23 dezembro 2004

Blogantologia(s) - XXII: Saldo(s) para o ano de 2005

A todos os homens e mulheres (i) que cabem na minha lista de e-mails ou (ii) que a transbordam ou (iii) que circulam, a desoras e sem rumo, na blogosfera, (iv) quer façam ou não o favor de serem meus amigos: deixem-me desejar-vos o melhor da vida para o Novo Ano que, dizem, aí vem!!!



L.G.





Car@s amig@s planetári@s:



1. Eis-nos chegad@s

Ao fim do ano de dois mil e quatro,

E digo fim

Porque é já inverno

E faz frio

E porque acabei de arrancar

A última folha amarelada do calendário.

E digo fim para não praguejar

E para não ir parar com os quatro costados

Ao inferno.



Dizemos fim do ano

Por mera convenção ou conveniência.

Ou se calhar,

Por tristeza ou desfastio,

Cansaço, saturação, impaciência.

Depressão, dirá muita boa gente.

Ou só por que nos deu na real veneta;

Em suma, dizemos fim

Sem qualquer razão aparente.



Na prática não chegámos ao fim,

Não chegámos a parte nenhuma,

A pé, de carro, de barco ou de dromedário,

À boleia, a nado ou até de parapente,

Que o chegar é sempre a um algum sítio,

Lugar, porto, ilha, montanha de bruma,

País, continente, planeta,

Ou pico do Evereste.

E chegar ao fim

É sempre sinónimo de festa.



Não arribámos a nenhum porto

Ou outro ponto imaginário

Do globo terrestre;

Não fomos pioneiros,

Não descobrimos a misteriosa citânia

Da nossa proto-história lusitana

Nem sequer a porta do risonho futuro

Que há-de vir;

É tudo treta,

Não fomos os primeiros

Nem sequer os últimos

A cortar a meta;

Não fomos notícia,

Nem mesmo em Alcácer Quibir;

Não estávamos entre os anónimos mineiros

Soterrados na China e na Ucrânia;

Não houve festa, nem luto, nem bomba atómica,

Não houve alvoroço, nem foguetes,

Nem estátua equestre,

Nem sequer a banda trágico-cómica

Dos bombeiros voluntários

Do Emir Kusturica.

À nossa espera

Ou no nosso enterro.



Vendo bem,

Não fizemos nada de heróico,

Não salvámos a humanidade,

Não fizemos a guerra,

Não lutámos contra os canhões,

Não assinámos a paz,

Nem sequer levámos a carta a Garcia.

Enfim, não ganhámos nenhum prémio,

Nem sequer o Nobel, nem a lotaria,

Muito menos o Euromilhões;

Em resumo, dizem-nos que,

No ano da graça do senhor

De dois e mil e quatro,

Tu e eu, nós todos,

Nada temos de concreto

Para celebrar.



Mas chegados ao fim do ano,

É costume fazer-se o balanço,

Se não da viagem,

Pelo menos do deve-e-haver

Das nossas vidas,

Da carga preciosa que transportamos connosco,

Que é a vida e o dever de a viver.

Que é o fogo da vida

E a obrigação de o alimentarmos,

O pequeno milagre

Ou o simples facto

De estarmos vivos,

De ainda estarmos vivos

E de estarmos juntos.





2. Façamos, pois, o balanço,

Meus amigos,

O deve-e-haver deste ano

De dois mil e quatro,

Que se calhar foi um annus horribilis

Como os anteriores,

Para a maior parte dos homens e mulheres,

Noss@s vizinh@s planetári@s.

Que a vinte e três de dezembro,

O horóscopo da humanidade

Não está em condições de prever

Terramotos, catástrofes, pestes, tsunamis,

O cortejo dos horrores

Que costumam acompanhar os cavaleiros do Apocalipse.



Façamos o balanço das nossas vidas

Como pessoas, como grupos,

Como instituições, como países.

Siga-se, nesta matéria, a tradição,

Que a tradição ainda manda,

E com isso não vai grande mal ao mundo

(Se querem saber a minha opinião).





3. Como sempre, houve coisas boas

E coisas más

Ao longo do ano que agora finda.

Releguemos as más para os historiadores.

Ou para o nosso confessor, psiquiatra ou confidente.

Ou para o diário secreto de Narciso.

Em boa verdade, as coisas más vão ao fundo,

Não flutuam como os corpos,

São, por definição, para esquecer.

- Dorme, que foi um sonho mau!,

Diziam-te em criança.

Criança sem juízo,

Sem dente do siso.



Abramos, pois, os nossos corações

Para falar ou dar testemunho

Das coisas boas que nos aconteceram.

Que a hora é de desafivelar as máscaras

Dos actores que também somos.

Maus, canastrões,

Mas que importa, se o palco é tudo!



Falemos dos acontecimentos

De que fomos protagonistas.

Pequenos, sem dúvida,

À nossa escala, à escala humana,

Mas importantes,

Para nós, a nossa família, os nossos amigos,

As empresas ou organizações onde trabalhamos,

As pessoas que confiaram em nós,

Que apostaram e acreditaram em nós.



Falemos das situações de que fomos

Actores de verdade, actores de facto.

Independentemente do nosso papel,

E do tamanho do nosso papel.

Ou do número de graus de liberdade

A que temos direito

Ou que fazem parte do nosso contrato.

Que o importante foi ser actor

E não mero figurante.



Falemos dos projectos

De que fomos gestores

Ou simples trabalhadores

De equipa.

Falemos dos conhecimentos novos

Que tivemos o privilégio

De produzir, obter ou divulgar

Através do nosso trabalho, estudo ou formação.

Dos livros que lemos ou escrevemos

Ou que comprámos para ler mais tarde,

”Quando formos velhinh@s

E tivermos todo o tempo do mundo”

(Oh, doce ilusão!).



Não nos esqueçamos de evocar

As pessoas fantásticas que conhecemos.

Mas também os filmes de última hora

Que perdemos no trânsito da vida.

Ou as estórias que não ouvimos ou não lemos,

Por falta de paciência ou de audiência

Ou de simples lugar de estacionamento

No hall congestionado do planeta azul.



Falemos das oportunidades que tivemos

De fazer coisas novas,

Inovadoras, ou simplesmente úteis,

Para nós, para os outros, para o nosso país.

E que não desperdiçámos.

Ajudando o mundo a tornar-se

Mais amigável

Ou, pelo menos, mais habitável.



Falemos das pequenas coisas boas

Que nos aconteceram,

Não por mero acaso,

Mas porque as merecemos,

(Sem falsa modéstia!),

Porque lutámos por elas,

Porque outros nos ajudaram a conseguí-las

Porque juntos conseguimo-las.



Falemos ainda do nosso crescimento interior:

Se estamos mais sábios, mais atentos,

Mais conscientes da água que corre nos nossos rios

Ou do HIV/SIDA que nos está matando,

É porque crescemos por dentro.



Mas sejamos capazes também de falar

Das brincadeiras ou partidas

(Não das sacanices!)

Que fizemos uns aos outros.

Que o brincar não é proibido,

Ou não deveria sê-lo,

Que o brincar devia mesmo ser obrigatório

Na escolinha da vida

E nos locais de trabalho

Onde, já crescidos, a ganhamos.



Falemos dos e-mails que trocámos

E que encheram as nossas caixas de correio.

Das anedotas que contámos.

Até das de mau gosto,

Xenófobas, racistas e sexistas.



Falemos do pão, do queijo e do vinho

Que partilhámos com alguém,

Ao fim da tarde,

Não importa onde,

No Alentejo, em Angola, ou no Minho,

Em qualquer parte onde

Temos im amigo, um parceiro, um compincha.

Que o companheiro (do latim cum + pane) é

Justamente aquele que compartilha connosco

O pão e o vinho à mesma mesa.



Sim, falemos das emoções

Que pusemos em cima da mesa.

Ou da ausência delas.

Da paz que conseguimos, em certas ocasiões,

Estabelecer connosco e com os outros.

Sim, falemos da paz:

Nada como um minuto de paz

Ao fim do dia, no fim do ano.

Um minuto, uma hora,

Mesmo se o fim do ano é uma treta

Do calendário gregoriano.



Falemos, por isso, e já agora

D@s velh@s amig@s que voltámos a encontrar.

Em vaigem,

Num terminal de aeroporto,

Numa esquina de rua congestionada,

Num bar triste de uma cidade

Em que estávamos de passagem.



Falemos d@s nov@s amig@s que fizemos.

Sem esquecer @s querid@s amig@s

Que perdemos, assim sem mais nada,

Por razões de vida ou de morte,

Ou de que perdemos simplesmente o norte,

O telefone, o fax, o endereço, o e-mail, a morada.



4. É a pensar em vocês tod@s

Com quem trabalhei, interagi, vivi, falei,

Discuti, barafustei,

E, se calhar, até magoei e decepcionei,

Durante o ano de dois mil e quatro,

É a pensar em tod@s vós,

Que eu peço ao Pai Natal

(Que eu ainda acredito nele,

Seja isso idiota ou infantil,

Muito pouco ou nada racional!)

Para pôr no vosso sapatinho

Esta singela mensagem:

“Que a nossa amizade seja…

O saldo contabilístico, positivo,

Que transita para o ano de dois mil e cinco”.



Estou-vos obrigado,

A todos vós,

Pela parte de mérito que vos coube

Nas pequenas coisas boas

Que me aconteceram, nos aconteceram,

Em dois mil e quatro.

Resta-me pedir-vos, sensibilizado:

"A mim, desculpem-me lá qualquer coisinha!"...



L.G.



Lisboa, 23 de Dezembro de 2004

Blogantologia(s) - XXII: Saldo(s) para o ano de 2005

A todos os homens e mulheres (i) que cabem na minha lista de e-mails ou (ii) que a transbordam ou (iii) que circulam, a desoras e sem rumo, na blogosfera, (iv) quer façam ou não o favor de serem meus amigos: deixem-me desejar-vos o melhor da vida para o Novo Ano que, dizem, aí vem!!!

L.G.


Car@s amig@s planetári@s:

1. Eis-nos chegad@s
Ao fim do ano de dois mil e quatro,
E digo fim
Porque é já inverno
E faz frio
E porque acabei de arrancar
A última folha amarelada do calendário.
E digo fim para não praguejar
E para não ir parar com os quatro costados
Ao inferno.

Dizemos fim do ano
Por mera convenção ou conveniência.
Ou se calhar,
Por tristeza ou desfastio,
Cansaço, saturação, impaciência.
Depressão, dirá muita boa gente.
Ou só por que nos deu na real veneta;
Em suma, dizemos fim
Sem qualquer razão aparente.

Na prática não chegámos ao fim,
Não chegámos a parte nenhuma,
A pé, de carro, de barco ou de dromedário,
À boleia, a nado ou até de parapente,
Que o chegar é sempre a um algum sítio,
Lugar, porto, ilha, montanha de bruma,
País, continente, planeta,
Ou pico do Evereste.
E chegar ao fim
É sempre sinónimo de festa.

Não arribámos a nenhum porto
Ou outro ponto imaginário
Do globo terrestre;
Não fomos pioneiros,
Não descobrimos a misteriosa citânia
Da nossa proto-história lusitana
Nem sequer a porta do risonho futuro
Que há-de vir;
É tudo treta,
Não fomos os primeiros
Nem sequer os últimos
A cortar a meta;
Não fomos notícia,
Nem mesmo em Alcácer Quibir;
Não estávamos entre os anónimos mineiros
Soterrados na China e na Ucrânia;
Não houve festa, nem luto, nem bomba atómica,
Não houve alvoroço, nem foguetes,
Nem estátua equestre,
Nem sequer a banda trágico-cómica
Dos bombeiros voluntários
Do Emir Kusturica.
À nossa espera
Ou no nosso enterro.

Vendo bem,
Não fizemos nada de heróico,
Não salvámos a humanidade,
Não fizemos a guerra,
Não lutámos contra os canhões,
Não assinámos a paz,
Nem sequer levámos a carta a Garcia.
Enfim, não ganhámos nenhum prémio,
Nem sequer o Nobel, nem a lotaria,
Muito menos o Euromilhões;
Em resumo, dizem-nos que,
No ano da graça do senhor
De dois e mil e quatro,
Tu e eu, nós todos,
Nada temos de concreto
Para celebrar.

Mas chegados ao fim do ano,
É costume fazer-se o balanço,
Se não da viagem,
Pelo menos do deve-e-haver
Das nossas vidas,
Da carga preciosa que transportamos connosco,
Que é a vida e o dever de a viver.
Que é o fogo da vida
E a obrigação de o alimentarmos,
O pequeno milagre
Ou o simples facto
De estarmos vivos,
De ainda estarmos vivos
E de estarmos juntos.


2. Façamos, pois, o balanço,
Meus amigos,
O deve-e-haver deste ano
De dois mil e quatro,
Que se calhar foi um annus horribilis
Como os anteriores,
Para a maior parte dos homens e mulheres,
Noss@s vizinh@s planetári@s.
Que a vinte e três de dezembro,
O horóscopo da humanidade
Não está em condições de prever
Terramotos, catástrofes, pestes, tsunamis,
O cortejo dos horrores
Que costumam acompanhar os cavaleiros do Apocalipse.

Façamos o balanço das nossas vidas
Como pessoas, como grupos,
Como instituições, como países.
Siga-se, nesta matéria, a tradição,
Que a tradição ainda manda,
E com isso não vai grande mal ao mundo
(Se querem saber a minha opinião).


3. Como sempre, houve coisas boas
E coisas más
Ao longo do ano que agora finda.
Releguemos as más para os historiadores.
Ou para o nosso confessor, psiquiatra ou confidente.
Ou para o diário secreto de Narciso.
Em boa verdade, as coisas más vão ao fundo,
Não flutuam como os corpos,
São, por definição, para esquecer.
- Dorme, que foi um sonho mau!,
Diziam-te em criança.
Criança sem juízo,
Sem dente do siso.

Abramos, pois, os nossos corações
Para falar ou dar testemunho
Das coisas boas que nos aconteceram.
Que a hora é de desafivelar as máscaras
Dos actores que também somos.
Maus, canastrões,
Mas que importa, se o palco é tudo!

Falemos dos acontecimentos
De que fomos protagonistas.
Pequenos, sem dúvida,
À nossa escala, à escala humana,
Mas importantes,
Para nós, a nossa família, os nossos amigos,
As empresas ou organizações onde trabalhamos,
As pessoas que confiaram em nós,
Que apostaram e acreditaram em nós.

Falemos das situações de que fomos
Actores de verdade, actores de facto.
Independentemente do nosso papel,
E do tamanho do nosso papel.
Ou do número de graus de liberdade
A que temos direito
Ou que fazem parte do nosso contrato.
Que o importante foi ser actor
E não mero figurante.

Falemos dos projectos
De que fomos gestores
Ou simples trabalhadores
De equipa.
Falemos dos conhecimentos novos
Que tivemos o privilégio
De produzir, obter ou divulgar
Através do nosso trabalho, estudo ou formação.
Dos livros que lemos ou escrevemos
Ou que comprámos para ler mais tarde,
”Quando formos velhinh@s
E tivermos todo o tempo do mundo”
(Oh, doce ilusão!).

Não nos esqueçamos de evocar
As pessoas fantásticas que conhecemos.
Mas também os filmes de última hora
Que perdemos no trânsito da vida.
Ou as estórias que não ouvimos ou não lemos,
Por falta de paciência ou de audiência
Ou de simples lugar de estacionamento
No hall congestionado do planeta azul.

Falemos das oportunidades que tivemos
De fazer coisas novas,
Inovadoras, ou simplesmente úteis,
Para nós, para os outros, para o nosso país.
E que não desperdiçámos.
Ajudando o mundo a tornar-se
Mais amigável
Ou, pelo menos, mais habitável.

Falemos das pequenas coisas boas
Que nos aconteceram,
Não por mero acaso,
Mas porque as merecemos,
(Sem falsa modéstia!),
Porque lutámos por elas,
Porque outros nos ajudaram a conseguí-las
Porque juntos conseguimo-las.

Falemos ainda do nosso crescimento interior:
Se estamos mais sábios, mais atentos,
Mais conscientes da água que corre nos nossos rios
Ou do HIV/SIDA que nos está matando,
É porque crescemos por dentro.

Mas sejamos capazes também de falar
Das brincadeiras ou partidas
(Não das sacanices!)
Que fizemos uns aos outros.
Que o brincar não é proibido,
Ou não deveria sê-lo,
Que o brincar devia mesmo ser obrigatório
Na escolinha da vida
E nos locais de trabalho
Onde, já crescidos, a ganhamos.

Falemos dos e-mails que trocámos
E que encheram as nossas caixas de correio.
Das anedotas que contámos.
Até das de mau gosto,
Xenófobas, racistas e sexistas.

Falemos do pão, do queijo e do vinho
Que partilhámos com alguém,
Ao fim da tarde,
Não importa onde,
No Alentejo, em Angola, ou no Minho,
Em qualquer parte onde
Temos im amigo, um parceiro, um compincha.
Que o companheiro (do latim cum + pane) é
Justamente aquele que compartilha connosco
O pão e o vinho à mesma mesa.

Sim, falemos das emoções
Que pusemos em cima da mesa.
Ou da ausência delas.
Da paz que conseguimos, em certas ocasiões,
Estabelecer connosco e com os outros.
Sim, falemos da paz:
Nada como um minuto de paz
Ao fim do dia, no fim do ano.
Um minuto, uma hora,
Mesmo se o fim do ano é uma treta
Do calendário gregoriano.

Falemos, por isso, e já agora
D@s velh@s amig@s que voltámos a encontrar.
Em vaigem,
Num terminal de aeroporto,
Numa esquina de rua congestionada,
Num bar triste de uma cidade
Em que estávamos de passagem.

Falemos d@s nov@s amig@s que fizemos.
Sem esquecer @s querid@s amig@s
Que perdemos, assim sem mais nada,
Por razões de vida ou de morte,
Ou de que perdemos simplesmente o norte,
O telefone, o fax, o endereço, o e-mail, a morada.

4. É a pensar em vocês tod@s
Com quem trabalhei, interagi, vivi, falei,
Discuti, barafustei,
E, se calhar, até magoei e decepcionei,
Durante o ano de dois mil e quatro,
É a pensar em tod@s vós,
Que eu peço ao Pai Natal
(Que eu ainda acredito nele,
Seja isso idiota ou infantil,
Muito pouco ou nada racional!)
Para pôr no vosso sapatinho
Esta singela mensagem:
“Que a nossa amizade seja…
O saldo contabilístico, positivo,
Que transita para o ano de dois mil e cinco”.

Estou-vos obrigado,
A todos vós,
Pela parte de mérito que vos coube
Nas pequenas coisas boas
Que me aconteceram, nos aconteceram,
Em dois mil e quatro.
Resta-me pedir-vos, sensibilizado:
"A mim, desculpem-me lá qualquer coisinha!"...

L.G.

Lisboa, 23 de Dezembro de 2004

20 dezembro 2004

BlogAngola - III: A cooperação no domínio da formação em saúde pública

1. “Portugal e os portugueses podem dar à Angola e aos angolanos aquilo em que são especialistas: o saber-ser, o saber-estar e o saber-fazer em saúde pública”, dizia-me há um ano, em Luanda, José Vieira Dias Van-Dúnem, vice-Ministro da Saúde do Governo de Unidade e Reconciliação Nacional da República de Angola e membro do Comité Central do MPLA. Cito de cor mas julgo não estar a atraiçoar o pensamento do autor.



Médico licenciado, em 1988, pela Faculdade de Medicina da Universidade Agostinho Neto, de Luanda (FML/UAN), o Dr. José Vieira Dias Van-Dúnem frequentou no ano lectivo de 1994/95 o Curso de Especialização em Saúde Pública da Escola Nacional de Saúde, Universidade Nova de Lisboa (ENSP/UNL), como bolseiro da OMS.



Qual é o sentido exacto das palavras daquele dirigente político angolano e antigo aluno da ENSP/UNL ? Em que circunstâncias foram ditas ? Que recado subentendiam ?



O que o meu interlocutor pretendia dizer-me ou transmitir-me, a mim, à instituição e até ao país que eu estava ali, de certo modo, a representar, era que a cooperação (i) não se resume aos grandes projectos que envolvem muitos milhões de dólares, transferência de alta tecnologia, grande volumes de trocas comerciais, mediáticas declarações políticas e, por vezes até, tráfico de interesses ligados a poderosos lóbis, internos e/ou externos; pelo contrário, que a cooperação também pode (e deve) ser vista, antes de mais, (ii) como uma relação recíproca, duplamente ganhadora, uma relação de amizade entre dois povos que têm valores, interesses e afinidades em comum (a história, a língua, a cultura, o imaginário, a economia…). E justamente em áreas que são vitais para o desenvolvimento do capital humano e que fazem mais apelo às soft sciences do que às hard sciences.



Estava, além disso, a defender uma concepção integrada e sustentada da formação e da cooperação no domínio da formação. Por fim, estava implicitamente a lembrar-me a origem etimológica da palavra cooperar, que significa trabalhar juntamente com outros para um mesmo fim, do latim cu(m) + operari.



A cooperação no domínio da educação, da formação e até da investigação em saúde pública é um campo onde se pode (e deve) estabelecer relações igualitárias, senão mesmo fraternas, entre instituições, povos e países. É algo que obriga à hospitalidade e à partilha, tal como uma refeição tomada à mesma mesa entre amigos. É um terreno onde todos aprendem a aprender e aprendem uns com os outros, o que os coloca num mesmo nível. Qualquer atitude de imperialismo, cultural e científico, ou até de simples paternalismo, é hoje inaceitável, de parte a parte, neste como noutros campos da cooperação bilateral.



2. Tratou-se, além disso, de uma conversa informal, num jantar que nos foi oferecido por ocasião da inauguração do 1º Curso de Especialização em Gestão em Saúde (Opção Administração Hospitalar), curso esse que resultou da solicitação, à FML/UAN, parte do Ministério da Saúde de Angola (MINSA), e que contou com o entusiástico apoio de duas instituições portuguesas: o apoio científico e pedagógico da ENSP/UNL e o apoio financeiro da Fundação Calouste Gulbenkian (FCG).



A FML/UAN ainda não tinha então a experiência e os recursos suficientes para montar um curso de especialização ou um mestrado nesta área (tem noutros, por exemplo o mestrado em educação médica que está a decorrer em Luanda). Decidiu por isso

recorrer à ENSP/UNL mas não quis um curso de "chaves na mão", participou desde o princípio na concepção, desenvolvimento, aplicação e avaliação do produto.



Usando a metáfora do conhecido provérbio chinês, os nossos amigos e parceiros angolanos não querem apenas o peixe, mas também o anzol e a cana de pesca para poderem passar a pescar. Como está na moda dizer-se, a isto chama-se empowerment.



O supracitado curso teve início em Setembro de 2003 e terminou , na sua parte lectiva, em Dezembro de 2004. Até meados de Março de 2005, os alunos deverão entregar uma monografia final de 40 páginas (cerca de 50 mil caracteres), incidindo sobre um tema concreto, actual e relevante da administração hospitalar em Angola.



Os destinatários deste primeiro curso, em número de 33, são profissionais de saúde (cerca de 80% são médicos) que exercem ou podem vir a exercer funções ou cargos de gestão (director geral e director administrativo) e direcção técnica (director clínico) no subsistema hospitalar angolano, de Cabinda ao Cunene.



O Curso teve a duração de um ano (2003/2004) e 630 horas presenciais, repartidas por três Blocos separados no tempo (Setembro a Novembro de 2003, Maio a Julho de 2004; Setembro a Dezembro de 2004).



Cada módulo, semanal, foi leccionado por 2 formadores ou prelectores portugueses (em geral, docentes da ENSP/UNL ou formadores de outras instituições ligadas ao ensino da gestão em saúde). Estes formadores foram coadjuvados, em cada módulo, por 1 monitor local recrutado pela FML/UAN, com o propósito de (i) contextualizar as diferentes áreas temáticas no quadro político, jurídico, cultural, sócio-económico, demográfico e sanitário de Angola, e ainda de (ii) promover o seu próprio treino e formação como potencial docente angolano de futuras edições deste curso de especialização.



No Curso estiveram incluídos dois Estágios Hospitalares (um no Bloco II e outro no Bloco III) para constatação in loco da realidade de diferentes hospitais de referência de Angola, apresentada e discutida sob a forma de um relatório crítico. Nestes estágios colaboraram ainda tutores locais para efeitos de acompanhamento e orientação dos formandos.



O sucesso deste curso deve-se a muitas dezenas de pessoas competentes e e empenhadas. Gostaria de citar aqui, pela parte portuguesa, o Prof. Dr. António Correia de Campos; e pela parte angolana, o Prof. Dr. Mário Fresta.



Embora não querendo incorrer no risco do elogio em boca própria, não posso deixar de apontar este exemplo como um caso de sucesso que serviu três propósitos: (i) formar gestores de saúde angolanos ou melhorar os seus conhecimentos e competências (técnicas, sociais e humanas); (ii) capacitar uma equipa de docentes angolanos na área da administração de serviços de saúde; e, por fim, (iii) garantir o reforço da capacidade educativa e formativa do MINSA e da FML/UAN e a sustentabilidade deste projecto de cooperação, criando ao mesmo tempo condições para instalação da futura e tão desejada Escola Nacional de Saúde Pública de Angola.



De facto, o desafio agora é “consolidar a capacidade formativa”, sendo desejável para 2005 a realização de um curso de formação pedagógica em Lisboa, que reunisse docentes angolanos e portugueses com vista à preparação do próximo 2º Curso de Especialziação em Gestão em Saúde, a ministrar em Luanda com recursos locais.



Mas a cooperação da ENSP com o MINSA e a FML/UAN não se circunscreve apenas a este curso. A ENSP está também a apoiar o curso pós-graduado em saúde pública e, portanto, a formação dos futuros médicos de saúde pública de Angola em duas áreas disciplinares específicas onde os nossos parceiros angolanos pediram apoio: o ensino da epidemiologia e da administração de saúde. Além disso, tem recebido de braços abertos os profissionais de saúde, oriundos daquele país, que se inscrevem no seus cursos (mestrado de saúde pública e cursos de especialização de administração hospitalar, saúde pública e medicina do trabalho). Mais de metade dos cerca de 30 alunos oriundos de Macau e dos PALOP que frequentaram, nos últimos oito anos, os referidos cursos eram oriundos de Angola.



Todos fazemos votos para que a cooperação com Angola (e os demais países da CPLP – Comunidade dos Países de Língua Portuguesa) se reforce no próximo ano de 2005, muito em particular no domínio da educação, formação e investigação em saúde pública.



(Editorial, Revista Portuguesa de Saúde Pública, 2/2004)



BlogAngola - III: A cooperação no domínio da formação em saúde pública

1. “Portugal e os portugueses podem dar à Angola e aos angolanos aquilo em que são especialistas: o saber-ser, o saber-estar e o saber-fazer em saúde pública”, dizia-me há um ano, em Luanda, José Vieira Dias Van-Dúnem, vice-Ministro da Saúde do Governo de Unidade e Reconciliação Nacional da República de Angola e membro do Comité Central do MPLA. Cito de cor mas julgo não estar a atraiçoar o pensamento do autor.

Médico licenciado, em 1988, pela Faculdade de Medicina da Universidade Agostinho Neto, de Luanda (FML/UAN), o Dr. José Vieira Dias Van-Dúnem frequentou no ano lectivo de 1994/95 o Curso de Especialização em Saúde Pública da Escola Nacional de Saúde, Universidade Nova de Lisboa (ENSP/UNL), como bolseiro da OMS.

Qual é o sentido exacto das palavras daquele dirigente político angolano e antigo aluno da ENSP/UNL ? Em que circunstâncias foram ditas ? Que recado subentendiam ?

O que o meu interlocutor pretendia dizer-me ou transmitir-me, a mim, à instituição e até ao país que eu estava ali, de certo modo, a representar, era que a cooperação (i) não se resume aos grandes projectos que envolvem muitos milhões de dólares, transferência de alta tecnologia, grande volumes de trocas comerciais, mediáticas declarações políticas e, por vezes até, tráfico de interesses ligados a poderosos lóbis, internos e/ou externos; pelo contrário, que a cooperação também pode (e deve) ser vista, antes de mais, (ii) como uma relação recíproca, duplamente ganhadora, uma relação de amizade entre dois povos que têm valores, interesses e afinidades em comum (a história, a língua, a cultura, o imaginário, a economia…). E justamente em áreas que são vitais para o desenvolvimento do capital humano e que fazem mais apelo às soft sciences do que às hard sciences.

Estava, além disso, a defender uma concepção integrada e sustentada da formação e da cooperação no domínio da formação. Por fim, estava implicitamente a lembrar-me a origem etimológica da palavra cooperar, que significa trabalhar juntamente com outros para um mesmo fim, do latim cu(m) + operari.

A cooperação no domínio da educação, da formação e até da investigação em saúde pública é um campo onde se pode (e deve) estabelecer relações igualitárias, senão mesmo fraternas, entre instituições, povos e países. É algo que obriga à hospitalidade e à partilha, tal como uma refeição tomada à mesma mesa entre amigos. É um terreno onde todos aprendem a aprender e aprendem uns com os outros, o que os coloca num mesmo nível. Qualquer atitude de imperialismo, cultural e científico, ou até de simples paternalismo, é hoje inaceitável, de parte a parte, neste como noutros campos da cooperação bilateral.

2. Tratou-se, além disso, de uma conversa informal, num jantar que nos foi oferecido por ocasião da inauguração do 1º Curso de Especialização em Gestão em Saúde (Opção Administração Hospitalar), curso esse que resultou da solicitação, à FML/UAN, parte do Ministério da Saúde de Angola (MINSA), e que contou com o entusiástico apoio de duas instituições portuguesas: o apoio científico e pedagógico da ENSP/UNL e o apoio financeiro da Fundação Calouste Gulbenkian (FCG).

A FML/UAN ainda não tinha então a experiência e os recursos suficientes para montar um curso de especialização ou um mestrado nesta área (tem noutros, por exemplo o mestrado em educação médica que está a decorrer em Luanda). Decidiu por isso
recorrer à ENSP/UNL mas não quis um curso de "chaves na mão", participou desde o princípio na concepção, desenvolvimento, aplicação e avaliação do produto.

Usando a metáfora do conhecido provérbio chinês, os nossos amigos e parceiros angolanos não querem apenas o peixe, mas também o anzol e a cana de pesca para poderem passar a pescar. Como está na moda dizer-se, a isto chama-se empowerment.

O supracitado curso teve início em Setembro de 2003 e terminou , na sua parte lectiva, em Dezembro de 2004. Até meados de Março de 2005, os alunos deverão entregar uma monografia final de 40 páginas (cerca de 50 mil caracteres), incidindo sobre um tema concreto, actual e relevante da administração hospitalar em Angola.

Os destinatários deste primeiro curso, em número de 33, são profissionais de saúde (cerca de 80% são médicos) que exercem ou podem vir a exercer funções ou cargos de gestão (director geral e director administrativo) e direcção técnica (director clínico) no subsistema hospitalar angolano, de Cabinda ao Cunene.

O Curso teve a duração de um ano (2003/2004) e 630 horas presenciais, repartidas por três Blocos separados no tempo (Setembro a Novembro de 2003, Maio a Julho de 2004; Setembro a Dezembro de 2004).

Cada módulo, semanal, foi leccionado por 2 formadores ou prelectores portugueses (em geral, docentes da ENSP/UNL ou formadores de outras instituições ligadas ao ensino da gestão em saúde). Estes formadores foram coadjuvados, em cada módulo, por 1 monitor local recrutado pela FML/UAN, com o propósito de (i) contextualizar as diferentes áreas temáticas no quadro político, jurídico, cultural, sócio-económico, demográfico e sanitário de Angola, e ainda de (ii) promover o seu próprio treino e formação como potencial docente angolano de futuras edições deste curso de especialização.

No Curso estiveram incluídos dois Estágios Hospitalares (um no Bloco II e outro no Bloco III) para constatação in loco da realidade de diferentes hospitais de referência de Angola, apresentada e discutida sob a forma de um relatório crítico. Nestes estágios colaboraram ainda tutores locais para efeitos de acompanhamento e orientação dos formandos.

O sucesso deste curso deve-se a muitas dezenas de pessoas competentes e e empenhadas. Gostaria de citar aqui, pela parte portuguesa, o Prof. Dr. António Correia de Campos; e pela parte angolana, o Prof. Dr. Mário Fresta.

Embora não querendo incorrer no risco do elogio em boca própria, não posso deixar de apontar este exemplo como um caso de sucesso que serviu três propósitos: (i) formar gestores de saúde angolanos ou melhorar os seus conhecimentos e competências (técnicas, sociais e humanas); (ii) capacitar uma equipa de docentes angolanos na área da administração de serviços de saúde; e, por fim, (iii) garantir o reforço da capacidade educativa e formativa do MINSA e da FML/UAN e a sustentabilidade deste projecto de cooperação, criando ao mesmo tempo condições para instalação da futura e tão desejada Escola Nacional de Saúde Pública de Angola.

De facto, o desafio agora é “consolidar a capacidade formativa”, sendo desejável para 2005 a realização de um curso de formação pedagógica em Lisboa, que reunisse docentes angolanos e portugueses com vista à preparação do próximo 2º Curso de Especialziação em Gestão em Saúde, a ministrar em Luanda com recursos locais.

Mas a cooperação da ENSP com o MINSA e a FML/UAN não se circunscreve apenas a este curso. A ENSP está também a apoiar o curso pós-graduado em saúde pública e, portanto, a formação dos futuros médicos de saúde pública de Angola em duas áreas disciplinares específicas onde os nossos parceiros angolanos pediram apoio: o ensino da epidemiologia e da administração de saúde. Além disso, tem recebido de braços abertos os profissionais de saúde, oriundos daquele país, que se inscrevem no seus cursos (mestrado de saúde pública e cursos de especialização de administração hospitalar, saúde pública e medicina do trabalho). Mais de metade dos cerca de 30 alunos oriundos de Macau e dos PALOP que frequentaram, nos últimos oito anos, os referidos cursos eram oriundos de Angola.

Todos fazemos votos para que a cooperação com Angola (e os demais países da CPLP – Comunidade dos Países de Língua Portuguesa) se reforce no próximo ano de 2005, muito em particular no domínio da educação, formação e investigação em saúde pública.

(Editorial, Revista Portuguesa de Saúde Pública, 2/2004)