam as chaimites... Exactamente, não fosse aqueles carros se estragarem. E entre eles ou um humano, era mais um, menos um combatente. Que e salvasse o material, que só patrulhava as zonas alcatroadas...
3. Ai, Humberto, Luís e camaradas.! Mais coisas tenho em mente e guerras feitas às surdas - os tempos em que passávamos o dia inteiro a ver as colunas a passarem... Sim, aquelas que vinham para o Xitole e Saltinho e nós alí, lá para os lados da ponte de Jacarajá (1)... Esta ainda me lembro, nos limites da CART 2716 [Xitole] com a 2714, sediada em Mansambo... E quando se ouvia os primeiros ruídos das viaturas contávamos que em 4 horas elas passassem ao contrário para irmos para o aquartelamento ... Sim, uns 10 Km atrás... E quem sabe, talvez para ir ainda fazer um patrulhamento nocturno ou uma vigília nas tabancas...
Isto era a Guiné dos nossos tempos... da guerra.
Um abraço, David ou Guimarães.
__________
Nota de L.G.:
(1) Ou Jagarajá, camarada ? Vd. mapa do Xime. > Rio Jagarajá
Os belos penteados que se fazia no quartel para ver as mamas da bajuda e afinal tudo tudo isso era a Guiné, era o nosso dia a dia... Com boinas diferentes, uns como querendo ser melhor que outros e outros descansando ao esforço dos mais simples...
© David J. Guimarães (2005)
Texto do David Guimarães, ex-furriel miliciano de minas e armadilhas, da CART 2716, aquartelada no Xitole (1970/1972), e pertencente ao BART 2917, sediado em Bambadinca.
"Estórias que ajudam a fazer a História do nosso país, daquele país, daquele povo tão massacrado. Merecem melhor sorte".
1. Humberto, muito bem!... São mesmo estas histórias que ajudam a fazer outras histórias e relembrar os espaços de guerra que percorremos... E a guerra que tivemos... a surdez do massacre e a resistência dos heróis. Nãão daqueles que descreveram grande feitos mas daqueles que humildemente cumpriram o que lhes era ordenado e viveram os espaços que outros contaram e contam... "Como grandes operações"... Grandes feitos através de situações ligadas à ficção e em que se põem como actores principais.
Lembro o grande discurso feito por Sua Excelência, o Sr. General Spínola. Era assim... um discurso inflamado ao Batalhão [2917], em Brá... Lindo discurso patriótico em que falava das falsas elites da retaguarda... Lembro que de imediato se reuniu com todos os oficiais e sargentos e o seu discurso começou assim:
- Eu costumo punir... responsabilizando um a um até ao Furriel, porque se o cabo e o soldado eram maus a culpa era dele que não os tinha sabido instruir e/ou comandar...
Ele, afinal esqueceu-se de dizer uma coisa e hoje ainda lembro:
- Se esta merda está assim a culpa é minha porque como COM-CHEFE terei que saber conduzir este Comando Territorial.... Isso esqueceu-se ele. Morreu herói... e um grande homem... Bem melhor do que aqueles que lhe lamberam as botas. Mas não era dos piores, não, ele era intocável...
2. Tenho lido atentamente tudo - mesmo tudo o que se escreve nesta bela tertúlia. Hoje por acidente até já sonhei ... Curioso., sonhei com o tempo em que estávamos todos naquele barco, naquele charco quente de mosquitos, rãs que coaxavam a noite inteira, os serviços, os macacos e essa amálgama toda de coisas que se sucediam... Os tempos em que partíamos armados até aos dentes e lá íamos ... Guiné fora... E no meio daquela amálgama de coisas, carros novos da última grande Guerra e aviões T6 que parece que tinham custado 1 Dólar... As granadas que temos na cabeça e não temos os calibres - ai senhor do céu, tanta coisa!...
Mas é isto, a guerra era isto... e de repente um rebentamento, mais uma evacuação, ai e ali morreu fulano e beltrano e mais um batalhão que chegou - alto... Os belos penteados que se fazia no quartel para ver as mamas da bajuda e afinal tudo tudo isso era a Guiné, era o nosso dia a dia... Com boinas diferentes, uns como querendo ser melhor que outros e outros descansando ao esforço dos mais simples...
Mas a Cavalaria, essa sim - imperava, era a arma de Sua Excelência...
Um aparte e quem quiser que desminta. Ou não se acredite em mim... Em Bafatá no fim da comissão do nosso Batalhão, em 1972, perto de Maio, lá fazíamos nós guardas avançadas para que a cidade dormisse... Exactamente, Humberto, isso mesmo...
Guiné-Bissau > Zona Leste > Xitole 2001: Ó David J. Guimarães à entrada da Ponte Marechal Carmona , sobre o Rio Corubal, do lado da estrada que conduzia ao aquartelamento do Xitole, a 5 km. Trinta anos depois...
© David J. Guimarães (2005)
Depois de tanta guerra que já tínhamos tido, cabia-nos essa missão: guardar as costas dos senhores da guerra e dos negócios. Mas a peripécia é mais linda... Quantas vezes picámos a estrada por onde depois passariam as chaimites... Exactamente, não fosse aqueles carros se estragarem. E entre eles ou um humano, era mais um, menos um combatente. Que e salvasse o material, que só patrulhava as zonas alcatroadas...
3. Ai, Humberto, Luís e camaradas.! Mais coisas tenho em mente e guerras feitas às surdas - os tempos em que passávamos o dia inteiro a ver as colunas a passarem... Sim, aquelas que vinham para o Xitole e Saltinho e nós alí, lá para os lados da ponte de Jacarajá (1)... Esta ainda me lembro, nos limites da CART 2716 [Xitole] com a 2714, sediada em Mansambo... E quando se ouvia os primeiros ruídos das viaturas contávamos que em 4 horas elas passassem ao contrário para irmos para o aquartelamento ... Sim, uns 10 Km atrás... E quem sabe, talvez para ir ainda fazer um patrulhamento nocturno ou uma vigília nas tabancas...
Isto era a Guiné dos nossos tempos... da guerra.
Um abraço, David ou Guimarães.
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Nota de L.G.:
(1) Ou Jagarajá, camarada ? Vd. mapa do Xime. > Rio Jagarajá
Guiné 63/74 - CCCLXXVI: Aquelas noites frias de Dezembro (2) (David Guimarães)
Guiné > Zona Leste > Xitole > 1970 >
Os belos penteados que se fazia no quartel para ver as mamas da bajuda e afinal tudo tudo isso era a Guiné, era o nosso dia a dia... Com boinas diferentes, uns como querendo ser melhor que outros e outros descansando ao esforço dos mais simples...
© David J. Guimarães (2005)
Texto do David Guimarães, ex-furriel miliciano de minas e armadilhas, da CART 2716, aquartelada no Xitole (1970/1972), e pertencente ao BART 2917, sediado em Bambadinca.
"Estórias que ajudam a fazer a História do nosso país, daquele país, daquele povo tão massacrado. Merecem melhor sorte".
1. Humberto, muito bem!... São mesmo estas histórias que ajudam a fazer outras histórias e relembrar os espaços de guerra que percorremos... E a guerra que tivemos... a surdez do massacre e a resistência dos heróis. Nãão daqueles que descreveram grande feitos mas daqueles que humildemente cumpriram o que lhes era ordenado e viveram os espaços que outros contaram e contam... "Como grandes operações"... Grandes feitos através de situações ligadas à ficção e em que se põem como actores principais.
Lembro o grande discurso feito por Sua Excelência, o Sr. General Spínola. Era assim... um discurso inflamado ao Batalhão [2917], em Brá... Lindo discurso patriótico em que falava das falsas elites da retaguarda... Lembro que de imediato se reuniu com todos os oficiais e sargentos e o seu discurso começou assim:
- Eu costumo punir... responsabilizando um a um até ao Furriel, porque se o cabo e o soldado eram maus a culpa era dele que não os tinha sabido instruir e/ou comandar...
Ele, afinal esqueceu-se de dizer uma coisa e hoje ainda lembro:
- Se esta merda está assim a culpa é minha porque como COM-CHEFE terei que saber conduzir este Comando Territorial.... Isso esqueceu-se ele. Morreu herói... e um grande homem... Bem melhor do que aqueles que lhe lamberam as botas. Mas não era dos piores, não, ele era intocável...
2. Tenho lido atentamente tudo - mesmo tudo o que se escreve nesta bela tertúlia. Hoje por acidente até já sonhei ... Curioso., sonhei com o tempo em que estávamos todos naquele barco, naquele charco quente de mosquitos, rãs que coaxavam a noite inteira, os serviços, os macacos e essa amálgama toda de coisas que se sucediam... Os tempos em que partíamos armados até aos dentes e lá íamos ... Guiné fora... E no meio daquela amálgama de coisas, carros novos da última grande Guerra e aviões T6 que parece que tinham custado 1 Dólar... As granadas que temos na cabeça e não temos os calibres - ai senhor do céu, tanta coisa!...
Mas é isto, a guerra era isto... e de repente um rebentamento, mais uma evacuação, ai e ali morreu fulano e beltrano e mais um batalhão que chegou - alto... Os belos penteados que se fazia no quartel para ver as mamas da bajuda e afinal tudo tudo isso era a Guiné, era o nosso dia a dia... Com boinas diferentes, uns como querendo ser melhor que outros e outros descansando ao esforço dos mais simples...
Mas a Cavalaria, essa sim - imperava, era a arma de Sua Excelência...
Um aparte e quem quiser que desminta. Ou não se acredite em mim... Em Bafatá no fim da comissão do nosso Batalhão, em 1972, perto de Maio, lá fazíamos nós guardas avançadas para que a cidade dormisse... Exactamente, Humberto, isso mesmo...
Guiné-Bissau > Zona Leste > Xitole 2001: Ó David J. Guimarães à entrada da Ponte Marechal Carmona , sobre o Rio Corubal, do lado da estrada que conduzia ao aquartelamento do Xitole, a 5 km. Trinta anos depois...
© David J. Guimarães (2005)
Depois de tanta guerra que já tínhamos tido, cabia-nos essa missão: guardar as costas dos senhores da guerra e dos negócios. Mas a peripécia é mais linda... Quantas vezes picámos a estrada por onde depois passariam as chaimites... Exactamente, não fosse aqueles carros se estragarem. E entre eles ou um humano, era mais um, menos um combatente. Que e salvasse o material, que só patrulhava as zonas alcatroadas...
3. Ai, Humberto, Luís e camaradas.! Mais coisas tenho em mente e guerras feitas às surdas - os tempos em que passávamos o dia inteiro a ver as colunas a passarem... Sim, aquelas que vinham para o Xitole e Saltinho e nós alí, lá para os lados da ponte de Jacarajá (1)... Esta ainda me lembro, nos limites da CART 2716 [Xitole] com a 2714, sediada em Mansambo... E quando se ouvia os primeiros ruídos das viaturas contávamos que em 4 horas elas passassem ao contrário para irmos para o aquartelamento ... Sim, uns 10 Km atrás... E quem sabe, talvez para ir ainda fazer um patrulhamento nocturno ou uma vigília nas tabancas...
Isto era a Guiné dos nossos tempos... da guerra.
Um abraço, David ou Guimarães.
__________
Nota de L.G.:
(1) Ou Jagarajá, camarada ? Vd. mapa do Xime. > Rio Jagarajá
Os belos penteados que se fazia no quartel para ver as mamas da bajuda e afinal tudo tudo isso era a Guiné, era o nosso dia a dia... Com boinas diferentes, uns como querendo ser melhor que outros e outros descansando ao esforço dos mais simples...
© David J. Guimarães (2005)
Texto do David Guimarães, ex-furriel miliciano de minas e armadilhas, da CART 2716, aquartelada no Xitole (1970/1972), e pertencente ao BART 2917, sediado em Bambadinca.
"Estórias que ajudam a fazer a História do nosso país, daquele país, daquele povo tão massacrado. Merecem melhor sorte".
1. Humberto, muito bem!... São mesmo estas histórias que ajudam a fazer outras histórias e relembrar os espaços de guerra que percorremos... E a guerra que tivemos... a surdez do massacre e a resistência dos heróis. Nãão daqueles que descreveram grande feitos mas daqueles que humildemente cumpriram o que lhes era ordenado e viveram os espaços que outros contaram e contam... "Como grandes operações"... Grandes feitos através de situações ligadas à ficção e em que se põem como actores principais.
Lembro o grande discurso feito por Sua Excelência, o Sr. General Spínola. Era assim... um discurso inflamado ao Batalhão [2917], em Brá... Lindo discurso patriótico em que falava das falsas elites da retaguarda... Lembro que de imediato se reuniu com todos os oficiais e sargentos e o seu discurso começou assim:
- Eu costumo punir... responsabilizando um a um até ao Furriel, porque se o cabo e o soldado eram maus a culpa era dele que não os tinha sabido instruir e/ou comandar...
Ele, afinal esqueceu-se de dizer uma coisa e hoje ainda lembro:
- Se esta merda está assim a culpa é minha porque como COM-CHEFE terei que saber conduzir este Comando Territorial.... Isso esqueceu-se ele. Morreu herói... e um grande homem... Bem melhor do que aqueles que lhe lamberam as botas. Mas não era dos piores, não, ele era intocável...
2. Tenho lido atentamente tudo - mesmo tudo o que se escreve nesta bela tertúlia. Hoje por acidente até já sonhei ... Curioso., sonhei com o tempo em que estávamos todos naquele barco, naquele charco quente de mosquitos, rãs que coaxavam a noite inteira, os serviços, os macacos e essa amálgama toda de coisas que se sucediam... Os tempos em que partíamos armados até aos dentes e lá íamos ... Guiné fora... E no meio daquela amálgama de coisas, carros novos da última grande Guerra e aviões T6 que parece que tinham custado 1 Dólar... As granadas que temos na cabeça e não temos os calibres - ai senhor do céu, tanta coisa!...
Mas é isto, a guerra era isto... e de repente um rebentamento, mais uma evacuação, ai e ali morreu fulano e beltrano e mais um batalhão que chegou - alto... Os belos penteados que se fazia no quartel para ver as mamas da bajuda e afinal tudo tudo isso era a Guiné, era o nosso dia a dia... Com boinas diferentes, uns como querendo ser melhor que outros e outros descansando ao esforço dos mais simples...
Mas a Cavalaria, essa sim - imperava, era a arma de Sua Excelência...
Um aparte e quem quiser que desminta. Ou não se acredite em mim... Em Bafatá no fim da comissão do nosso Batalhão, em 1972, perto de Maio, lá fazíamos nós guardas avançadas para que a cidade dormisse... Exactamente, Humberto, isso mesmo...
Guiné-Bissau > Zona Leste > Xitole 2001: Ó David J. Guimarães à entrada da Ponte Marechal Carmona , sobre o Rio Corubal, do lado da estrada que conduzia ao aquartelamento do Xitole, a 5 km. Trinta anos depois...
© David J. Guimarães (2005)
Depois de tanta guerra que já tínhamos tido, cabia-nos essa missão: guardar as costas dos senhores da guerra e dos negócios. Mas a peripécia é mais linda... Quantas vezes picámos a estrada por onde depois passariam as chaimites... Exactamente, não fosse aqueles carros se estragarem. E entre eles ou um humano, era mais um, menos um combatente. Que e salvasse o material, que só patrulhava as zonas alcatroadas...
3. Ai, Humberto, Luís e camaradas.! Mais coisas tenho em mente e guerras feitas às surdas - os tempos em que passávamos o dia inteiro a ver as colunas a passarem... Sim, aquelas que vinham para o Xitole e Saltinho e nós alí, lá para os lados da ponte de Jacarajá (1)... Esta ainda me lembro, nos limites da CART 2716 [Xitole] com a 2714, sediada em Mansambo... E quando se ouvia os primeiros ruídos das viaturas contávamos que em 4 horas elas passassem ao contrário para irmos para o aquartelamento ... Sim, uns 10 Km atrás... E quem sabe, talvez para ir ainda fazer um patrulhamento nocturno ou uma vigília nas tabancas...
Isto era a Guiné dos nossos tempos... da guerra.
Um abraço, David ou Guimarães.
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Nota de L.G.:
(1) Ou Jagarajá, camarada ? Vd. mapa do Xime. > Rio Jagarajá
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