10 julho 2004

Blogantologia(s) – XV: A novíssima poesia angolana

1. Ilha de Luanda. 8 de Julho de 2004. 18h. Esplanada do Restaurante Coconuts. Meia dúzia de adoradores do sol. Aristocracia crioula. Novos ricos. Homens de negócio russos. Cooperantes de desvairados sítios. Dois seguranças em cada ponta. Mais dois no parque de estacionamento. Aqui não chega o cheiro fétido do sub-humano mundo dos candongueiros. Aqui não há o incómodo ziguezaguear das corajosas zungueiras nas ruas atulhadas de Luanda. Não longe nas praias dos pescadores os futuros Mantorras-de-pé-descalço chutam a bola às balizas esfarradas do destino.



2. Descubro a poesia do José Luís Mendonça (n. 1955). O último livro: "Gramática do amor contemporâneo". Luanda: Editorial Nzila, 2002 (Colecção Letras Angolanas/Poesia, 7).



Escreve Luís Kandjimbo, na contracapa: “Podendo ser considerado o mais vigoroso produtor de rupturas no plano formal naquilo que é a novíssima poesia angolana, preenche igualmente os requisitos para ser um dos mais inovadores poetas da Geração de 80, a chamada Geração das Incertezas. Inscreve-se numa das quatro tendências em que podemos analisar a poética dessa geração, caracterizando-se particularmente pelo rigor e intencionalidade na construção de metáforas e pela associação de sentidos, quando é confrontado com a necessidade de propor uma verdadeira linguagem poética”.



Aqui fica uma sugestão de leitura (poema 21, página 29):



__________



21



aqui, no fundo do oceano, tudo se filma em câmara ardente.

pouso o lápis no cerne desse êxtase de hungos-violinos, aliás,

escuto: será essa a vibração do mundo ? deixo a música

desfraldar o mastro das eternas sílabas de areia.



idólatra da carne, elevo a minha prece ao deus escaldante

da sede e da tortura da alma. o vento e as chuvas subiram

as escadas, um anjo alisa a argila microscópica do altar

coberto de moscas de basalto e um incêndio de nuvens de

arame coroa a mão do mundo, beijado pela suprema ciência

da poesia.



que diferença existe entre a vagina e a mão que escreve

este poema ?


________________





3. Por um feliz acaso, descobri desta vez a editora e livraria Chá de Caxinde, um sítio de visita obrigatória na baixa de Luanda (sita no edifício do Nacional Cine-Teatro). Da mesma editora (Nzila) e colecção (Letras Angolanas / Poesia, 3), comprei o livro do consagrado João Maimona (n. 1955). Aqui fica um dos mais belos poemas deste livro de 2001 ("No útero da morte"):



Feliz reencontro (p. 52)



uma crinça me trouxe,

com as mãos vazias, a ternura verde

nas vértebras, uma carta de renascimento.

a seca se volatilizou. dia dos homens.

noite de passos segundos. a hipertermia

deixou a pele. fruto de imenso acontecimento.

existem agora rios de luz. existe água

potável nos rios de luz.

e diante do templo que precede

o renascimento

leio chuvas de imenso silêncio:

reencontro minhas veias

no sistema vascular

dos meus antepassados.

Blogantologia(s) – XV: A novíssima poesia angolana

1. Ilha de Luanda. 8 de Julho de 2004. 18h. Esplanada do Restaurante Coconuts. Meia dúzia de adoradores do sol. Aristocracia crioula. Novos ricos. Homens de negócio russos. Cooperantes de desvairados sítios. Dois seguranças em cada ponta. Mais dois no parque de estacionamento. Aqui não chega o cheiro fétido do sub-humano mundo dos candongueiros. Aqui não há o incómodo ziguezaguear das corajosas zungueiras nas ruas atulhadas de Luanda. Não longe nas praias dos pescadores os futuros Mantorras-de-pé-descalço chutam a bola às balizas esfarradas do destino.

2. Descubro a poesia do José Luís Mendonça (n. 1955). O último livro: "Gramática do amor contemporâneo". Luanda: Editorial Nzila, 2002 (Colecção Letras Angolanas/Poesia, 7).

Escreve Luís Kandjimbo, na contracapa: “Podendo ser considerado o mais vigoroso produtor de rupturas no plano formal naquilo que é a novíssima poesia angolana, preenche igualmente os requisitos para ser um dos mais inovadores poetas da Geração de 80, a chamada Geração das Incertezas. Inscreve-se numa das quatro tendências em que podemos analisar a poética dessa geração, caracterizando-se particularmente pelo rigor e intencionalidade na construção de metáforas e pela associação de sentidos, quando é confrontado com a necessidade de propor uma verdadeira linguagem poética”.

Aqui fica uma sugestão de leitura (poema 21, página 29):

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21

aqui, no fundo do oceano, tudo se filma em câmara ardente.
pouso o lápis no cerne desse êxtase de hungos-violinos, aliás,
escuto: será essa a vibração do mundo ? deixo a música
desfraldar o mastro das eternas sílabas de areia.

idólatra da carne, elevo a minha prece ao deus escaldante
da sede e da tortura da alma. o vento e as chuvas subiram
as escadas, um anjo alisa a argila microscópica do altar
coberto de moscas de basalto e um incêndio de nuvens de
arame coroa a mão do mundo, beijado pela suprema ciência
da poesia.

que diferença existe entre a vagina e a mão que escreve
este poema ?

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3. Por um feliz acaso, descobri desta vez a editora e livraria Chá de Caxinde, um sítio de visita obrigatória na baixa de Luanda (sita no edifício do Nacional Cine-Teatro). Da mesma editora (Nzila) e colecção (Letras Angolanas / Poesia, 3), comprei o livro do consagrado João Maimona (n. 1955). Aqui fica um dos mais belos poemas deste livro de 2001 ("No útero da morte"):

Feliz reencontro (p. 52)

uma crinça me trouxe,
com as mãos vazias, a ternura verde
nas vértebras, uma carta de renascimento.
a seca se volatilizou. dia dos homens.
noite de passos segundos. a hipertermia
deixou a pele. fruto de imenso acontecimento.
existem agora rios de luz. existe água
potável nos rios de luz.
e diante do templo que precede
o renascimento
leio chuvas de imenso silêncio:
reencontro minhas veias
no sistema vascular
dos meus antepassados.