07 maio 2004

Portugas que merecem as nossas palmas - VIII: António Coutinho e o Instituto Gulbenkian de Ciência

1. Tive há dois dias o privilégio de conhecer pessoalmente o Prof. António Coutinho e de ouvir uma conferência sua sobre investigação biomédica e administração de saúde. Local e data: Escola Nacional de Saúde Pública, Universidade Nova de Lisboa, Lisboa, 5 de Maio de 2004.

António Coutinho é director do Instituto Gulbenkian de Ciência e é um dos poucos cientistas portugueses que, à partida, pode dar-se ao luxo de dizer, no seu invejável currículo, que já ultrapassou, há muito, os famigerados 100 artigos publicados em revistas internacionais referenciadas nas bases de dados do Instituto para a Informação Científica (ISI), em Filadélfia, nos EUA. Como se sabe, esta é a bitola (dita, bibliométrica) para que um investigador português no estrangeiro possa candidatar-se a uma bolsa de dois anos e regressar a Portugal.

Pelas contas do jornal Público, de 22 de Abril de 2004, só o imunologista António Coutinho, de 57 anos, e o neurologista António Damásio, de 60, teriam lugar no Olimpo da ciência portuguesa. São já sobejamente conhecidas as críticas da comunidade científica portuguesa a esta medida, ridícula para uns e demagógica para outros.

Em contrapartida, a ministra da Ciência e do Ensino Superior, Maria da Graça Carvalho, diz que está "convencida de que há cerca de 100 cientistas em Portugal com mais de 100 artigos", em entrevista ao Público, de 22 de Abril de 2004.

Segundo notícia do Público, também de 22 de Abril de 2004, Pedro Magalhães, professor de ciências políticas do Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa (ICS/UL), começou por pesquisar alguns nomes nas bases de dados do Instituto para a Informação Científica (ISI Web of Knowledge), uma referência a nível mundial no que respeita à informação sobre a literatura científica. Verificou-se que "vários investigadores, incluindo premiados com o Nobel da Economia, não seriam contemplados com os critérios portugueses".

2. Retive algumas ideias-chaves da intervenção de António Coutinho sobre o papel da ciência numa sociedade moderna, que não sendo originais não deixam de ser muito actuais e relevantes para o debate sobre o nosso sistema de gestão da investigação científica: (i) não há democracia sem ciência; (ii) a ciência é a base em que deve assentar o desenvolvimento económico e social; (iii) é a fonte (essencial) da racionalidade; mas também é (iv) a escola da tolerância, a garantia do pluralismo teórico-ideológico, a matriz em que se produz e reproduz a cultura da pós-modernidade...

3. Achei interessante (ou saudavelmente provocatória ?) a ideia de que só se faz ciência enquanto se é jovem, que há uma idade (entre os 25 e os 45 anos) para se ser investigador... A revolução que o Prof. António Coutinho operou no Instituto Gulbenkian de Ciência (e da qual, de resto, sei pouco) vai nesse sentido: "Não quero que os jovens investigadores façam carreira no Instituto, dou-lhes apenas as condições para arrancarem com os seus projectos, criarem equipas, tornarem-se líderes e prepararem-se para outros voos, cá dentro ou no estrangeiro" (cito de cor). Não é esse, de resto, o entendimento do Prof. António Coutinho para quem nem sequer ainda chegámos à Biologia dos Sistemas...

4. Achei estimulante (e muito próprio de um fundamentalista, no sentido literal, biológico e francês do termo) aquela outra ideia de que a medicina ainda é uma tecnologia de base empírica, não científica, baseada na evidência, malgré les progrès de la biomedicine... É caso para se dizer que o novo paradigma biomédico, não sendo organicista, não deixa de ser menos redutor e imperialista ? Ou que durante às próximas décadas tudo vai ser explicado pelo determinismo genético ?

No futuro, daqui a cinco a dez anos, “a terapêutica vai ser mais biológica do que farmacológica” (sic) e o “velho patologista” pode arrumar o seu microscópio e desaparecer de cena... Estamos a falar de um número potencial de 30 a 40 mil doenças genéticas, tantos quanto os genes do genoma humano até agora descobertos... Mas o que é que isso representa em relação ao total das doenças humanas ? Qual o seu peso em termos de saúde pública ? “Menos de 1%” (sic)...

A verdade seja dita: "a doença pode ter uma base genética, mas não é só genética, é epigenética , logo multifactorial" (cito de cor)... Todas as doenças têm uma base genética, da depressão à simples gripe...Em maior ou menor grau... “Mesmo as doenças infecciosas... e até as intoxicações!” (sic)... Tão elementar , quanto isso, meu caro Watson, James Watson, um dos pais do DNA, com Francis Crick, em 1953 (co-laureados com o Prémio Nobel da Medicina em 1962).

5. Ninguém hoje se atreveria a negar ou a pôr em causa a revolução (silenciosa, primeiro; triunfante, depois) da genética nestes últimos 50 anos... As suas implicações para a saúde pública, para a protecção e a promoção da saúde para a investigação em saúde, para a formação dos profissionais de saúde ou para a prática da medicina também não são difíceis de advinhar: vamos passar, muito rapidamente, do diagnóstico e tratamento para a predição/prevenção: (i) mudança (mais fácil) de “estilo de vida”; (ii) mudança (mais difícil) no ambiente onde a gente nasce, respira, cresce, vive, trabalha , dorme, consome, descansa, adoece, envelhece e morre; (iii) terapia profiláctica...

Fica em aberto a (difícil, terrível) questão da equidade: a “medical genomics” chegou, viu e venceu, mas não é para todos... Os testes genéticos são “cost-effective”, mas quem, fora do mundo ocidental (mais Japão + outros tigres asiáticos...), terá acesso a esta nova tecnologia ? Pelo menos, para já ?

6. Falou-se também, entre outras coisas, da porno-science, da clonagem e da pretensão dos guardiões do templo que querem legislar em matéria de bioética... Mas que sei eu de biologia molecular ou de biologia evolutiva para discutir com os teólogos e os filósofos ? Retive também uma informação do Prof. António Coutinho: (i) "seriam precisas dois milhões de mulheres, voluntárias, para clonar um Hitler"; (ii) "clonagem já fazemos desde que inventámos a agricultura"... Curiosamente não falámos, por falta de tempo, da biodiversidade nem da agricultura transgénica...

7. Retemperarei o meu entusiasmo sobre o admirável mundo novo da Biologia Molecular e da Engenharia Genética com as eruditas e elegantes observações que o Prof. João Lobo Antunes fez, há uns anos atrás, numa oração de sapiência que já é hoje de antologia:

"Mas esta nova Biologia, a Biologia Molecular, que dá alma a que Lewis Thomas chamou a mais nova das ciências, a Medicina, brotou também do encontro da Física e da Química, que lhe cederam os conceitos e os instrumentos de investigação, a cromatografia, os radioisótopos, a microscopia electrónica, a cristalografia, provavelmente pela sedução que o último mistério da ciência, o segredo da vida, sempre exerce. Niels Bohr, por exemplo, dizia que a Biologia era fonte inesgotável de novas leis da Física à espera de serem descobertas. E vieram o ADN, a dupla hélice, a decifração do código genético, a transferência dos genes, em suma, a integração dos mundos das ciências básica e clínica, criando dois imperativos fundamentais para a educação dos jovens médicos. O primeiro é a necessidade de incorporar novos conceitos e nova linguagem; o outro é igualmente importante embora talvez menos evidente. É a que a Biologia Molecular, na sua acção unificadora, cria necessariamente, como disse François Jacob, "um modo diferente de olhar as coisas, que leva à descoberta de novas relações entre os fenómenos e portanto à mudança da ordem existente". Se deixarmos por isso que o ensino médico se isole deste novo saber, poderemos formar artesãos ou técnicos, mas não os médicos de que a Nação precisa".

8. Tinham-me dito, alguns dos meus amigos médicos, que o Prof. António Coutinho, beirão também ele como outro António, o Ribeiro Sanches (n. Penamacor, 1699-m. Paris, 1783), era arrogante, como qualquer bom portuga estrangeirado. Mentira, achei-o encantador, aberto, culto, humilde, um verdadeiro homem de ciência e seguramente um homem com um perfil de grande líder e gestor... Claro, crítico, e com um fino sentido de humor... E tem motivos para orgulho quando fala do seu Instituto Gulbenkian de Ciência, o qual já fabricou uma centena de doutorados em biomedicina, e que agora precisa, como pão para a boca, é de bio-informáticos... "Se for preciso, acaba-se a fileira dos doutoramentos em biomedicina e abre-se a da bio-informática" (cito de cor)...

O seu orgulho parece-me inteiramente justo quando se sabe que, com um orçamento de 8 milhões de euros, menos de 1% do orçamento da investigação científica em Portugal, O IGC produz um terço da investigação na área da saúde... E não é um terço qualquer, é um terço de excelência! Espero não me enganar, nem estar a fazer mal as contas: não sei exactamente qual é o orçamento da ciência em Portugal mas não ultrapassa os 0.75% do PIB, ou seja, deverá ser qualquer coisa como mil milhões de euros (200 milhões de contos em moeda antiga).

Por tudo isto, António Coutinho e o Instituto Gulbenkian de Ciência merecem as minhas palmas. As nossas palmas. (...Embora seguramente não precisem delas!)


Post scriptum:

(i) É bom recordar que "fabricar doutorados não é igual a criar cientistas, cuja vocação tem de ser primeiro despertada, depois alimentada, multiplicada e, o que também não é comum entre nós, devidamente apreciada" (J. Lobo Antunes dixit).

(ii) No dia seguinte à publicação este post, deparei com uma excelente reportagem do Público (edição de 7 de Maio de 2004), assinada pela Clara Barata e pela Joana Gorjão Henriques, sobre o "ninho de formação de líderes cieníficos" que é hoje o Instituto Gulbenkian de Ciência (IGC), sob a liderança do Prof. António Coutinho. Juro que só tive conhecimento deste texto, no sábado de manhã, dia 8. Trata-se, por isso, de uma feliz coincidência.

Para um país distraído, com tendência para a descrença, o pessimismo, o fatalismo e a depressão, é imprescindível e salutar ler mais esta história de sucesso no país de Abril. Não se pense, todavia, que o ICG é um oásis num deserto, e cheia de estrangeirados. Helena Soares, por exemplo, 41 anos, prestigiada investigadora, responsável pelo grupo de Stress e Dinâmica do Citoesqueleto, nunca quis sair de Portugal por razões pessoais, e diz à jornalista que "já não há uma diferença tão grande em relação ao exterior" embora o "meio científico ainda [seja] pequeno".

Parabéns também ao Público por esta notável série de reportagens ("30 anos do 25 de Abril: histórias de um país de sucesso").

Portugas que merecem as nossas palmas - VIII: António Coutinho e o Instituto Gulbenkian de Ciência

1. Tive há dois dias o privilégio de conhecer pessoalmente o Prof. António Coutinho e de ouvir uma conferência sua sobre investigação biomédica e administração de saúde. Local e data: Escola Nacional de Saúde Pública, Universidade Nova de Lisboa, Lisboa, 5 de Maio de 2004.

António Coutinho é director do Instituto Gulbenkian de Ciência e é um dos poucos cientistas portugueses que, à partida, pode dar-se ao luxo de dizer, no seu invejável currículo, que já ultrapassou, há muito, os famigerados 100 artigos publicados em revistas internacionais referenciadas nas bases de dados do Instituto para a Informação Científica (ISI), em Filadélfia, nos EUA. Como se sabe, esta é a bitola (dita, bibliométrica) para que um investigador português no estrangeiro possa candidatar-se a uma bolsa de dois anos e regressar a Portugal.

Pelas contas do jornal Público, de 22 de Abril de 2004, só o imunologista António Coutinho, de 57 anos, e o neurologista António Damásio, de 60, teriam lugar no Olimpo da ciência portuguesa. São já sobejamente conhecidas as críticas da comunidade científica portuguesa a esta medida, ridícula para uns e demagógica para outros.

Em contrapartida, a ministra da Ciência e do Ensino Superior, Maria da Graça Carvalho, diz que está "convencida de que há cerca de 100 cientistas em Portugal com mais de 100 artigos", em entrevista ao Público, de 22 de Abril de 2004.

Segundo notícia do Público, também de 22 de Abril de 2004, Pedro Magalhães, professor de ciências políticas do Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa (ICS/UL), começou por pesquisar alguns nomes nas bases de dados do Instituto para a Informação Científica (ISI Web of Knowledge), uma referência a nível mundial no que respeita à informação sobre a literatura científica. Verificou-se que "vários investigadores, incluindo premiados com o Nobel da Economia, não seriam contemplados com os critérios portugueses".

2. Retive algumas ideias-chaves da intervenção de António Coutinho sobre o papel da ciência numa sociedade moderna, que não sendo originais não deixam de ser muito actuais e relevantes para o debate sobre o nosso sistema de gestão da investigação científica: (i) não há democracia sem ciência; (ii) a ciência é a base em que deve assentar o desenvolvimento económico e social; (iii) é a fonte (essencial) da racionalidade; mas também é (iv) a escola da tolerância, a garantia do pluralismo teórico-ideológico, a matriz em que se produz e reproduz a cultura da pós-modernidade...

3. Achei interessante (ou saudavelmente provocatória ?) a ideia de que só se faz ciência enquanto se é jovem, que há uma idade (entre os 25 e os 45 anos) para se ser investigador... A revolução que o Prof. António Coutinho operou no Instituto Gulbenkian de Ciência (e da qual, de resto, sei pouco) vai nesse sentido: "Não quero que os jovens investigadores façam carreira no Instituto, dou-lhes apenas as condições para arrancarem com os seus projectos, criarem equipas, tornarem-se líderes e prepararem-se para outros voos, cá dentro ou no estrangeiro" (cito de cor). Não é esse, de resto, o entendimento do Prof. António Coutinho para quem nem sequer ainda chegámos à Biologia dos Sistemas...

4. Achei estimulante (e muito próprio de um fundamentalista, no sentido literal, biológico e francês do termo) aquela outra ideia de que a medicina ainda é uma tecnologia de base empírica, não científica, baseada na evidência, malgré les progrès de la biomedicine... É caso para se dizer que o novo paradigma biomédico, não sendo organicista, não deixa de ser menos redutor e imperialista ? Ou que durante às próximas décadas tudo vai ser explicado pelo determinismo genético ?

No futuro, daqui a cinco a dez anos, “a terapêutica vai ser mais biológica do que farmacológica” (sic) e o “velho patologista” pode arrumar o seu microscópio e desaparecer de cena... Estamos a falar de um número potencial de 30 a 40 mil doenças genéticas, tantos quanto os genes do genoma humano até agora descobertos... Mas o que é que isso representa em relação ao total das doenças humanas ? Qual o seu peso em termos de saúde pública ? “Menos de 1%” (sic)...

A verdade seja dita: "a doença pode ter uma base genética, mas não é só genética, é epigenética , logo multifactorial" (cito de cor)... Todas as doenças têm uma base genética, da depressão à simples gripe...Em maior ou menor grau... “Mesmo as doenças infecciosas... e até as intoxicações!” (sic)... Tão elementar , quanto isso, meu caro Watson, James Watson, um dos pais do DNA, com Francis Crick, em 1953 (co-laureados com o Prémio Nobel da Medicina em 1962).

5. Ninguém hoje se atreveria a negar ou a pôr em causa a revolução (silenciosa, primeiro; triunfante, depois) da genética nestes últimos 50 anos... As suas implicações para a saúde pública, para a protecção e a promoção da saúde para a investigação em saúde, para a formação dos profissionais de saúde ou para a prática da medicina também não são difíceis de advinhar: vamos passar, muito rapidamente, do diagnóstico e tratamento para a predição/prevenção: (i) mudança (mais fácil) de “estilo de vida”; (ii) mudança (mais difícil) no ambiente onde a gente nasce, respira, cresce, vive, trabalha , dorme, consome, descansa, adoece, envelhece e morre; (iii) terapia profiláctica...

Fica em aberto a (difícil, terrível) questão da equidade: a “medical genomics” chegou, viu e venceu, mas não é para todos... Os testes genéticos são “cost-effective”, mas quem, fora do mundo ocidental (mais Japão + outros tigres asiáticos...), terá acesso a esta nova tecnologia ? Pelo menos, para já ?

6. Falou-se também, entre outras coisas, da porno-science, da clonagem e da pretensão dos guardiões do templo que querem legislar em matéria de bioética... Mas que sei eu de biologia molecular ou de biologia evolutiva para discutir com os teólogos e os filósofos ? Retive também uma informação do Prof. António Coutinho: (i) "seriam precisas dois milhões de mulheres, voluntárias, para clonar um Hitler"; (ii) "clonagem já fazemos desde que inventámos a agricultura"... Curiosamente não falámos, por falta de tempo, da biodiversidade nem da agricultura transgénica...

7. Retemperarei o meu entusiasmo sobre o admirável mundo novo da Biologia Molecular e da Engenharia Genética com as eruditas e elegantes observações que o Prof. João Lobo Antunes fez, há uns anos atrás, numa oração de sapiência que já é hoje de antologia:

"Mas esta nova Biologia, a Biologia Molecular, que dá alma a que Lewis Thomas chamou a mais nova das ciências, a Medicina, brotou também do encontro da Física e da Química, que lhe cederam os conceitos e os instrumentos de investigação, a cromatografia, os radioisótopos, a microscopia electrónica, a cristalografia, provavelmente pela sedução que o último mistério da ciência, o segredo da vida, sempre exerce. Niels Bohr, por exemplo, dizia que a Biologia era fonte inesgotável de novas leis da Física à espera de serem descobertas. E vieram o ADN, a dupla hélice, a decifração do código genético, a transferência dos genes, em suma, a integração dos mundos das ciências básica e clínica, criando dois imperativos fundamentais para a educação dos jovens médicos. O primeiro é a necessidade de incorporar novos conceitos e nova linguagem; o outro é igualmente importante embora talvez menos evidente. É a que a Biologia Molecular, na sua acção unificadora, cria necessariamente, como disse François Jacob, "um modo diferente de olhar as coisas, que leva à descoberta de novas relações entre os fenómenos e portanto à mudança da ordem existente". Se deixarmos por isso que o ensino médico se isole deste novo saber, poderemos formar artesãos ou técnicos, mas não os médicos de que a Nação precisa".

8. Tinham-me dito, alguns dos meus amigos médicos, que o Prof. António Coutinho, beirão também ele como outro António, o Ribeiro Sanches (n. Penamacor, 1699-m. Paris, 1783), era arrogante, como qualquer bom portuga estrangeirado. Mentira, achei-o encantador, aberto, culto, humilde, um verdadeiro homem de ciência e seguramente um homem com um perfil de grande líder e gestor... Claro, crítico, e com um fino sentido de humor... E tem motivos para orgulho quando fala do seu Instituto Gulbenkian de Ciência, o qual já fabricou uma centena de doutorados em biomedicina, e que agora precisa, como pão para a boca, é de bio-informáticos... "Se for preciso, acaba-se a fileira dos doutoramentos em biomedicina e abre-se a da bio-informática" (cito de cor)...

O seu orgulho parece-me inteiramente justo quando se sabe que, com um orçamento de 8 milhões de euros, menos de 1% do orçamento da investigação científica em Portugal, O IGC produz um terço da investigação na área da saúde... E não é um terço qualquer, é um terço de excelência! Espero não me enganar, nem estar a fazer mal as contas: não sei exactamente qual é o orçamento da ciência em Portugal mas não ultrapassa os 0.75% do PIB, ou seja, deverá ser qualquer coisa como mil milhões de euros (200 milhões de contos em moeda antiga).

Por tudo isto, António Coutinho e o Instituto Gulbenkian de Ciência merecem as minhas palmas. As nossas palmas. (...Embora seguramente não precisem delas!)


Post scriptum:

(i) É bom recordar que "fabricar doutorados não é igual a criar cientistas, cuja vocação tem de ser primeiro despertada, depois alimentada, multiplicada e, o que também não é comum entre nós, devidamente apreciada" (J. Lobo Antunes dixit).

(ii) No dia seguinte à publicação este post, deparei com uma excelente reportagem do Público (edição de 7 de Maio de 2004), assinada pela Clara Barata e pela Joana Gorjão Henriques, sobre o "ninho de formação de líderes cieníficos" que é hoje o Instituto Gulbenkian de Ciência (IGC), sob a liderança do Prof. António Coutinho. Juro que só tive conhecimento deste texto, no sábado de manhã, dia 8. Trata-se, por isso, de uma feliz coincidência.

Para um país distraído, com tendência para a descrença, o pessimismo, o fatalismo e a depressão, é imprescindível e salutar ler mais esta história de sucesso no país de Abril. Não se pense, todavia, que o ICG é um oásis num deserto, e cheia de estrangeirados. Helena Soares, por exemplo, 41 anos, prestigiada investigadora, responsável pelo grupo de Stress e Dinâmica do Citoesqueleto, nunca quis sair de Portugal por razões pessoais, e diz à jornalista que "já não há uma diferença tão grande em relação ao exterior" embora o "meio científico ainda [seja] pequeno".

Parabéns também ao Público por esta notável série de reportagens ("30 anos do 25 de Abril: histórias de um país de sucesso").

06 maio 2004

Blogantologia(s) - X: O poemombro

Um ombro amigo



Às vezes a gente pensa

que o mundo vai desabar.

Às vezes a gente julga

que o céu vai cair

em cima das nossas cabeças.



Às vezes a gente deixa de ver.

E de sentir. E até de pensar.

Às vezes a gente vê que não há luz.

Que estamos num túnel.

Que não há luz ao fundo do túnel.

Que há alguém que te diz:

É o fim! Acabou-se!

É bom que esqueças,

Parte para outra!



Às vezes a gente tem dúvidas.

E pergunta se vale a pena.

Se valeu a pena.

Às vezes a gente até duvida

do amor e da amizade

dos que nos amam e gostam de nós.

Às vezes a coisa parece que está feia.

Às vezes parece que tudo é feio.

Que a coisa está preta e feia.

A vida, o país, o mundo à nossa volta.

Os outros. O marido ou a mulher. Os filhos

Os amigos, os colegas de trabalho.



Às vezes dá-te uma enorme vontade de chorar.

E de parar no caminho.

E de chorar numa pedra do caminho.

Às vezes a gente quer desistir de caminhar.

A gente sente que lhe faltam as forças.

E que já que foi longe de mais.

Que não nascemos para caminhantes.

Que já fizemos a nossa parte.

Que já cumprimos o nosso papel.

Que as pernas estão cansadas.

As pernas. O corpo. A alma.

Que andamos a caminhar há muito tempo.

Que já demos a volta ao mundo

não sei quantas vezes.



Às vezes a gente apercebe-se

Que tem uma enorme vontade de chorar.

Mas que não tem lágrimas para o fazer.

Não tem sequer forças para o fazer.



E é então que nos dá uma raiva danada.

Telúrica. Fulminante. Brutal.

Uma raiva de vulcão.

E descobrimos o terrível vulcão que há em nós.

E a gente, de repente,

dá de novo à chave de ignição.

E retoma o caminho.



Querid@ amig@:

Eu sei que não podemos competir com os vulcões.

Que só explodem de mil em mil anos.

Ou de cem mil em cem mil, tanto faz.

E que são uma força bruta da natureza.

Brutal. Fulminante. Telúrica.

Mas temos o direito de explodir.

De dizer o que nos vai na alma.

Temos o direito ao nosso vulcão.

Tu tens direito ao teu vulcão.

Tens direito mesmo ao teu vulcãozinho.

O direito de mostrar o que te dói

no corpo e na alma.

De chorar. De chorar de raiva.



A única diferença, além da escala de tempo,

é que os vulcões não têm uma ombro amigo.

Para chorar.

Para encostar a cabeça e chorar.

No dia dos teus anos, como hoje,

Ou em qualquer outro dia da semana.

Em qualquer outro dia do ano.

Sempre que te apetecer.

Sempre que te der raiva de chorar.



Se @s amig@s têm algum préstimo

É justamente para saber ouvir.

Ouvir, escutar, entender

Mais do que falar, analisar ou compreender.

Para estar contigo.

Simplesmente para estar ao pé de ti.

Ou para te segredar ao ouvido

Qualquer coisa que te faça sorrir.

Ao ouvido, baixinho.

E sobretudo para te oferecer

o ombro amigo.

Pode até ter pouco préstimo

Mas sempre é mais macio e quente

Do que a pedra do caminho.



L.G.



Lisboa, 29 de Abril de 2004



PS - Um (pre)texto que serviu de prenda de aniversário para uma amiga, a Matilde, que fazia anos neste dia e que estava a precisar de um ombro amigo. Do nosso ombro amigo. LG/AC



Blogantologia(s) - X: O poemombro

Um ombro amigo

Às vezes a gente pensa
que o mundo vai desabar.
Às vezes a gente julga
que o céu vai cair
em cima das nossas cabeças.

Às vezes a gente deixa de ver.
E de sentir. E até de pensar.
Às vezes a gente vê que não há luz.
Que estamos num túnel.
Que não há luz ao fundo do túnel.
Que há alguém que te diz:
É o fim! Acabou-se!
É bom que esqueças,
Parte para outra!

Às vezes a gente tem dúvidas.
E pergunta se vale a pena.
Se valeu a pena.
Às vezes a gente até duvida
do amor e da amizade
dos que nos amam e gostam de nós.
Às vezes a coisa parece que está feia.
Às vezes parece que tudo é feio.
Que a coisa está preta e feia.
A vida, o país, o mundo à nossa volta.
Os outros. O marido ou a mulher. Os filhos
Os amigos, os colegas de trabalho.

Às vezes dá-te uma enorme vontade de chorar.
E de parar no caminho.
E de chorar numa pedra do caminho.
Às vezes a gente quer desistir de caminhar.
A gente sente que lhe faltam as forças.
E que já que foi longe de mais.
Que não nascemos para caminhantes.
Que já fizemos a nossa parte.
Que já cumprimos o nosso papel.
Que as pernas estão cansadas.
As pernas. O corpo. A alma.
Que andamos a caminhar há muito tempo.
Que já demos a volta ao mundo
não sei quantas vezes.

Às vezes a gente apercebe-se
Que tem uma enorme vontade de chorar.
Mas que não tem lágrimas para o fazer.
Não tem sequer forças para o fazer.

E é então que nos dá uma raiva danada.
Telúrica. Fulminante. Brutal.
Uma raiva de vulcão.
E descobrimos o terrível vulcão que há em nós.
E a gente, de repente,
dá de novo à chave de ignição.
E retoma o caminho.

Querid@ amig@:
Eu sei que não podemos competir com os vulcões.
Que só explodem de mil em mil anos.
Ou de cem mil em cem mil, tanto faz.
E que são uma força bruta da natureza.
Brutal. Fulminante. Telúrica.
Mas temos o direito de explodir.
De dizer o que nos vai na alma.
Temos o direito ao nosso vulcão.
Tu tens direito ao teu vulcão.
Tens direito mesmo ao teu vulcãozinho.
O direito de mostrar o que te dói
no corpo e na alma.
De chorar. De chorar de raiva.

A única diferença, além da escala de tempo,
é que os vulcões não têm uma ombro amigo.
Para chorar.
Para encostar a cabeça e chorar.
No dia dos teus anos, como hoje,
Ou em qualquer outro dia da semana.
Em qualquer outro dia do ano.
Sempre que te apetecer.
Sempre que te der raiva de chorar.

Se @s amig@s têm algum préstimo
É justamente para saber ouvir.
Ouvir, escutar, entender
Mais do que falar, analisar ou compreender.
Para estar contigo.
Simplesmente para estar ao pé de ti.
Ou para te segredar ao ouvido
Qualquer coisa que te faça sorrir.
Ao ouvido, baixinho.
E sobretudo para te oferecer
o ombro amigo.
Pode até ter pouco préstimo
Mas sempre é mais macio e quente
Do que a pedra do caminho.

L.G.

Lisboa, 29 de Abril de 2004

PS - Um (pre)texto que serviu de prenda de aniversário para uma amiga, a Matilde, que fazia anos neste dia e que estava a precisar de um ombro amigo. Do nosso ombro amigo. LG/AC