12 maio 2006

Guiné 63/74 - DCCXLIX: O fuzilamento do Abibo Jau e do Jamanca em Madina Colhido (J.C. Bussá Biai)



Guiné > Brá > 1966 > O Alf Mil Briote, à esquerda, ladeado de dois dos primeiros comandos africanos, o Jamanca e o Joaquim. Esta era a 1ª equipa do seu grupo de comandos. Em vésperas da Op Atraca. O Jamanca será mais tarde ofical da 1º Companhia de Comandos Africanos, participará na Op Mar Verde (invasão da Guiné-Conacri, em 22 de Novembro de 1970) e comandará, em 1973, a CCAÇ 21, da qual farão parte antigos graduados africanos da CCAÇ 12. A CCAÇ 12, provavelmente refrescada, foi colocada no Xime, de meados de 1973 até ao final da guerra, e dela fez parte o furriel miliciano António Duarte, membro da nossa tertúlia. A CCAÇ 21 ficou em Bambadinca como unidade de intervenção (LG)

Foto: © Virgínio Briote (2005)


Texto do nosso querido amigo José Carlos Mussá Biai (outrora, o nosso menino do Xime) (1):

Caro Luís:

Acabo de ler depoimentos muito impressionantes que me fizeram recuar a minha infância em Xime, que você e muitos outros tertulianos bem conhecem de outros tempos.

Aquilo que o António Duarte escreveu e que lhe foi transmitido por um estudante guineense no ISEG é pura verdade.

Eu (com os meus quase 11 anos) e muitos outros, em 1974, vimos os militares do PAIGC em dois camiões de fabrico russo, um deles completamente tapado de toldo. Passaram por Xime, de manhã, para Madina Cudjido (Colhido, como vocês dizem). Passados uns 30 minutos ouvimos muitos tiros. Só que por volta da hora do almoço ouvimos [dizer] que foram lá fuzilados 8 pessoas. E das pessoas que nós ouvimos que tinham sido fuzilados - não sei se corresponde a verdade ou não - um deles era o tal Abibo Jau (2) que esteve na CCAÇ 12 em Xime. A outra pessoa seria o Tenente Jamanca, da CCAÇ 21 que estava em Bambadinca.

Mas tudo isso não me espanta porque os meus irmãos e primos que cumpriram o serviço militar no exército português, em Farim e depois em Bissau e Bambanbadinca, também foram presos, mas felizmente não lhes aconteceu o pior.

Um abraço.

José Carlos Mussá Biai

____________

Nota de L.G.

(1) Vd posts anteriores do (ou relacionados com o) J.C. Mussá Biai:

10 de Maio de 2005 > Guiné 69/71 - XVI: No Xime também havia crianças felizes (2)

20 de Janeiro de 2006 > Guiné 63/74 - CDLXII: Estou emocionado (J.C. Mussá Biai)

20 de Fevereiro de 2006 > Guiné 63/74 - DLXXI: Sete mortos civis no ataque ao Xime (Dezembro de 1973)(J.C. Mussa Biai)

(2) Soldado Arvorado 82 107 469 Abibo Jau, 1ª secção, 1º Grupo de Combate, CCAÇ 12 (Bambadinca, 1969/71), Comandante: Alf Mil Op Especiais Francisco Magalhães Moreira...

O Abibo era o nosso bom gigante, um poço de energia... Era ele que transportava às costas os restos dos nossos mortos ou até os nossos feridos... Estou ainda vê-lo a levar um dos embrulhos macabros dos camaradas, tugas, da CART 2715 que foram massacrados na Op Abencerragem Candente. Quem sabe, talvez do malogrado Cunha, do meu amigo furriel Cunha... Vd post de 25 de Abril de 2005 > Guiné 69/71 - VII: Memórias do inferno do Xime (Novembro de 1970)...

Mas o Abibo também era o nosso torcionário: o trabalho sujo era para ele... Nós fomos embora da Guiné, repressámos a casa e dormimos, hoje, tranquilos (?), em camas com lençóis lavados... É certo que, pelo menos no nosso tempo, travámos alguns dos impulsos de morte do Abibo... Mas, que sei eu ? Ele interrogava os nossos prisioneiros (o Malan Mané, o Jomel Nanquitande, o Festa Na Lona...), e a essas cenas eu poupei-me, nunca assisti... Eu e todos (ou quase todos) nós, os milicianos, os gajos decentes da CCAÇ 12 e das outras unidades estacionadas em Bambadinca...

Imagino o pó que os gajos do PAIGC lhe tinham... O Abibo há muito que apodrece em Madina Colhido. Mas não podemos ignorar ou escamotear que o Abibo foi uma criatuar nosso, uma peça da nossa máquina de repressão... Hoje ele teria ficado livre da tropa: sofria de epilepsia e de elefantíase... Tinha ataques frequentes. Era preciso meia dúzia de homens possantes para o segurar. Um dia vi o diagnóstico da doença dele numa ficha médica, no nosso posto clínico. O seu mau génio e o seu corpo de gigante foram postos ao serviço do exército português. Nunca houve um cabrão de um miliciano (médico, alferes, furriel...) ou de um oficial do quadro do exército (civilizado) do meu país (civilizado) que dissesse: este homem é um doente, não pode ser soldado!... Eu sabia que algo estava errado no comportamento, bipolar, do Abibo Jau... Simplesmente, também eu me calei... Todos nós gostávamos do lado bom do Abibo, do bom gigante do Abibo...

José Carlos, que raio de notícia é que me trazes!... E, no entanto, não era nada que eu não temesse... Mas fizeste bem: é assim, falando - mesmo com o coração apertado - que a gente, tu e nós, o teu povo, os guineenses, os fulas, os mandingas e os demais povos da Guiné, vamos fazendo as contas com passado que nos atormenta, a todos, de uma maneira ou de outra... É assim que vamos exorcizando os nossos fantasmas, libertando-nos dos diabos da floresta...

Abibo, paz à tua alma e que a tua morte não tenha sido totalmente inútil, para que os meninos do Xime e de Madina Colhido, livres, possam hoje contar outras estórias, dos bons gigantes da floresta, expulsos os diabos que um dia os atormentaram...

Vd post de 9 de Agosto de 2006 > Guiné 63/74 - CXLVII: Malan Mané, guerrilheiro, vinte anos, mandinga

(...) "O intérprete é o Abibo Jau, o bom gigante epiléptico com o seu metro e noventa e tal de altura e os seus mais de 100 quilos de peso. Não sei quem lhe descobriu o seu talento para torcionário. Pertence ao 1º Gr Comb, do Alferes Moreira. É visível o medo que o Abibo inspira ao Malan Mané. Um fula e um mandinga, frente a frente. Velhos ajustes de contas com a memória colectiva de cada grupo vêm provavelmente ao de cima.

"Fulas e mandingas já foram os donos destas terras. Cada um, no seu tempo. Teixeira Pinto vingou os aristocráticos mandingas, ao subjugar os fulas. Em contrapartida, deixou a estes os papéis subalternos, mais sujos, do aparelho de repressão administrativo-militar. Os pobres dos fulas tornam-se os maus da fita, aos olhos dos outros povos da Guiné. Aqui, pelo menos na zona leste, os mandingas e os balantas têm um ódio de estimação aos fulas. Um ódio que é recíproco. O poder sempre soube dividir (e aterrorizar) para reinar" (...).

Guiné 63/74 - DCCXLIX: O fuzilamento do Abibo Jau e do Jamanca em Madina Colhido (J.C. Bussá Biai)



Guiné > Brá > 1966 > O Alf Mil Briote, à esquerda, ladeado de dois dos primeiros comandos africanos, o Jamanca e o Joaquim. Esta era a 1ª equipa do seu grupo de comandos. Em vésperas da Op Atraca. O Jamanca será mais tarde ofical da 1º Companhia de Comandos Africanos, participará na Op Mar Verde (invasão da Guiné-Conacri, em 22 de Novembro de 1970) e comandará, em 1973, a CCAÇ 21, da qual farão parte antigos graduados africanos da CCAÇ 12. A CCAÇ 12, provavelmente refrescada, foi colocada no Xime, de meados de 1973 até ao final da guerra, e dela fez parte o furriel miliciano António Duarte, membro da nossa tertúlia. A CCAÇ 21 ficou em Bambadinca como unidade de intervenção (LG)

Foto: © Virgínio Briote (2005)


Texto do nosso querido amigo José Carlos Mussá Biai (outrora, o nosso menino do Xime) (1):

Caro Luís:

Acabo de ler depoimentos muito impressionantes que me fizeram recuar a minha infância em Xime, que você e muitos outros tertulianos bem conhecem de outros tempos.

Aquilo que o António Duarte escreveu e que lhe foi transmitido por um estudante guineense no ISEG é pura verdade.

Eu (com os meus quase 11 anos) e muitos outros, em 1974, vimos os militares do PAIGC em dois camiões de fabrico russo, um deles completamente tapado de toldo. Passaram por Xime, de manhã, para Madina Cudjido (Colhido, como vocês dizem). Passados uns 30 minutos ouvimos muitos tiros. Só que por volta da hora do almoço ouvimos [dizer] que foram lá fuzilados 8 pessoas. E das pessoas que nós ouvimos que tinham sido fuzilados - não sei se corresponde a verdade ou não - um deles era o tal Abibo Jau (2) que esteve na CCAÇ 12 em Xime. A outra pessoa seria o Tenente Jamanca, da CCAÇ 21 que estava em Bambadinca.

Mas tudo isso não me espanta porque os meus irmãos e primos que cumpriram o serviço militar no exército português, em Farim e depois em Bissau e Bambanbadinca, também foram presos, mas felizmente não lhes aconteceu o pior.

Um abraço.

José Carlos Mussá Biai

____________

Nota de L.G.

(1) Vd posts anteriores do (ou relacionados com o) J.C. Mussá Biai:

10 de Maio de 2005 > Guiné 69/71 - XVI: No Xime também havia crianças felizes (2)

20 de Janeiro de 2006 > Guiné 63/74 - CDLXII: Estou emocionado (J.C. Mussá Biai)

20 de Fevereiro de 2006 > Guiné 63/74 - DLXXI: Sete mortos civis no ataque ao Xime (Dezembro de 1973)(J.C. Mussa Biai)

(2) Soldado Arvorado 82 107 469 Abibo Jau, 1ª secção, 1º Grupo de Combate, CCAÇ 12 (Bambadinca, 1969/71), Comandante: Alf Mil Op Especiais Francisco Magalhães Moreira...

O Abibo era o nosso bom gigante, um poço de energia... Era ele que transportava às costas os restos dos nossos mortos ou até os nossos feridos... Estou ainda vê-lo a levar um dos embrulhos macabros dos camaradas, tugas, da CART 2715 que foram massacrados na Op Abencerragem Candente. Quem sabe, talvez do malogrado Cunha, do meu amigo furriel Cunha... Vd post de 25 de Abril de 2005 > Guiné 69/71 - VII: Memórias do inferno do Xime (Novembro de 1970)...

Mas o Abibo também era o nosso torcionário: o trabalho sujo era para ele... Nós fomos embora da Guiné, repressámos a casa e dormimos, hoje, tranquilos (?), em camas com lençóis lavados... É certo que, pelo menos no nosso tempo, travámos alguns dos impulsos de morte do Abibo... Mas, que sei eu ? Ele interrogava os nossos prisioneiros (o Malan Mané, o Jomel Nanquitande, o Festa Na Lona...), e a essas cenas eu poupei-me, nunca assisti... Eu e todos (ou quase todos) nós, os milicianos, os gajos decentes da CCAÇ 12 e das outras unidades estacionadas em Bambadinca...

Imagino o pó que os gajos do PAIGC lhe tinham... O Abibo há muito que apodrece em Madina Colhido. Mas não podemos ignorar ou escamotear que o Abibo foi uma criatuar nosso, uma peça da nossa máquina de repressão... Hoje ele teria ficado livre da tropa: sofria de epilepsia e de elefantíase... Tinha ataques frequentes. Era preciso meia dúzia de homens possantes para o segurar. Um dia vi o diagnóstico da doença dele numa ficha médica, no nosso posto clínico. O seu mau génio e o seu corpo de gigante foram postos ao serviço do exército português. Nunca houve um cabrão de um miliciano (médico, alferes, furriel...) ou de um oficial do quadro do exército (civilizado) do meu país (civilizado) que dissesse: este homem é um doente, não pode ser soldado!... Eu sabia que algo estava errado no comportamento, bipolar, do Abibo Jau... Simplesmente, também eu me calei... Todos nós gostávamos do lado bom do Abibo, do bom gigante do Abibo...

José Carlos, que raio de notícia é que me trazes!... E, no entanto, não era nada que eu não temesse... Mas fizeste bem: é assim, falando - mesmo com o coração apertado - que a gente, tu e nós, o teu povo, os guineenses, os fulas, os mandingas e os demais povos da Guiné, vamos fazendo as contas com passado que nos atormenta, a todos, de uma maneira ou de outra... É assim que vamos exorcizando os nossos fantasmas, libertando-nos dos diabos da floresta...

Abibo, paz à tua alma e que a tua morte não tenha sido totalmente inútil, para que os meninos do Xime e de Madina Colhido, livres, possam hoje contar outras estórias, dos bons gigantes da floresta, expulsos os diabos que um dia os atormentaram...

Vd post de 9 de Agosto de 2006 > Guiné 63/74 - CXLVII: Malan Mané, guerrilheiro, vinte anos, mandinga

(...) "O intérprete é o Abibo Jau, o bom gigante epiléptico com o seu metro e noventa e tal de altura e os seus mais de 100 quilos de peso. Não sei quem lhe descobriu o seu talento para torcionário. Pertence ao 1º Gr Comb, do Alferes Moreira. É visível o medo que o Abibo inspira ao Malan Mané. Um fula e um mandinga, frente a frente. Velhos ajustes de contas com a memória colectiva de cada grupo vêm provavelmente ao de cima.

"Fulas e mandingas já foram os donos destas terras. Cada um, no seu tempo. Teixeira Pinto vingou os aristocráticos mandingas, ao subjugar os fulas. Em contrapartida, deixou a estes os papéis subalternos, mais sujos, do aparelho de repressão administrativo-militar. Os pobres dos fulas tornam-se os maus da fita, aos olhos dos outros povos da Guiné. Aqui, pelo menos na zona leste, os mandingas e os balantas têm um ódio de estimação aos fulas. Um ódio que é recíproco. O poder sempre soube dividir (e aterrorizar) para reinar" (...).

Guiné 63/74 - DCCXLVIII: Vítimas e carrascos, amos e servos, sacanas e traidores (João Tunes)


Guiné-Bissau > Região Leste > Secytr L1 > Bambadinca > Missirá : Pelotão de Caçadores Nativos nº 54, em 1970. Tugas e nharros eram pessoas, tem um rosto, tinham um nome...

"Na 1ª fila da direita para esquerda: do pessoal metropolitano, o primeiro é o furriel miliciano Mário Armas; o terceiro é o 1º cabo Capitão; na 2ª fila da direita para a esquerda: o primeiro é o soldado Amarante; o segundo é o soldado Bulo; o quinto é o furriel miliciano Inácio; o sexto é o 1º cabo Tomé; o nono é o soldado Samba; na 3ª fila da direita para a esquerda: do pessoal metropolitano, o primeiro é o furriel miliciano Sousa Pereira; o quinto é o alferes miliciano Correia (comandante de pelotão); o sétimo é o 1º cabo Monteiro; o oitavo, africano, é o soldado Pucha (era guerrilheiro do PAIGC, foi capturado e ficou no nosso exército)"

Foto e legenda do © Mário Armas de Sousa (2005)

Texto do João Tunes:
Caro Camarada e Amigo Luís,


Claro que aceito todos (repito: todos) os argumentos e sensibilidades que se exprimiram e venham a exprimir sobre o drama dos guineenses que, tendo lutado pelo lado colonial, no exército colonial, em que também eu servi, nós todos servimos, foram vítimas, no pós-guerra, de ajustes de contas entre guineenses. Mas, como não há almoços grátis, aceito todos os argumentos e sensibilidades esperando que as minhas tenham lugar na formatura (1).

Concordo com o argumento que assenta no raciocínio de que o exército colonial devia ter protegido, em plano de absoluta igualdade, todos os que o serviram. Da única forma que podia ter sido viável - trazê-los para a Sede do Império (extinto). Como, aliás, se fez relativamente aos pides. Até porque, falando de escumalha, não encontro medida para achar que um pide fosse melhor rês que um guineense que traiu o seu povo, lutando pelo lado do ocupante, o nosso lado, o lado pelo qual combatemos. Pois que um torturador e assassino impune, um homem que fez profissão da tortura e do desmando, também renega a sua pátria - a da humanidade, do direito e da civilização. Nisso, não o considero melhor que o guineense que lutou pelo Império e contra a Guiné.

Guiné > Zona Leste > Sector L1 (Bambadinca) > 1969 ou 1970 > Pessoal do 2º Grupo de Combate da CCAÇ 12 atravessando em coluna apeada a bolanha de Finete na margem direita do Rio Geba. No primeiro plano, para além de municiador da Metralhadora Ligeira HK 21, Mamadú Uri Colubali (salvo erro), vê-se o Furriel Miliciano Tony Levezinho, ao meio, ladeado pelo 1º Cabo Branco (à sua direita) e pelo 1º Cabo Alves (à sua esquerda) (LG).

Arquivo pessoal de Humberto Reis (ex-furriel miliciano de operações especiais, CCAÇ 12, Bambadinca, 1969/71).

© Humberto Reis (2006).


Devíamos ter trazido todas as nossas porcarias próprias dos ocupantes que fomos. Recolhendo o nosso lixo mais o lixo que ajudámos a criar, multiplicar e acumular. Se trouxemos de volta militares culpados (embora sem culpa formada) de crimes de guerra, mais outros culpados de invasão de países estrangeiros tentando executar em terra alheia golpes de estado, se trouxemos impunes violadores de bajudas, se trouxemos vaidades com os nossos roncos, se trouxemos essa persistente distinção entre NT e IN, se trouxemos um falar em que se mantém o termo turra para aqueles que combatemos e nos combateram, se até Spínola trouxemos e ainda o fizemos Presidente, se trouxemos a eterna incapacidade de entender que fizemos uma guerra que perdemos e em que cada um alguma coisa de si ali inutilmente perdeu (pelo menos, parte da sua juventude), se nunca apurámos se todos os peitos medalhados com cruzes de guerra e torres e espadas o foram por valentia cometida por homens leais na guerra ou se têm, á mistura, alguns peitos inchados de crime e de abusos, se trouxemos os pides e outros mais, se trouxemos essa forma atávica de olhar os guineenses de cima para baixo e ainda se ouve falar deles como sendo simpáticos bárbaros que sem nós não passam, devíamos ter trazido, e protegido, todos os que nos serviram (como nós servimos, acreditando ou não na bondade do projecto imperial). Porque as pessoas decentes não deixam lixo em casa alheia, trazem-no para depositar nos seus contentores caseiros, suportando-lhes o mau cheiro, inclusivé um que é super pestilento - o da traição ao seu povo.

Afinal e talvez, no essencial, estejamos todos de acordo. Pelo menos no repúdio quanto às execuções sumárias, esse macaquear de justiça dos vencedores guerreiros, iníqua, cruel e desumana, de que foram vítimas os traidores da Guiné e nossos companheiros de barricada colonial. Porque é uma vergonha que nos deve envergonhar. Nem menos. Pior, abandonando-os ao ajuste de contas, cometemos, nós outros - os coloniais, uma dupla sacanice - servimo-nos da sua traição de sacanas, depois deixámos os sacanas à mercê do destino pior que se reserva aos sacanas (morder o pó da vingança). Daí até se transformar um sacana, o melhor que seja entre os melhores sacanas, porque abandonado pelo amo a quem serviu em troca de pré e rancho, em herói ou patriota de pátria ocupante (o que é, como identidade, um anacronismo), além do silêncio conveniente com os nossos muitos milhares de sacanices e dadas em desconto para o rol inimputável das contingências da guerra, vai um passo, digamos, de grande (demasiado) tamanho, com alguma desfaçatez e uma mão bem cheia de hipocrisia insuflada de duplicidade moralista.

E, perante um tal eventual convite a salto, se para ele fosse convidado, que não foi nem é o caso, eu não me mexo, fico aqui a ler-vos com toda a atenção e consideração, concordante ou discordante, mas quieto, em sentido. A ver o batalhão passar. Mas sem dar um cêntimo para esse peditório.

Abraços para ti e para todos os estimados camaradas tertulianos.


João Tunes

Uma versão ligeiramente diferente deste texto foi publicada no Água Lisa (6)

___________

Nota de L.G.

(1) Sobre este tópico (directa ou indirectamente com ele relacionados), já foram publicados diversos posts no nosso blogue. Eis uma lista indicativa:


11 de Julho de 2005 > Guiné 69/71 - CIII: Comandos africanos: do Pilão a Conacri

9 de Agosto de 2005 > Guiné 63/74 - CXLVII: Malan Mané, guerrilheiro, vinte anos, mandinga

4 de Outubro de 2005 > Guiné 63/74 - CCXXIX: Guerra limpa, guerra suja (3)

21 de Novembro de 2005 > Guiné 63/74 - CCCIV: Eu estava lá, na entrega simbólica do território (Mansoa, 9 de Setembro de 1974)

3 de Dezembro de 2005 > Guiné 63/74 - CCCXXXI: O juramento dos guerrilheiros do PAIGC

8 de Fevereiro de 2006 > Guiné 63/74 - DVI: As (des)venturas de Seni Candé (Jorge Neto)

10 de Fevereiro de 2006 > Guiné 63/74 - DXVIII: A sanha revolucionária e os meus Jagudis (A. Marques Lopes)

10 de Fvereiro de 2006 > Guiné 63/74 - DXV: Uma dívida que Portugal nunca pagou aos seus soldados africanos (Mário Dias)

11 de Fevereiro de 2006 > Guiné 63/74 - DXXII: Os ajustes de contas do PAIGC: o caso do Candé de Quebo (Zé Teixeira)

15 de Fevereiro de 2006 > Guiné 63/74 - DXXXVI: Carta (aberta) ao Luís (Jorge Cabral)

4 de Março de 2006 > Guiné 63/74 - DCV: A última noite em Canjadude (CCAÇ 5) (João Carvalho)

6 de Março de 2006 > Guiné 63/74 - DCIX: Salazar Saliú Queta, degolado pelos homens do PAIGC em Canjadude (José Martins)

11 de Abril de 2006 > Guiné 63/74 - DCXCIV: Panfleto de propaganda, em crioulo, do PAIGC: Irmãos...(1970)

4 de Maio de 2006 > Guiné 63/74 - DCCXXXII: Onde é que vocês estavam em 22 de Novembro de 1970 ? (João Tunes)

6 de Maio de 2006 > Guiné 63/74 - DCCXXX: Ex-comandos africanos, 'órfãos de Pátria', reportagem na RTP 1 (José Martins)

9 de Maio de 2006 > Guiné 63/74 - DCCXXXVI: A RTP1 e os 'Órfãos de Pátria': a montanha pariu um rato (José Martins)

10 de Maio de 2006 > Guiné 63/74 - DCCXLII: O poilão dos fuzilamentos em Bambadinca (David Guimarães)

Guiné 63/74 - DCCXLVIII: Vítimas e carrascos, amos e servos, sacanas e traidores (João Tunes)


Guiné-Bissau > Região Leste > Secytr L1 > Bambadinca > Missirá : Pelotão de Caçadores Nativos nº 54, em 1970. Tugas e nharros eram pessoas, tem um rosto, tinham um nome...

"Na 1ª fila da direita para esquerda: do pessoal metropolitano, o primeiro é o furriel miliciano Mário Armas; o terceiro é o 1º cabo Capitão; na 2ª fila da direita para a esquerda: o primeiro é o soldado Amarante; o segundo é o soldado Bulo; o quinto é o furriel miliciano Inácio; o sexto é o 1º cabo Tomé; o nono é o soldado Samba; na 3ª fila da direita para a esquerda: do pessoal metropolitano, o primeiro é o furriel miliciano Sousa Pereira; o quinto é o alferes miliciano Correia (comandante de pelotão); o sétimo é o 1º cabo Monteiro; o oitavo, africano, é o soldado Pucha (era guerrilheiro do PAIGC, foi capturado e ficou no nosso exército)"

Foto e legenda do © Mário Armas de Sousa (2005)

Texto do João Tunes:
Caro Camarada e Amigo Luís,


Claro que aceito todos (repito: todos) os argumentos e sensibilidades que se exprimiram e venham a exprimir sobre o drama dos guineenses que, tendo lutado pelo lado colonial, no exército colonial, em que também eu servi, nós todos servimos, foram vítimas, no pós-guerra, de ajustes de contas entre guineenses. Mas, como não há almoços grátis, aceito todos os argumentos e sensibilidades esperando que as minhas tenham lugar na formatura (1).

Concordo com o argumento que assenta no raciocínio de que o exército colonial devia ter protegido, em plano de absoluta igualdade, todos os que o serviram. Da única forma que podia ter sido viável - trazê-los para a Sede do Império (extinto). Como, aliás, se fez relativamente aos pides. Até porque, falando de escumalha, não encontro medida para achar que um pide fosse melhor rês que um guineense que traiu o seu povo, lutando pelo lado do ocupante, o nosso lado, o lado pelo qual combatemos. Pois que um torturador e assassino impune, um homem que fez profissão da tortura e do desmando, também renega a sua pátria - a da humanidade, do direito e da civilização. Nisso, não o considero melhor que o guineense que lutou pelo Império e contra a Guiné.

Guiné > Zona Leste > Sector L1 (Bambadinca) > 1969 ou 1970 > Pessoal do 2º Grupo de Combate da CCAÇ 12 atravessando em coluna apeada a bolanha de Finete na margem direita do Rio Geba. No primeiro plano, para além de municiador da Metralhadora Ligeira HK 21, Mamadú Uri Colubali (salvo erro), vê-se o Furriel Miliciano Tony Levezinho, ao meio, ladeado pelo 1º Cabo Branco (à sua direita) e pelo 1º Cabo Alves (à sua esquerda) (LG).

Arquivo pessoal de Humberto Reis (ex-furriel miliciano de operações especiais, CCAÇ 12, Bambadinca, 1969/71).

© Humberto Reis (2006).


Devíamos ter trazido todas as nossas porcarias próprias dos ocupantes que fomos. Recolhendo o nosso lixo mais o lixo que ajudámos a criar, multiplicar e acumular. Se trouxemos de volta militares culpados (embora sem culpa formada) de crimes de guerra, mais outros culpados de invasão de países estrangeiros tentando executar em terra alheia golpes de estado, se trouxemos impunes violadores de bajudas, se trouxemos vaidades com os nossos roncos, se trouxemos essa persistente distinção entre NT e IN, se trouxemos um falar em que se mantém o termo turra para aqueles que combatemos e nos combateram, se até Spínola trouxemos e ainda o fizemos Presidente, se trouxemos a eterna incapacidade de entender que fizemos uma guerra que perdemos e em que cada um alguma coisa de si ali inutilmente perdeu (pelo menos, parte da sua juventude), se nunca apurámos se todos os peitos medalhados com cruzes de guerra e torres e espadas o foram por valentia cometida por homens leais na guerra ou se têm, á mistura, alguns peitos inchados de crime e de abusos, se trouxemos os pides e outros mais, se trouxemos essa forma atávica de olhar os guineenses de cima para baixo e ainda se ouve falar deles como sendo simpáticos bárbaros que sem nós não passam, devíamos ter trazido, e protegido, todos os que nos serviram (como nós servimos, acreditando ou não na bondade do projecto imperial). Porque as pessoas decentes não deixam lixo em casa alheia, trazem-no para depositar nos seus contentores caseiros, suportando-lhes o mau cheiro, inclusivé um que é super pestilento - o da traição ao seu povo.

Afinal e talvez, no essencial, estejamos todos de acordo. Pelo menos no repúdio quanto às execuções sumárias, esse macaquear de justiça dos vencedores guerreiros, iníqua, cruel e desumana, de que foram vítimas os traidores da Guiné e nossos companheiros de barricada colonial. Porque é uma vergonha que nos deve envergonhar. Nem menos. Pior, abandonando-os ao ajuste de contas, cometemos, nós outros - os coloniais, uma dupla sacanice - servimo-nos da sua traição de sacanas, depois deixámos os sacanas à mercê do destino pior que se reserva aos sacanas (morder o pó da vingança). Daí até se transformar um sacana, o melhor que seja entre os melhores sacanas, porque abandonado pelo amo a quem serviu em troca de pré e rancho, em herói ou patriota de pátria ocupante (o que é, como identidade, um anacronismo), além do silêncio conveniente com os nossos muitos milhares de sacanices e dadas em desconto para o rol inimputável das contingências da guerra, vai um passo, digamos, de grande (demasiado) tamanho, com alguma desfaçatez e uma mão bem cheia de hipocrisia insuflada de duplicidade moralista.

E, perante um tal eventual convite a salto, se para ele fosse convidado, que não foi nem é o caso, eu não me mexo, fico aqui a ler-vos com toda a atenção e consideração, concordante ou discordante, mas quieto, em sentido. A ver o batalhão passar. Mas sem dar um cêntimo para esse peditório.

Abraços para ti e para todos os estimados camaradas tertulianos.


João Tunes

Uma versão ligeiramente diferente deste texto foi publicada no Água Lisa (6)

___________

Nota de L.G.

(1) Sobre este tópico (directa ou indirectamente com ele relacionados), já foram publicados diversos posts no nosso blogue. Eis uma lista indicativa:


11 de Julho de 2005 > Guiné 69/71 - CIII: Comandos africanos: do Pilão a Conacri

9 de Agosto de 2005 > Guiné 63/74 - CXLVII: Malan Mané, guerrilheiro, vinte anos, mandinga

4 de Outubro de 2005 > Guiné 63/74 - CCXXIX: Guerra limpa, guerra suja (3)

21 de Novembro de 2005 > Guiné 63/74 - CCCIV: Eu estava lá, na entrega simbólica do território (Mansoa, 9 de Setembro de 1974)

3 de Dezembro de 2005 > Guiné 63/74 - CCCXXXI: O juramento dos guerrilheiros do PAIGC

8 de Fevereiro de 2006 > Guiné 63/74 - DVI: As (des)venturas de Seni Candé (Jorge Neto)

10 de Fevereiro de 2006 > Guiné 63/74 - DXVIII: A sanha revolucionária e os meus Jagudis (A. Marques Lopes)

10 de Fvereiro de 2006 > Guiné 63/74 - DXV: Uma dívida que Portugal nunca pagou aos seus soldados africanos (Mário Dias)

11 de Fevereiro de 2006 > Guiné 63/74 - DXXII: Os ajustes de contas do PAIGC: o caso do Candé de Quebo (Zé Teixeira)

15 de Fevereiro de 2006 > Guiné 63/74 - DXXXVI: Carta (aberta) ao Luís (Jorge Cabral)

4 de Março de 2006 > Guiné 63/74 - DCV: A última noite em Canjadude (CCAÇ 5) (João Carvalho)

6 de Março de 2006 > Guiné 63/74 - DCIX: Salazar Saliú Queta, degolado pelos homens do PAIGC em Canjadude (José Martins)

11 de Abril de 2006 > Guiné 63/74 - DCXCIV: Panfleto de propaganda, em crioulo, do PAIGC: Irmãos...(1970)

4 de Maio de 2006 > Guiné 63/74 - DCCXXXII: Onde é que vocês estavam em 22 de Novembro de 1970 ? (João Tunes)

6 de Maio de 2006 > Guiné 63/74 - DCCXXX: Ex-comandos africanos, 'órfãos de Pátria', reportagem na RTP 1 (José Martins)

9 de Maio de 2006 > Guiné 63/74 - DCCXXXVI: A RTP1 e os 'Órfãos de Pátria': a montanha pariu um rato (José Martins)

10 de Maio de 2006 > Guiné 63/74 - DCCXLII: O poilão dos fuzilamentos em Bambadinca (David Guimarães)

Guiné 63/74 - DCCXLVII: Metade da CCAÇ 6 (Bedanda) foi fuzilada (Hugo Moura Ferreira)

Caros amigos:

Tudo o que ambos [Anbtónio Duarte e Luís Graça] afirmam é a verdade, pura e crua!

Eu também tenho conhecimento através de quem por lá esteve, como cooperante militar, já depois do 25 Abril, com instruções para que usasse da postura dos três macacos (não ver, não ouvir e não falar), que o mesmo aconteceu a metade dos nossos homens guineenses, não só graduados, da CCAÇ 6, de Bedanda. Alguns deles eram meus Amigos. Poderia aqui mencionar uma data deles, mas talvez um dia se faça justiça e os seus nomes venham a integrar a triste lista que se encontra gravada no Monumento do Forte do Bom Sucesso.

E, se querem confirmação, é só ouvirem os relatos do Seni Candé, que pertencia ao pelotão de Milícias destacado naquela Companhia, inseridos nos posts do Jorge Neto no seu Africanidades e nomeadamente em 8.2.06 e 25.1.06, sob os títulos SENI CANDÉ - ILUDIDO PELO DESTINO e O CANTO DOS DARIS DO SUL, respectivamente, em parte reproduzidas no nosso blogue (1).

Este-, e se calhar outros, não foi ele visitar e ouvir, pois que ele vive tão longe, no Cantanhez, a seis horas de caminho de Bissau. Desculpem esta ironia, mas não me resta outro sentimento depois de ter andado ansioso por ver o que a RTP tinha para nos mostrar e depois... depois... depois... Sim, depois NADA ou quase nada.

É a tal coisa, ninguém tem a coragem. Será que só no tempo da guerra é que ela existia? É o mesmo que se está a passar com a célebre Lei 9. Não há coragem!!!

Desculpem o estado de espírito.

Um abraço para todos.

Hugo Moura Ferreira

Ex-Alf Mil Inf (1966/1968)
CCAÇ 1621 e CCAÇ 6

_______

Nota de L.G.

(1)Vd post de 8 de Fevereiro de 2006 > Guiné 63/74 - DVI: As (des)venturas de Seni Candé (Jorge Neto)

Guiné 63/74 - DCCXLVII: Metade da CCAÇ 6 (Bedanda) foi fuzilada (Hugo Moura Ferreira)

Caros amigos:

Tudo o que ambos [Anbtónio Duarte e Luís Graça] afirmam é a verdade, pura e crua!

Eu também tenho conhecimento através de quem por lá esteve, como cooperante militar, já depois do 25 Abril, com instruções para que usasse da postura dos três macacos (não ver, não ouvir e não falar), que o mesmo aconteceu a metade dos nossos homens guineenses, não só graduados, da CCAÇ 6, de Bedanda. Alguns deles eram meus Amigos. Poderia aqui mencionar uma data deles, mas talvez um dia se faça justiça e os seus nomes venham a integrar a triste lista que se encontra gravada no Monumento do Forte do Bom Sucesso.

E, se querem confirmação, é só ouvirem os relatos do Seni Candé, que pertencia ao pelotão de Milícias destacado naquela Companhia, inseridos nos posts do Jorge Neto no seu Africanidades e nomeadamente em 8.2.06 e 25.1.06, sob os títulos SENI CANDÉ - ILUDIDO PELO DESTINO e O CANTO DOS DARIS DO SUL, respectivamente, em parte reproduzidas no nosso blogue (1).

Este-, e se calhar outros, não foi ele visitar e ouvir, pois que ele vive tão longe, no Cantanhez, a seis horas de caminho de Bissau. Desculpem esta ironia, mas não me resta outro sentimento depois de ter andado ansioso por ver o que a RTP tinha para nos mostrar e depois... depois... depois... Sim, depois NADA ou quase nada.

É a tal coisa, ninguém tem a coragem. Será que só no tempo da guerra é que ela existia? É o mesmo que se está a passar com a célebre Lei 9. Não há coragem!!!

Desculpem o estado de espírito.

Um abraço para todos.

Hugo Moura Ferreira

Ex-Alf Mil Inf (1966/1968)
CCAÇ 1621 e CCAÇ 6

_______

Nota de L.G.

(1)Vd post de 8 de Fevereiro de 2006 > Guiné 63/74 - DVI: As (des)venturas de Seni Candé (Jorge Neto)

Guiné 63/74 - DCCXLVI: Procissão em Canjadude ou devoção mariana em tempo de guerra (José Martins)


Texto e fotos do

© José Martins (2006)


Caros camaradas

Com o aproximar das celebrações Marianas, envio um texto, de REFREGA (livro meu de memórias, não publicado) que relembra uma procissão em Canjadude (1) em 1969, ou seja, há 37 anos.

Um Abraço

José Martins
_________________


PROCISSÃO EM CANJADUDE


Todas as unidades a nível de batalhão ou escalão superior incluíam no seu quadro de pessoal um sacerdote católico romano que, depois de uma breve instrução militar na Academia Militar e graduado no posto de Alferes, acompanhava as unidades combatentes para África, para as apoiar moral e religiosamente durante a sua comissão de serviço (2).

Na zona onde se encontrava a minha companhia, Nova Lamego, o capelão do batalhão ali estacionado e que dirigia a actividade daquele sector, era o padre Libório, natural dos Açores, que, na sua missão de visitas de rotina a todos os destacamentos da área do Batalhão, se encontrava a passar uns tempos em Canjadude.

Na manhã de 12 de Maio de 1969, logo ao pequeno almoço, confidenciou que gostaria de fazer uma cerimónia especial nesse dia, já que se celebrava o 51º aniversário da primeira aparição, em Fátima, de Nossa Senhora aos pastorinhos.

Não seria necessário repetir. Com a amizade e respeito que todos nutriam por ele e, ainda na sua qualidade de hóspede, os seus desejos eram ordens para qualquer um dos militares, independentemente do posto e mesmo posicionamento perante a religião. O que se iria realizar, e cujos planos e preparativos ali mesmo começaram a ser traçados, iria exceder a expectativa, não só do capelão, mas de todos os que assistiram.




Um pequeno barril de vinho foi serrado ao meio para, com a ajuda de duas varas, servir de base ao andor. Esta base foi revestida de verduras, já que não havia flores para ornamentar o andor. Para servir de base à imagem, e para a fazer sobressair sobre o rebordo da meia pipa, foi colocada uma pilha de um emissor/receptor AN-PRC/10 que com as medidas de 25x25x6 centímetros, mais ou menos, e que também serviu para alimentar um pequeno projector com que a imagem foi iluminada.

Este projector eram restos de um bombardeiro T-6 que se tinha despenhado numa zona próxima do destacamento e que a companhia tinha ajudado os mecânicos da Força Aérea a retirar do local e que por ali ficou, com outros destroços irrecuperáveis.



Se nos outros dias se notava uma necessidade louca que o tempo voasse para riscar mais um dia do calendário, aquele dia parecia que nunca mais passava. Notava-se alguma agitação em todos os rostos.

Ao jantar, e ainda que o dia ainda fosse bastante claro, já os militares se apresentavam com fardas lavadas, antecipando o momento de se incorporarem na procissão.

Quando a noite caiu, o padre Libório paramentou-se e deu início à cerimónia. Depois de uma breve alocução que serviu não só como preparação para os católicos, mas fundamentalmente como explicação para os muçulmanos que estivessem presentes, deu início à procissão.

Na frente, a abrir, seguiam as flâmulas dos pelotões da companhia. Seguiam-se os fiéis, com as suas velas acesas, o andor iluminado de Nossa Senhora, logo seguido do sacerdote que ia dirigindo as orações e cânticos.

A procissão saiu do edifício onde estava instalado o Comando e outros serviços, e iria percorrer uma área interna do destacamento, onde não houvesse o perigo de queda na rede de valas que ligavam os vários abrigos.

Calmamente e sem que tal estivesse previsto, os elementos que abriam o cortejo digiram-se para o cavalo de frisa que separava a parte militar da parte civil, entrando na tabanca pelo caminho que a atravessava.

Rezando e cantando, a procissão percorreu o caminho que levava à porta sul, tantas vezes percorrido pelas patrulhas quando se dirigiam para efectuarem operações para aqueles lados. Chegando ao fim do caminho, circundou uma árvore enorme, à sombra da qual se davam reuniam os homens grandes, regressando pelo mesmo caminho até ao aquartelamento.

Se no percurso de ida o caminho estava ladeado pela população que tinha acorrido, não só atraído pelas ladainhas e cânticos, mas também pelo cortejo de luz que as velas proporcionavam, no regresso pouca gente se via. Poucas pessoas estavam a ladear o caminho.

Feitas as orações finais e quando o padre Libório se voltou para os militares para proferir a despedida, ficou surpreso, direi mesmo espantado. Na sua frente estavam quase todos os habitantes civis que, tendo à frente os seus sacerdotes, com os seus terços, rezando a Alá, se foram integrando no cortejo, fazendo daquela procissão, um acto ecuménico espontâneo.

Terminada a cerimónia, os homens grandes dirigiram-se ao padre e ao comandante para partir mantanha (cumprimentar), dizendo que tinha sido um grande ronco (festa).

Quando todos começaram a dispersar, a foco de luz que iluminava a imagem da Santa apagou-se subitamente, como que a lembrar-nos que naquele local, em pleno mato africano, a par da devoção, que tínhamos acabado de demonstrar, havia a obrigação, ou seja, teríamos que voltar a vestir a pele de soldados e regressar às nossas tarefas.

José Martins

Ex-Furriel Miliciano de Transmissões

CCAÇ 5, Canjadude (1968/70)

26 de Agosto de 2002

____________

Notas de L.G.

(1) Canjadude: ficava entre Nova Lamego (Gabu Sara) e Cheche, no Rio Corubal.

(2) A experiência de capelania nem sempre correu bem, do ponto de vista do Exéricto e da Igreja Católica...

Já aqui citámos dois casos de capelões, expulsos do exército:

(i) O Padre Poím (Bambadinca, BART 2917, 1970/72)

(ii) e o Padre Mário (mais tarde conhecido como Padre Mário da Xira) (Mansoa, BCAÇ 1912, 1967/1968): vd post de 27 de Junho de 2005 > Guiné 60/71 - LXXXV: Antologia (5): Capelão Militar em Mansoa (Padre Mário da Lixa)

Guiné 63/74 - DCCXLVI: Procissão em Canjadude ou devoção mariana em tempo de guerra (José Martins)


Texto e fotos do

© José Martins (2006)


Caros camaradas

Com o aproximar das celebrações Marianas, envio um texto, de REFREGA (livro meu de memórias, não publicado) que relembra uma procissão em Canjadude (1) em 1969, ou seja, há 37 anos.

Um Abraço

José Martins
_________________


PROCISSÃO EM CANJADUDE


Todas as unidades a nível de batalhão ou escalão superior incluíam no seu quadro de pessoal um sacerdote católico romano que, depois de uma breve instrução militar na Academia Militar e graduado no posto de Alferes, acompanhava as unidades combatentes para África, para as apoiar moral e religiosamente durante a sua comissão de serviço (2).

Na zona onde se encontrava a minha companhia, Nova Lamego, o capelão do batalhão ali estacionado e que dirigia a actividade daquele sector, era o padre Libório, natural dos Açores, que, na sua missão de visitas de rotina a todos os destacamentos da área do Batalhão, se encontrava a passar uns tempos em Canjadude.

Na manhã de 12 de Maio de 1969, logo ao pequeno almoço, confidenciou que gostaria de fazer uma cerimónia especial nesse dia, já que se celebrava o 51º aniversário da primeira aparição, em Fátima, de Nossa Senhora aos pastorinhos.

Não seria necessário repetir. Com a amizade e respeito que todos nutriam por ele e, ainda na sua qualidade de hóspede, os seus desejos eram ordens para qualquer um dos militares, independentemente do posto e mesmo posicionamento perante a religião. O que se iria realizar, e cujos planos e preparativos ali mesmo começaram a ser traçados, iria exceder a expectativa, não só do capelão, mas de todos os que assistiram.




Um pequeno barril de vinho foi serrado ao meio para, com a ajuda de duas varas, servir de base ao andor. Esta base foi revestida de verduras, já que não havia flores para ornamentar o andor. Para servir de base à imagem, e para a fazer sobressair sobre o rebordo da meia pipa, foi colocada uma pilha de um emissor/receptor AN-PRC/10 que com as medidas de 25x25x6 centímetros, mais ou menos, e que também serviu para alimentar um pequeno projector com que a imagem foi iluminada.

Este projector eram restos de um bombardeiro T-6 que se tinha despenhado numa zona próxima do destacamento e que a companhia tinha ajudado os mecânicos da Força Aérea a retirar do local e que por ali ficou, com outros destroços irrecuperáveis.



Se nos outros dias se notava uma necessidade louca que o tempo voasse para riscar mais um dia do calendário, aquele dia parecia que nunca mais passava. Notava-se alguma agitação em todos os rostos.

Ao jantar, e ainda que o dia ainda fosse bastante claro, já os militares se apresentavam com fardas lavadas, antecipando o momento de se incorporarem na procissão.

Quando a noite caiu, o padre Libório paramentou-se e deu início à cerimónia. Depois de uma breve alocução que serviu não só como preparação para os católicos, mas fundamentalmente como explicação para os muçulmanos que estivessem presentes, deu início à procissão.

Na frente, a abrir, seguiam as flâmulas dos pelotões da companhia. Seguiam-se os fiéis, com as suas velas acesas, o andor iluminado de Nossa Senhora, logo seguido do sacerdote que ia dirigindo as orações e cânticos.

A procissão saiu do edifício onde estava instalado o Comando e outros serviços, e iria percorrer uma área interna do destacamento, onde não houvesse o perigo de queda na rede de valas que ligavam os vários abrigos.

Calmamente e sem que tal estivesse previsto, os elementos que abriam o cortejo digiram-se para o cavalo de frisa que separava a parte militar da parte civil, entrando na tabanca pelo caminho que a atravessava.

Rezando e cantando, a procissão percorreu o caminho que levava à porta sul, tantas vezes percorrido pelas patrulhas quando se dirigiam para efectuarem operações para aqueles lados. Chegando ao fim do caminho, circundou uma árvore enorme, à sombra da qual se davam reuniam os homens grandes, regressando pelo mesmo caminho até ao aquartelamento.

Se no percurso de ida o caminho estava ladeado pela população que tinha acorrido, não só atraído pelas ladainhas e cânticos, mas também pelo cortejo de luz que as velas proporcionavam, no regresso pouca gente se via. Poucas pessoas estavam a ladear o caminho.

Feitas as orações finais e quando o padre Libório se voltou para os militares para proferir a despedida, ficou surpreso, direi mesmo espantado. Na sua frente estavam quase todos os habitantes civis que, tendo à frente os seus sacerdotes, com os seus terços, rezando a Alá, se foram integrando no cortejo, fazendo daquela procissão, um acto ecuménico espontâneo.

Terminada a cerimónia, os homens grandes dirigiram-se ao padre e ao comandante para partir mantanha (cumprimentar), dizendo que tinha sido um grande ronco (festa).

Quando todos começaram a dispersar, a foco de luz que iluminava a imagem da Santa apagou-se subitamente, como que a lembrar-nos que naquele local, em pleno mato africano, a par da devoção, que tínhamos acabado de demonstrar, havia a obrigação, ou seja, teríamos que voltar a vestir a pele de soldados e regressar às nossas tarefas.

José Martins

Ex-Furriel Miliciano de Transmissões

CCAÇ 5, Canjadude (1968/70)

26 de Agosto de 2002

____________

Notas de L.G.

(1) Canjadude: ficava entre Nova Lamego (Gabu Sara) e Cheche, no Rio Corubal.

(2) A experiência de capelania nem sempre correu bem, do ponto de vista do Exéricto e da Igreja Católica...

Já aqui citámos dois casos de capelões, expulsos do exército:

(i) O Padre Poím (Bambadinca, BART 2917, 1970/72)

(ii) e o Padre Mário (mais tarde conhecido como Padre Mário da Xira) (Mansoa, BCAÇ 1912, 1967/1968): vd post de 27 de Junho de 2005 > Guiné 60/71 - LXXXV: Antologia (5): Capelão Militar em Mansoa (Padre Mário da Lixa)

11 maio 2006

Guiné 63/74 - DCCXLV: Ex-graduados da CCAÇ 12 também foram fuzilados (António Duarte)

1. Caro Luís Graça,

Sou o António Duarte, ex-furriel atirador da CART 3493 e da CCAÇ 12 (1). Quero dizer-te que tenho uma nova religião, que passa por todos os dias ver o nosso blogue (peço desculpa pelo nosso, mas já o sinto como tal).

Tenho escrito muito pouco, porque o tema ainda me incomoda, mas gostava de dar duas notas [a segunda, a ser publicada noutro post, tendo a ver com a contagem do tempo para a reforma].

A primeira prende-se com o programa [da RTP 1, Órfãos de Pátria, que passou na 3ª feira]. Partilho das opiniões já expressas, traduzidas pela expressão muita parra e pouca uva. Foi pobre na forma e no conteúdo. Foi superficial e não quis ser politicamente incorrecto.

Sem querer alongar-me, gostava de apresentar um exemplo. O programa foca-se exclusivamente nos comandos africanos e, tanto quanto sei, os graduados das CCAÇ africanas, de origem local, foram também fuzilados.

Esta informação foi-me prestada por um estudante guineense, meu contemporâneo no ISEG - Instituto Superior de Economia e Gestão (ex-ISE). Referia esse jovem, que era natural de Bafatá, que grande parte dos graduados da CCAÇ 21 foram fuzilados.

Ora, para nós, ex-militares da CCAÇ 12, esta situação toca-nos profundamente, pois em 1973 esta companhia [a CCAÇ 21], que ficou em Bambadinca comandada pelo Ten Jamanca [ex-comando africano], foi constituída, tendo por base furriéis que eram ex-cabos da CCAÇ 12 (na época colocada no Xime).

Com a ausência de referências aos outros fuzilamentos, fica a ideia de que se tratou de uma mera perseguição aos homens dos Comandos Africanos, o que realmente não foi. Foi muito mais do que isso.

Este assunto, para ser tratado num órgão de informação como a TV, merecia mais. Deveria ter uma forte componente política, onde provavelmente os governos de Portugal iriam ser responsabilizados sobretudo pelas omissões.

O comandante da nossa Marinha ainda aflorou o assunto, mas o jornalista não pegou. Acho que mais para a frente poderemos voltar ao tema.

(...) E por hoje deixo-vos com um abraço de camaradagem,

António Duarte

2. Comentário de L.G.:

O António Duarte (que foi furriel miliciano na CCAÇ 12 na fase final, depois de transitar da CART 3493, que esteve em Mansambo) vem lembrar que em Bambadinca (e um pouco por todo o lado), os que foram encostados ao trágico poilão por onde passávamos muitas vezes, não foram apenas os comandos africanos mas também os nossos nharros da CCAÇ 12 (que foram constituir novas unidades, como a CCAÇ 21), e se calhar dos Pel Caç Nat 52, 53, 54, 63... No nosso tempo já havia ou dois três soldados arvorados por cada grupo de combate da CCAÇ 12... Mais tarde passaram a cabos e, em segunda comissão, foram promovidos a furriéis, ao que parece na CCAÇ 21, comandada pelo comando Jamanca...

Dos soldados arvorados da CAÇ 12 estou-me a lembrar do Abibo Jau, do Vitor Santos Sampaio (um dos raros que não era fula, era mancanhe, um reguila de Bissau...), o Mamadu Baló, o Alfa Baldé, o Mamadu Baldé, o Braima Bá, o Totala Baldé, o Mamadu Jau, o Saljo Baldé, o Samba Só, o Quecuta Colubali...

O único cabo era o bom do Zé Carlos Suleimane Baldé, que estudava português que se fartava para chegar a graduado... É provável que muitos destes homens e nossos camaradas (alguns, ainda putos, quando eu os conheci em Contuboel) tenham sido fuzilados no poidão de Bambadinca...

Esta é a parte feia, macabra e trágica da história da nossa guerra... Ainda hoje os guineenses têm dificuldade em falar disto... As testemunhas, os figurantes, os actores, os executantes, os mandantes... Se calhar todos têm medo de falar, por vergonha, culpa, cobardia ...

Nós, amigos e camaradas da Guiné, temos a obrigação de falar - com emoção, mas também com dignidade moral e elevação intelectual, com serenidade... Até para os ajudar a fazer o luto (individual, familiar, colectivo)...

___________

Nota de L.G.

(1) Vd. post de 18 Fevereiro 2006 > Guiné 63/74 - DLXI: Um periquito da CCAÇ 12 (António Duarte / Sousa de Castro)

Guiné 63/74 - DCCXLV: Ex-graduados da CCAÇ 12 também foram fuzilados (António Duarte)

1. Caro Luís Graça,

Sou o António Duarte, ex-furriel atirador da CART 3493 e da CCAÇ 12 (1). Quero dizer-te que tenho uma nova religião, que passa por todos os dias ver o nosso blogue (peço desculpa pelo nosso, mas já o sinto como tal).

Tenho escrito muito pouco, porque o tema ainda me incomoda, mas gostava de dar duas notas [a segunda, a ser publicada noutro post, tendo a ver com a contagem do tempo para a reforma].

A primeira prende-se com o programa [da RTP 1, Órfãos de Pátria, que passou na 3ª feira]. Partilho das opiniões já expressas, traduzidas pela expressão muita parra e pouca uva. Foi pobre na forma e no conteúdo. Foi superficial e não quis ser politicamente incorrecto.

Sem querer alongar-me, gostava de apresentar um exemplo. O programa foca-se exclusivamente nos comandos africanos e, tanto quanto sei, os graduados das CCAÇ africanas, de origem local, foram também fuzilados.

Esta informação foi-me prestada por um estudante guineense, meu contemporâneo no ISEG - Instituto Superior de Economia e Gestão (ex-ISE). Referia esse jovem, que era natural de Bafatá, que grande parte dos graduados da CCAÇ 21 foram fuzilados.

Ora, para nós, ex-militares da CCAÇ 12, esta situação toca-nos profundamente, pois em 1973 esta companhia [a CCAÇ 21], que ficou em Bambadinca comandada pelo Ten Jamanca [ex-comando africano], foi constituída, tendo por base furriéis que eram ex-cabos da CCAÇ 12 (na época colocada no Xime).

Com a ausência de referências aos outros fuzilamentos, fica a ideia de que se tratou de uma mera perseguição aos homens dos Comandos Africanos, o que realmente não foi. Foi muito mais do que isso.

Este assunto, para ser tratado num órgão de informação como a TV, merecia mais. Deveria ter uma forte componente política, onde provavelmente os governos de Portugal iriam ser responsabilizados sobretudo pelas omissões.

O comandante da nossa Marinha ainda aflorou o assunto, mas o jornalista não pegou. Acho que mais para a frente poderemos voltar ao tema.

(...) E por hoje deixo-vos com um abraço de camaradagem,

António Duarte

2. Comentário de L.G.:

O António Duarte (que foi furriel miliciano na CCAÇ 12 na fase final, depois de transitar da CART 3493, que esteve em Mansambo) vem lembrar que em Bambadinca (e um pouco por todo o lado), os que foram encostados ao trágico poilão por onde passávamos muitas vezes, não foram apenas os comandos africanos mas também os nossos nharros da CCAÇ 12 (que foram constituir novas unidades, como a CCAÇ 21), e se calhar dos Pel Caç Nat 52, 53, 54, 63... No nosso tempo já havia ou dois três soldados arvorados por cada grupo de combate da CCAÇ 12... Mais tarde passaram a cabos e, em segunda comissão, foram promovidos a furriéis, ao que parece na CCAÇ 21, comandada pelo comando Jamanca...

Dos soldados arvorados da CAÇ 12 estou-me a lembrar do Abibo Jau, do Vitor Santos Sampaio (um dos raros que não era fula, era mancanhe, um reguila de Bissau...), o Mamadu Baló, o Alfa Baldé, o Mamadu Baldé, o Braima Bá, o Totala Baldé, o Mamadu Jau, o Saljo Baldé, o Samba Só, o Quecuta Colubali...

O único cabo era o bom do Zé Carlos Suleimane Baldé, que estudava português que se fartava para chegar a graduado... É provável que muitos destes homens e nossos camaradas (alguns, ainda putos, quando eu os conheci em Contuboel) tenham sido fuzilados no poidão de Bambadinca...

Esta é a parte feia, macabra e trágica da história da nossa guerra... Ainda hoje os guineenses têm dificuldade em falar disto... As testemunhas, os figurantes, os actores, os executantes, os mandantes... Se calhar todos têm medo de falar, por vergonha, culpa, cobardia ...

Nós, amigos e camaradas da Guiné, temos a obrigação de falar - com emoção, mas também com dignidade moral e elevação intelectual, com serenidade... Até para os ajudar a fazer o luto (individual, familiar, colectivo)...

___________

Nota de L.G.

(1) Vd. post de 18 Fevereiro 2006 > Guiné 63/74 - DLXI: Um periquito da CCAÇ 12 (António Duarte / Sousa de Castro)

Guiné 63/74 - DCCXLIV: O meu testemunho (Paulo Raposo, CCAÇ 2405, 1968/70) (7): A ida ao Morés: atenção, heli, aqui tropa à rasca

Guiné > Zona Leste > Sector L1 > Bambadinca > Alouette III, a descolar do heliporto local. O piloto era o Coelho, diz a legenda do fotógrafo. No mato, em operações, o helicóptero era o nosso anjo da guarda, como muito bem diz o Paulo Raposo. A sua presença era sempre securizante e protectora. Até ao dia em que começaram a ser abatidos, nos primeiros meses de 1973, pelos foguetões terra-ar e nós perdemos a nossa supremacia aérea... (LG).


Arquivo pessoal de Humberto Reis (ex-furriel miliciano de operações especiais, CCAÇ 12, Bambadinca, 1969/71).

© Humberto Reis (2006).


VII parte do testemunho do Paulo Raposo (ex-Alf Mil Inf, com a especialidade de Minas e Armadilhas, da CCAÇ 2405, pertencente ao BCAÇ 2852 > Guiné, Zona Leste, Sector L1, Bambadinca, 1968/70 > Galomaro e Dulombi).

Extractos de: Raposo, P. E. L. (1997) - O meu testemunho e visão da guerra de África.[Montemor-o-Novo, Herdade da Ameira]. Documento policopiado. Dezembro de 1997. pp. 22-25 (1).



5. A nossa ida ao Santuário do inimigo, no Morés:

Durante uma semana, a Força Aérea tinha estado a bombardear os objectivos. Após este bombardeamento, organizou-se uma grande operação, formada por várias companhias. Umas iam pelo Norte e outras pelo Sul.

Nós saímos de madrugada, de Massamá, conjuntamente com outra companhia, depois de uma noite dormida no chão, em quartel alheio. Logo depois de sairmos dei por falta de um soldado. Até ao fim da operação fiquei sem saber o que se tinha passado com ele. Tinha ficado para trás no bem bom. O susto e a responsabilidade foram grandes.

Para esta operação, a Força Aérea tinha deslocado muitos meios, DO e helis. A meio do dia tivemos contacto com o inimigo. Depois do tiroteio, perdemos o contacto com os nossos da frente, e eu fico para trás, com apenas uma secção e alguns africanos. Para nossa salvação, tínhamos ficado com o banana, nome que dávamos ao rádio que fazia a ligação à Força Aérea.

A curta distância vimos passar o inimigo, com as armas às costas, a fugirem. Nem eles nem nós fizemos fogo.

Passados estes momentos, seguimos um trilho que julgávamos ser o da companhia. Um africano disse logo:
- Por aí não, Alfero, que é caminho de turra.
Vejo-me perdido. Agarro no banana e, sem saber os códigos, chamo a Força Aérea:
- Atenção heli, aqui tropa à rasca.

Instantes depois, Nossa Senhora mandou-nos o nosso Anjo da Guarda, na forma de um heli. Acenámos e pedimos via rádio para voar em círculo por cima do local onde estava a companhia. E foi assim que nos juntámos a eles.

Logo de seguida vá de sair dali, uma vez que estávamos localizados. Durante toda a noite andámos pelo mato denso com os mosquitos agarrados aos ouvidos e com os ramos que os da frente afastavam, a baterem-nos continuamente na cara. Foi um suplício de noite. Só parámos na estrada que ligava Massamá [ou melhor, Mansabá] a Mansoa. Deve ter sido a noite mais penosa que passei na minha vida.

6. Havia na estrada entre Mansoa e Massamá [lapso do autor: deve ser Mansabá], um aquartelamento a nível do grupo de combate, perto de um trilho inimigo que passava perpendicular à estrada, chamado Cutia. Era uma zona perigosa.

Um belo dia, mandaram-nos, a nível da companhia, fazer uma emboscada durante toda a noite nesse trilho, para criar insegurança ao inimigo. Foi um pesadelo de noite.

Choveu toda a noite, ficámos molhados até aos ossos e com os mosquitos a morderem-nos os ouvidos o tempo todo. Se o inimigo por lá tivesse passado, teria sido um desastre. Hoje vejo os rapazes a perderem noites em discotecas, com toda a ligeireza.

7. Uma operação:

As operações ou patrulhamentos tinham como objectivo manter o inimigo em respeito e longe das nossas posições. Em Mansoa nunca perdemos a nossa capacidade ofensiva. Saíamos normalmente do quartel para as operações pela meia noite.

Quando estávamos no melhor do sono vá de levantar. Passávamos a noite toda a andar, dormíamos mais uma noite no mato, e regressávamos cheios de fome e de sede no dia seguinte. Aquelas noites no mato eram o pior que podíamos ter, ora os mosquitos ora as formigas não nos davam descanso. Se tivéssemos a azar de pisar um formigueiro, estas subiam-nos pelas pernas acima e mordiam-nos todos. Tínhamos de nos despir e retirar as formigas o melhor que podíamos. Isto, é claro, sempre sem fazer barulho e às escuras.

Há histórias de soldados que se queixaram de sentir cobras a passearem-lhe por cima enquanto estavam deitados à noite.

Como calçado, tínhamos umas botas de lona com piso de borracha, que se desgastava rapidamente. O pé andava sempre à vontade. Calçar novamente sapatos de couro era uma tortura para os pés.

_________

Nota de L.G.

(1) Vd último post, de 8 de Maio de 2006 > Guiné 63/74 - DCXXXIII: O meu testemunho (Paulo Raposo, CCAÇ 2405, 1968/70) (6); Mansoa, baptismo de fogo

Guiné 63/74 - DCCXLIV: O meu testemunho (Paulo Raposo, CCAÇ 2405, 1968/70) (7): A ida ao Morés: atenção, heli, aqui tropa à rasca

Guiné > Zona Leste > Sector L1 > Bambadinca > Alouette III, a descolar do heliporto local. O piloto era o Coelho, diz a legenda do fotógrafo. No mato, em operações, o helicóptero era o nosso anjo da guarda, como muito bem diz o Paulo Raposo. A sua presença era sempre securizante e protectora. Até ao dia em que começaram a ser abatidos, nos primeiros meses de 1973, pelos foguetões terra-ar e nós perdemos a nossa supremacia aérea... (LG).


Arquivo pessoal de Humberto Reis (ex-furriel miliciano de operações especiais, CCAÇ 12, Bambadinca, 1969/71).

© Humberto Reis (2006).


VII parte do testemunho do Paulo Raposo (ex-Alf Mil Inf, com a especialidade de Minas e Armadilhas, da CCAÇ 2405, pertencente ao BCAÇ 2852 > Guiné, Zona Leste, Sector L1, Bambadinca, 1968/70 > Galomaro e Dulombi).

Extractos de: Raposo, P. E. L. (1997) - O meu testemunho e visão da guerra de África.[Montemor-o-Novo, Herdade da Ameira]. Documento policopiado. Dezembro de 1997. pp. 22-25 (1).



5. A nossa ida ao Santuário do inimigo, no Morés:

Durante uma semana, a Força Aérea tinha estado a bombardear os objectivos. Após este bombardeamento, organizou-se uma grande operação, formada por várias companhias. Umas iam pelo Norte e outras pelo Sul.

Nós saímos de madrugada, de Massamá, conjuntamente com outra companhia, depois de uma noite dormida no chão, em quartel alheio. Logo depois de sairmos dei por falta de um soldado. Até ao fim da operação fiquei sem saber o que se tinha passado com ele. Tinha ficado para trás no bem bom. O susto e a responsabilidade foram grandes.

Para esta operação, a Força Aérea tinha deslocado muitos meios, DO e helis. A meio do dia tivemos contacto com o inimigo. Depois do tiroteio, perdemos o contacto com os nossos da frente, e eu fico para trás, com apenas uma secção e alguns africanos. Para nossa salvação, tínhamos ficado com o banana, nome que dávamos ao rádio que fazia a ligação à Força Aérea.

A curta distância vimos passar o inimigo, com as armas às costas, a fugirem. Nem eles nem nós fizemos fogo.

Passados estes momentos, seguimos um trilho que julgávamos ser o da companhia. Um africano disse logo:
- Por aí não, Alfero, que é caminho de turra.
Vejo-me perdido. Agarro no banana e, sem saber os códigos, chamo a Força Aérea:
- Atenção heli, aqui tropa à rasca.

Instantes depois, Nossa Senhora mandou-nos o nosso Anjo da Guarda, na forma de um heli. Acenámos e pedimos via rádio para voar em círculo por cima do local onde estava a companhia. E foi assim que nos juntámos a eles.

Logo de seguida vá de sair dali, uma vez que estávamos localizados. Durante toda a noite andámos pelo mato denso com os mosquitos agarrados aos ouvidos e com os ramos que os da frente afastavam, a baterem-nos continuamente na cara. Foi um suplício de noite. Só parámos na estrada que ligava Massamá [ou melhor, Mansabá] a Mansoa. Deve ter sido a noite mais penosa que passei na minha vida.

6. Havia na estrada entre Mansoa e Massamá [lapso do autor: deve ser Mansabá], um aquartelamento a nível do grupo de combate, perto de um trilho inimigo que passava perpendicular à estrada, chamado Cutia. Era uma zona perigosa.

Um belo dia, mandaram-nos, a nível da companhia, fazer uma emboscada durante toda a noite nesse trilho, para criar insegurança ao inimigo. Foi um pesadelo de noite.

Choveu toda a noite, ficámos molhados até aos ossos e com os mosquitos a morderem-nos os ouvidos o tempo todo. Se o inimigo por lá tivesse passado, teria sido um desastre. Hoje vejo os rapazes a perderem noites em discotecas, com toda a ligeireza.

7. Uma operação:

As operações ou patrulhamentos tinham como objectivo manter o inimigo em respeito e longe das nossas posições. Em Mansoa nunca perdemos a nossa capacidade ofensiva. Saíamos normalmente do quartel para as operações pela meia noite.

Quando estávamos no melhor do sono vá de levantar. Passávamos a noite toda a andar, dormíamos mais uma noite no mato, e regressávamos cheios de fome e de sede no dia seguinte. Aquelas noites no mato eram o pior que podíamos ter, ora os mosquitos ora as formigas não nos davam descanso. Se tivéssemos a azar de pisar um formigueiro, estas subiam-nos pelas pernas acima e mordiam-nos todos. Tínhamos de nos despir e retirar as formigas o melhor que podíamos. Isto, é claro, sempre sem fazer barulho e às escuras.

Há histórias de soldados que se queixaram de sentir cobras a passearem-lhe por cima enquanto estavam deitados à noite.

Como calçado, tínhamos umas botas de lona com piso de borracha, que se desgastava rapidamente. O pé andava sempre à vontade. Calçar novamente sapatos de couro era uma tortura para os pés.

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Nota de L.G.

(1) Vd último post, de 8 de Maio de 2006 > Guiné 63/74 - DCXXXIII: O meu testemunho (Paulo Raposo, CCAÇ 2405, 1968/70) (6); Mansoa, baptismo de fogo

Guiné 63/74 - DCCXLIII: Aos nossos queridos nharros (Zé Teixeira)

Guiné > Zona Leste >Sector L1 > Estrada Xime-Bambadinca > 1970 > Coluna auto da CCAÇ 12 nas proximidades da tabanca fula, em autodefesa, de Amedalai.

Arquivo pessoal de Humberto Reis (ex-furriel miliciano de operações especiais, CCAÇ 12, Bambadinca, 1969/71).

© Humberto Reis (2006).


1. Em pleno chão fula, foram os balantas, os beafadas e os mandingas que aderiram mais facilmente (ou foram condenados a aderir) à guerrilha. Os fulas, pelo contrário, reforçaram a sua velha aliança secular com os tugas. Fulas e balantas cultivavam um ódio de estimação. Eu, pessoalmente, nunca consegui falar, olhos nos olhos, a um balanta de Nhabijões (1)...

Os demónios étnicos e velhas contas por liquidar vieram, infelizmente, ao de cima, a seguir à nossa saída da Guiné. Bambadinca, tal como no início da guerra, em 1963, foi depois da independência palco de crimes contra a humanidade, nomeadamanente de execuções sumárias de dirigentes fulas, de ex-comandos e outros ex-militares que estiveram integrados nas NT. Ou seja, desta vez, de sinal contrário. A extensão destes crimes está por investigar.

Provavelmente nunca chegaremos a conhecer toda a verdade dos crimes praticados nas décadas de 1960 e 1970 na Guiné, por nós e pelo PAIGC, em nosso nome e em nome do PAIGC. Os fuzilamentos do Cumeré, de Bambadinca e de outros sítios, praticados por ou em nome dos guerrilheiros no poder, não podem todavia fazer esquecer, ignorar ou branquear a repressão exercida pelas autoridades coloniais no início da guerra: Samba Silate e Poidon, por exemplo, não honram a memória dos tugas. Foram lugares de massacres no início da guerra (1).

Eu não estava lá, mas os meus meus nharros, os mais velhos, os homens grandes, contavam-me estórias desse tempo, do terror branco de Bambadinca. Terror branco ou crioulo, já que a administração colonial da Guiné era basicamente preenchida por funcionários oriundos de Cabo Verde, ou de origem caboverdiana... Na Missão do Sono de Bambadincazinha, a G-3 a tiracolo, enquanto fazíamos horas para o sol esplendoroso de África aparecer e fazer espantar os nossos medos e os nossos fantasmas nocturnos. E com aquela espécie de inocência de criança com que os fulas falavam destas coisas trágicas e macabras da guerra e da morte aos senhores da Guiné, que eram os tugas...

Tive as relações mais afáveis, afectuosas e cordiais que me foi possível manter com os fulas, com os meus queridos nharros, mas eu sabia que as relações entre iguais, logo as relações de amizade, eram impossíveis entre nós: eu, fardado, representava uma potência estrangeira, colonial; eles, fardados, soldados de 2ª classe, pertenciam a um tempo e a mundo que já não existia... Os fulas estavam condenados pela história: infelizmente, eles não tinham alternativa... Corrompidos pelo poder colonial, cinduzidos pelos seus altos dignatários a um beco sem saída, os fulas acabaram por escolher o lado errado da barricada. Nem mesmo neutrais eles poderiam ter sido...

Enfim, especulo: que sei eu, ao fim e ao cabo, das complexas relações das principais etnias da Guiné, entre si, e com o poder colonial, durante os anos de guerra ?!... No entanto, subscrevo, de coração aberto, o belíssimo e texto que o Zé Teixeira me enviou e que passo a inserir no blogue... O Zé foi talvez dos poucos que, graças ao seu papel de enfermeiro (e também por mérito pessoal e pelas suas qualidades humanas), consegui saltar a barreira da espécie: ele, tuga, foi aceite e amado pela população fula, e ainda hoje tem verdadeiros amigos fulas...

Devo acrescentar que o termo nharro, que nós usávamos no nosso calão militar da Guiné, e nomeadamente na zona leste, não tinha propriamente uma conotação racista... Não era sinónimo de preto ou de barrote queimado... Enfim, tudo dependia da entoação... Não sei qual é a origem do termo, provavelmente é crioulo da Guiné. Ele ainda não consta do Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa, mas continua a fazer parte da língua portuguesa viva... Já o vi traduzido por gandarro, massaro, pessoa ignorante, sem conhecimentos, num sítio brasileiro ... Continua a fazer parte do calão dos nossos jovens urbanos e suburbanos... Já vi inclusive a utilização do termo como adjectivo: um tuga nharro (ou português ignorante)... (LG)


2. Texto do José Teixeira

Luís: Saúde, paz e felicidade.

Após algum silêncio... É bom dar espaço a outros, ler e apreciar e reviver a Guiné de outrora nos seus testemunhos e as suas histórias.

Volto de novo para entrar na onda que passa sobre os antigos combatentes nativos, que recordo com saudade, que admiro e e a quem presto a minha homenagem.

Recordo os que tive o prazer de rever, abraçar e com, eles recordar bons momentos (hoje, são todos bons, esses momentos), porque guera na passa manga di tempu e ainda estamos vivos, com há um ano [em 2005] me dizia um turra, embora muitos deles e de nós, tenham no corpo o ferrete desse tempo e que teima em não desaparecer Se vires que tem interesse para entrar no Blogue.. .
Um abraço fraterno,
Zé Teixeira
___________


Aos nossos queridos nharros... Tropa africana que connosco deram o seu sangue suor e lágrimas, por Portugal, com toda a carga emotiva, de carinho e afecto que a palavra nharro possa conter.

O programa aparecido na TV (2) teve pelo menos o condão de nos pôr a reflectir, a nós que durante cerca de dois anos convivemos diariamente com a tropa africana, fiel a Portugal e não ao regime, como alguns tentam deixar passar.

O conceito de mãe-pátria, Metrópole, Lisboa, estava arreigada naquela gente, não pelos políticos, mas pelos portugueses brancos que por lá foram passando, muitos dos quais para cumprir penas de índole criminal e quantas vezes por estarem em desacordo com os políticos e as políticas exercidas em Portugal.

Era um conceito forte, de esperança e de orgulho. Foi com eles que eu aprendi quanto se deve respeitar a bandeira do meu País. Com que orgulho eles a saudavam (e toda a população) no hastear e arrear diário. Gesto que ainda hoje se repete. Há um ano em Bissau pude testemunhar o toque de hastear no quartel da Amura e a reacção de toda a população na rua exterior, até onde era possível ouvir o toque.

Era este conceito de filhos de Portugal, aliado naturalmente à propaganda da época e aos benefícios financeiros que os faziam alinhar ao nosso lado com a sua experiência e conhecimento de logística local, dos carreiros das tabancas inimigas, dos perigos desconhecidos para um europeu ingénuo, para quem tudo era estranho, desde o clima ao modo de estar em sociedade, à floresta com os seus segredos e perigos, às técnicas de guerrilha usadas pelo adversário.

Pergunto:

- Quem de nós, periquitos, não sentiu ao chegar, uma mão amiga, um sorriso e um alerta para um eventual perigo ?

- Quem nos orientava na Tabanca, na busca de uma lavandera bonita e jeitosa ?

- Quem nos avisava dos perigos da floresta, abelhas, formigas, cobras ? (Aos bloguistas que se deram ao trabalho de lerem o meu diário (3), recordo a cena do ataque de abelhas e a forma como um milícia cujo rosto não fixei que me agarrou por um braço, me escondeu atrás de uma árvore e me aconselhou a ficar rigidamente quieto até elas, as abelhas, se irem embora. Foi assim que aprendi a não ter medo de abelhas e tanto jeito me fez no segundo ataque que sofri mais tarde.)

- Quem nos indicava à chegada o melhor sítio para tomar banho, no rio para tomar banho sem correr perigo ?

- Quem nos arranjava os frangos e os cabritos para as tainas, para esquecer as mágoas ?

- Quem se prontificava a ajudar o colega do morteiro, o enfermeiro ( Bons amigos que tive e recordo com saudade), no transporte do equipamento, etc ?

- Quem ainda hoje apesar de tão desprezados pela mãe-pátria, como costumavam dizer, nos recebem com um carinho e afecto, que só quem lá foi consegue entender e apreciar ? (Vi e senti lágrimas, recebi abraços longos e quentes, passados 35 anos de separação).

- Quem servia o meu País e desprezava o seu país, deixando mulheres e filhos da outra banda (Kebá de Empada, meu querido amigo, recordo as conversas que tive contigo, sobre as tuas duas mulheres e os teus filhos que optaram pelo outro lado, quanto tu sofrias quando eras atacado! Porque te recusavas a ir comigo para o mato!).

- Quem, debaixo de fogo, avançava de peito aberto para o Inimigo (eu
testemunhei), protegendo-nos (quantos de nós tão acagaçados, que não cabia um feijão no buraquinho) convencidos que era esse o caminho certo para o seu País ?

- Quem vergonhosamente os abandonou, deixando que tantos fossem assassinados pelos seus conterrâneos, só porque estavam do lado errado, quando politicamente correcto Portugal admitiu que não tinha saída, a não ser dar a oportunidade a um povo de construir e seguir o seu próprio destino ?

- Quem a partir desse momento os deixou órfãos de Pátria, obrigando-os a irem procurar a sua pátria que até então lhe garantiam não existir, sem qualquer preocupação de lhe dar o prémio merecido por tudo quanto fizeram em nome e para Portugal ?

- Quem lhe traiu todas as promessas de uma Guiné melhor, com Portugal ?

Sinto vergonha. Estão-me na memória, os Sambá, os Adbulai, os Ussumane, os Amadu, os Aliu, os Braima, os Mamadu, tantos outros, que conheci e com quem convivi sadiamente, que me acompanharam em tantos encontros com o adversário e que merecem ser considerados filhos de Portugal, pelo que fizeram, pelo que sentiam e ainda sentem, pela alegria que expressam quando nos vem chegar.

Quantos deles assassinados por incúria de Portugal, quantos andaram anos fugidos no mato, deixando a família nas mãos dos adversários, quantos ainda não reconstruíram as suas vidas, quantos sofrem o stress de guerra, quantos morreram à fome, quantos passam fome, por falta de trabalho. Não sabiam fazer mais nada a não ser guerra.

Telefonou-me há dias o Quintino Procel, de Empada. Esse conseguiu fazer no meu tempo a 4ª classe e seguiu a carreira de enfermeiro, sendo hoje o enfermeiro-chefe em Canjadude. Quando em 2005 passei por Empada, procurei-o.

Alguém o informou da minha presença e o seu telefonema chegou um ano depois:
- Tissera, tu vai na Guiné e não fala comigo ? Eu na tem casa em Canjadude. Bó na vem e firma lá. Eu fico triste, manga dele, por não ver Tissera. - Foram estas palavras que guardei no coração passados 35 anos.

Creio que ainda há algum tempo para Portugal olhar para esta gente. Não pode desperdiçar esta oportunidade.

Creio que nós, antigos combatentes, ainda podemos fazer algo por eles. No mínimo ir visitá-los(os que puderem), testemunhar-lhes a nossa amizade, tanto quanto eles nos deram a deles. Permitir que sintam e vivam essa alegria de não sentirem que foram esquecidos, por aqueles que, como eles, deram sangue, suor e lágrimas, por uma Pátria que, não sendo actualmente a deles, se deve sentir orgulhosa de os ter tido como filhos, embora de 2ª...

Zé Teixeira
_____________

Notas de L.G.

(1) Vd. post de 28 de Fevereiro de 2006 > Guiné 63/74 - DXCIV: Nhabijões: quando um balanta a menos era um turra a menos

(...) "Há uns anos atrás, nos anos do terror, ser encontrado fora da sua tabanca ou do seu perímetro, de catana na mão ou faca de mato à cintura - que é ronco ou adorno para um balanta que se preze - , eis um belo pretexto para um balanta ser preso, levado para o posto administrativo de Bambadinca, sumarianente interrogado e às vezes, hélàs!, mais sumariamente ainda liquidado.

"A justificação era simples, segundo os meus nharros: "um balanta a menos, era um turra era menos" (sic)… Admito que haja aqui alguma dose de fanfarronice e de exagero, por parte dos fulas, históricos inimigos e vizinhos dos balantas… Mas não há fumo sem fogo: estas histórias parecem-me ter consistência…

"Donde esta hostilidade passiva que julgo poder ler nos olhos e nas atitudes da população de Nhabijões que alimenta a guerrilha, em homens e mantimentos, provavelmente mais por razões de parentesco do que por simpatia para com o PAIGC: ao avistarem-me, fardado, na sua tabanca – a mim, tuga, representante da tropa ocupante - os mais velhos baixam a cabeça ou viram-me as costas como se sentissem acabrunhados com a minha presença… Quem se sente mal, sou eu, que venho invadir-lhes a sua privacidade e perturbar os seus irãs…

"Devia ser esta, aliás, a atitude com que caminhavam para a morte: sem medo mas também sem revolta, com uma estranha dignidade ancestral, a pá e a pica em cada uma das mãos. Sim, por que o método era tão requintado como o dos nazis, a crer na descrição que me fazem alguns dos meus informadores, os mais velhos, como o Abibo, por exemplo – o Abibo, o bom gigante do Abibo, que sofre de epilepsia e tem elefantíase no escroto…

"Ou até senão mais: a própria vítima abria a estreita vala onde devia caber o seu próprio corpo, três palmos abaixo da superfície, e onde ficava deitado… à espera que o carrasco da polícia administrativa (sempre os africanos para as tarefas sujas…) se dignasse dar-lhe o passaporte para a eternidade: um tiro de pistola, uma lata de gasolina, um fósforo…

"Ter-se-á passado assim ? Um frémito de horror passa-me pela espinha acima. Recuso-me a aceitar que isto se tenha passado debaixo da bandeira verde-rubra da minha pátria, com a cumplicidade ou até o envolvimento (activo ou passivo) das tropas portuguesas ou dos representantes das autoridades portuguesas… Faço, ao menos, votos para que estes crimes sejam apenas imputados à odiosa PIDE… Enfim, nunca o saberei… Ou melhor, poderei perguntar-lhes onde era o sítio... O Adibo e outros falam-me do antigo cemitério de Bambadinca, um sinistro local de outrora onde hoje as alfaces crescem, viçosas" (...)…


(2) Vd. post de 6 de Maio de 2006 > Guiné 63/74 - DCCXXX: Ex-comandos africanos, 'órfãos de Pátria', reportagem na RTP 1 (José Martins)

(3) Vd. post de 14 de Março de 2006 > Guiné 63/74 - DCXXVI: O meu diário (Zé Teixeira) (fim): Confesso que vi e vivi

Guiné 63/74 - DCCXLIII: Aos nossos queridos nharros (Zé Teixeira)

Guiné > Zona Leste >Sector L1 > Estrada Xime-Bambadinca > 1970 > Coluna auto da CCAÇ 12 nas proximidades da tabanca fula, em autodefesa, de Amedalai.

Arquivo pessoal de Humberto Reis (ex-furriel miliciano de operações especiais, CCAÇ 12, Bambadinca, 1969/71).

© Humberto Reis (2006).


1. Em pleno chão fula, foram os balantas, os beafadas e os mandingas que aderiram mais facilmente (ou foram condenados a aderir) à guerrilha. Os fulas, pelo contrário, reforçaram a sua velha aliança secular com os tugas. Fulas e balantas cultivavam um ódio de estimação. Eu, pessoalmente, nunca consegui falar, olhos nos olhos, a um balanta de Nhabijões (1)...

Os demónios étnicos e velhas contas por liquidar vieram, infelizmente, ao de cima, a seguir à nossa saída da Guiné. Bambadinca, tal como no início da guerra, em 1963, foi depois da independência palco de crimes contra a humanidade, nomeadamanente de execuções sumárias de dirigentes fulas, de ex-comandos e outros ex-militares que estiveram integrados nas NT. Ou seja, desta vez, de sinal contrário. A extensão destes crimes está por investigar.

Provavelmente nunca chegaremos a conhecer toda a verdade dos crimes praticados nas décadas de 1960 e 1970 na Guiné, por nós e pelo PAIGC, em nosso nome e em nome do PAIGC. Os fuzilamentos do Cumeré, de Bambadinca e de outros sítios, praticados por ou em nome dos guerrilheiros no poder, não podem todavia fazer esquecer, ignorar ou branquear a repressão exercida pelas autoridades coloniais no início da guerra: Samba Silate e Poidon, por exemplo, não honram a memória dos tugas. Foram lugares de massacres no início da guerra (1).

Eu não estava lá, mas os meus meus nharros, os mais velhos, os homens grandes, contavam-me estórias desse tempo, do terror branco de Bambadinca. Terror branco ou crioulo, já que a administração colonial da Guiné era basicamente preenchida por funcionários oriundos de Cabo Verde, ou de origem caboverdiana... Na Missão do Sono de Bambadincazinha, a G-3 a tiracolo, enquanto fazíamos horas para o sol esplendoroso de África aparecer e fazer espantar os nossos medos e os nossos fantasmas nocturnos. E com aquela espécie de inocência de criança com que os fulas falavam destas coisas trágicas e macabras da guerra e da morte aos senhores da Guiné, que eram os tugas...

Tive as relações mais afáveis, afectuosas e cordiais que me foi possível manter com os fulas, com os meus queridos nharros, mas eu sabia que as relações entre iguais, logo as relações de amizade, eram impossíveis entre nós: eu, fardado, representava uma potência estrangeira, colonial; eles, fardados, soldados de 2ª classe, pertenciam a um tempo e a mundo que já não existia... Os fulas estavam condenados pela história: infelizmente, eles não tinham alternativa... Corrompidos pelo poder colonial, cinduzidos pelos seus altos dignatários a um beco sem saída, os fulas acabaram por escolher o lado errado da barricada. Nem mesmo neutrais eles poderiam ter sido...

Enfim, especulo: que sei eu, ao fim e ao cabo, das complexas relações das principais etnias da Guiné, entre si, e com o poder colonial, durante os anos de guerra ?!... No entanto, subscrevo, de coração aberto, o belíssimo e texto que o Zé Teixeira me enviou e que passo a inserir no blogue... O Zé foi talvez dos poucos que, graças ao seu papel de enfermeiro (e também por mérito pessoal e pelas suas qualidades humanas), consegui saltar a barreira da espécie: ele, tuga, foi aceite e amado pela população fula, e ainda hoje tem verdadeiros amigos fulas...

Devo acrescentar que o termo nharro, que nós usávamos no nosso calão militar da Guiné, e nomeadamente na zona leste, não tinha propriamente uma conotação racista... Não era sinónimo de preto ou de barrote queimado... Enfim, tudo dependia da entoação... Não sei qual é a origem do termo, provavelmente é crioulo da Guiné. Ele ainda não consta do Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa, mas continua a fazer parte da língua portuguesa viva... Já o vi traduzido por gandarro, massaro, pessoa ignorante, sem conhecimentos, num sítio brasileiro ... Continua a fazer parte do calão dos nossos jovens urbanos e suburbanos... Já vi inclusive a utilização do termo como adjectivo: um tuga nharro (ou português ignorante)... (LG)


2. Texto do José Teixeira

Luís: Saúde, paz e felicidade.

Após algum silêncio... É bom dar espaço a outros, ler e apreciar e reviver a Guiné de outrora nos seus testemunhos e as suas histórias.

Volto de novo para entrar na onda que passa sobre os antigos combatentes nativos, que recordo com saudade, que admiro e e a quem presto a minha homenagem.

Recordo os que tive o prazer de rever, abraçar e com, eles recordar bons momentos (hoje, são todos bons, esses momentos), porque guera na passa manga di tempu e ainda estamos vivos, com há um ano [em 2005] me dizia um turra, embora muitos deles e de nós, tenham no corpo o ferrete desse tempo e que teima em não desaparecer Se vires que tem interesse para entrar no Blogue.. .
Um abraço fraterno,
Zé Teixeira
___________


Aos nossos queridos nharros... Tropa africana que connosco deram o seu sangue suor e lágrimas, por Portugal, com toda a carga emotiva, de carinho e afecto que a palavra nharro possa conter.

O programa aparecido na TV (2) teve pelo menos o condão de nos pôr a reflectir, a nós que durante cerca de dois anos convivemos diariamente com a tropa africana, fiel a Portugal e não ao regime, como alguns tentam deixar passar.

O conceito de mãe-pátria, Metrópole, Lisboa, estava arreigada naquela gente, não pelos políticos, mas pelos portugueses brancos que por lá foram passando, muitos dos quais para cumprir penas de índole criminal e quantas vezes por estarem em desacordo com os políticos e as políticas exercidas em Portugal.

Era um conceito forte, de esperança e de orgulho. Foi com eles que eu aprendi quanto se deve respeitar a bandeira do meu País. Com que orgulho eles a saudavam (e toda a população) no hastear e arrear diário. Gesto que ainda hoje se repete. Há um ano em Bissau pude testemunhar o toque de hastear no quartel da Amura e a reacção de toda a população na rua exterior, até onde era possível ouvir o toque.

Era este conceito de filhos de Portugal, aliado naturalmente à propaganda da época e aos benefícios financeiros que os faziam alinhar ao nosso lado com a sua experiência e conhecimento de logística local, dos carreiros das tabancas inimigas, dos perigos desconhecidos para um europeu ingénuo, para quem tudo era estranho, desde o clima ao modo de estar em sociedade, à floresta com os seus segredos e perigos, às técnicas de guerrilha usadas pelo adversário.

Pergunto:

- Quem de nós, periquitos, não sentiu ao chegar, uma mão amiga, um sorriso e um alerta para um eventual perigo ?

- Quem nos orientava na Tabanca, na busca de uma lavandera bonita e jeitosa ?

- Quem nos avisava dos perigos da floresta, abelhas, formigas, cobras ? (Aos bloguistas que se deram ao trabalho de lerem o meu diário (3), recordo a cena do ataque de abelhas e a forma como um milícia cujo rosto não fixei que me agarrou por um braço, me escondeu atrás de uma árvore e me aconselhou a ficar rigidamente quieto até elas, as abelhas, se irem embora. Foi assim que aprendi a não ter medo de abelhas e tanto jeito me fez no segundo ataque que sofri mais tarde.)

- Quem nos indicava à chegada o melhor sítio para tomar banho, no rio para tomar banho sem correr perigo ?

- Quem nos arranjava os frangos e os cabritos para as tainas, para esquecer as mágoas ?

- Quem se prontificava a ajudar o colega do morteiro, o enfermeiro ( Bons amigos que tive e recordo com saudade), no transporte do equipamento, etc ?

- Quem ainda hoje apesar de tão desprezados pela mãe-pátria, como costumavam dizer, nos recebem com um carinho e afecto, que só quem lá foi consegue entender e apreciar ? (Vi e senti lágrimas, recebi abraços longos e quentes, passados 35 anos de separação).

- Quem servia o meu País e desprezava o seu país, deixando mulheres e filhos da outra banda (Kebá de Empada, meu querido amigo, recordo as conversas que tive contigo, sobre as tuas duas mulheres e os teus filhos que optaram pelo outro lado, quanto tu sofrias quando eras atacado! Porque te recusavas a ir comigo para o mato!).

- Quem, debaixo de fogo, avançava de peito aberto para o Inimigo (eu
testemunhei), protegendo-nos (quantos de nós tão acagaçados, que não cabia um feijão no buraquinho) convencidos que era esse o caminho certo para o seu País ?

- Quem vergonhosamente os abandonou, deixando que tantos fossem assassinados pelos seus conterrâneos, só porque estavam do lado errado, quando politicamente correcto Portugal admitiu que não tinha saída, a não ser dar a oportunidade a um povo de construir e seguir o seu próprio destino ?

- Quem a partir desse momento os deixou órfãos de Pátria, obrigando-os a irem procurar a sua pátria que até então lhe garantiam não existir, sem qualquer preocupação de lhe dar o prémio merecido por tudo quanto fizeram em nome e para Portugal ?

- Quem lhe traiu todas as promessas de uma Guiné melhor, com Portugal ?

Sinto vergonha. Estão-me na memória, os Sambá, os Adbulai, os Ussumane, os Amadu, os Aliu, os Braima, os Mamadu, tantos outros, que conheci e com quem convivi sadiamente, que me acompanharam em tantos encontros com o adversário e que merecem ser considerados filhos de Portugal, pelo que fizeram, pelo que sentiam e ainda sentem, pela alegria que expressam quando nos vem chegar.

Quantos deles assassinados por incúria de Portugal, quantos andaram anos fugidos no mato, deixando a família nas mãos dos adversários, quantos ainda não reconstruíram as suas vidas, quantos sofrem o stress de guerra, quantos morreram à fome, quantos passam fome, por falta de trabalho. Não sabiam fazer mais nada a não ser guerra.

Telefonou-me há dias o Quintino Procel, de Empada. Esse conseguiu fazer no meu tempo a 4ª classe e seguiu a carreira de enfermeiro, sendo hoje o enfermeiro-chefe em Canjadude. Quando em 2005 passei por Empada, procurei-o.

Alguém o informou da minha presença e o seu telefonema chegou um ano depois:
- Tissera, tu vai na Guiné e não fala comigo ? Eu na tem casa em Canjadude. Bó na vem e firma lá. Eu fico triste, manga dele, por não ver Tissera. - Foram estas palavras que guardei no coração passados 35 anos.

Creio que ainda há algum tempo para Portugal olhar para esta gente. Não pode desperdiçar esta oportunidade.

Creio que nós, antigos combatentes, ainda podemos fazer algo por eles. No mínimo ir visitá-los(os que puderem), testemunhar-lhes a nossa amizade, tanto quanto eles nos deram a deles. Permitir que sintam e vivam essa alegria de não sentirem que foram esquecidos, por aqueles que, como eles, deram sangue, suor e lágrimas, por uma Pátria que, não sendo actualmente a deles, se deve sentir orgulhosa de os ter tido como filhos, embora de 2ª...

Zé Teixeira
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Notas de L.G.

(1) Vd. post de 28 de Fevereiro de 2006 > Guiné 63/74 - DXCIV: Nhabijões: quando um balanta a menos era um turra a menos

(...) "Há uns anos atrás, nos anos do terror, ser encontrado fora da sua tabanca ou do seu perímetro, de catana na mão ou faca de mato à cintura - que é ronco ou adorno para um balanta que se preze - , eis um belo pretexto para um balanta ser preso, levado para o posto administrativo de Bambadinca, sumarianente interrogado e às vezes, hélàs!, mais sumariamente ainda liquidado.

"A justificação era simples, segundo os meus nharros: "um balanta a menos, era um turra era menos" (sic)… Admito que haja aqui alguma dose de fanfarronice e de exagero, por parte dos fulas, históricos inimigos e vizinhos dos balantas… Mas não há fumo sem fogo: estas histórias parecem-me ter consistência…

"Donde esta hostilidade passiva que julgo poder ler nos olhos e nas atitudes da população de Nhabijões que alimenta a guerrilha, em homens e mantimentos, provavelmente mais por razões de parentesco do que por simpatia para com o PAIGC: ao avistarem-me, fardado, na sua tabanca – a mim, tuga, representante da tropa ocupante - os mais velhos baixam a cabeça ou viram-me as costas como se sentissem acabrunhados com a minha presença… Quem se sente mal, sou eu, que venho invadir-lhes a sua privacidade e perturbar os seus irãs…

"Devia ser esta, aliás, a atitude com que caminhavam para a morte: sem medo mas também sem revolta, com uma estranha dignidade ancestral, a pá e a pica em cada uma das mãos. Sim, por que o método era tão requintado como o dos nazis, a crer na descrição que me fazem alguns dos meus informadores, os mais velhos, como o Abibo, por exemplo – o Abibo, o bom gigante do Abibo, que sofre de epilepsia e tem elefantíase no escroto…

"Ou até senão mais: a própria vítima abria a estreita vala onde devia caber o seu próprio corpo, três palmos abaixo da superfície, e onde ficava deitado… à espera que o carrasco da polícia administrativa (sempre os africanos para as tarefas sujas…) se dignasse dar-lhe o passaporte para a eternidade: um tiro de pistola, uma lata de gasolina, um fósforo…

"Ter-se-á passado assim ? Um frémito de horror passa-me pela espinha acima. Recuso-me a aceitar que isto se tenha passado debaixo da bandeira verde-rubra da minha pátria, com a cumplicidade ou até o envolvimento (activo ou passivo) das tropas portuguesas ou dos representantes das autoridades portuguesas… Faço, ao menos, votos para que estes crimes sejam apenas imputados à odiosa PIDE… Enfim, nunca o saberei… Ou melhor, poderei perguntar-lhes onde era o sítio... O Adibo e outros falam-me do antigo cemitério de Bambadinca, um sinistro local de outrora onde hoje as alfaces crescem, viçosas" (...)…


(2) Vd. post de 6 de Maio de 2006 > Guiné 63/74 - DCCXXX: Ex-comandos africanos, 'órfãos de Pátria', reportagem na RTP 1 (José Martins)

(3) Vd. post de 14 de Março de 2006 > Guiné 63/74 - DCXXVI: O meu diário (Zé Teixeira) (fim): Confesso que vi e vivi