04 junho 2004

Socio(b)logia - X: Deus nos livre de mula que faz him e de mulher que sabe latim

1. Um cota, um senhor cota, veio há dias defender, em público, o sistema de quotas para as mulheres que querem ser médicas. É uma opinião, seguramente polémica mas provavelmente respeitável. Por ser pública e não privada, é uma opinião que pode e deve ser comentada no espaço semi-público que é este, o da blogosfera.



Acontece que o senhor é ministro, e não é um ministro qualquer. É o ministro que tutela a saúde, a nossa saúde. Os rapazes que querem ser médicos mas não conseguem entrar nas faculdades de medicina, terão aplaudido. Alguns. Outros não terão sequer entendido o alcance histórico da controversa proposta do senhor. Para mais, feita fora de portas, no Luxemburgo.



2. Os médicos, alguns, terão aplaudido. Voltámos à guerra dos sexos ? A avaliar pela posição pública do Bastonário da Ordem dos Médicos, não. Trata-se apenas de (re)equacionar, sem tabus, um problema que vai ter consequências no exercício futuro da medicina em Portugal. A urologia e a ortopedia, por exemplo. As mulheres não têm apetência para estas especialidades. E depois há as questões do pudor médico, masculino e feminino. Vocês estão a imaginar as urologistas a fazer o toque rectal à turma dos portugas ?



3. As mulheres, essas, indignaram-se. É que a guerra dos sexos acabou, é verdade. Já assinámos há muito o nosso Tratado de Évora-Monte. Mas ainda está bem fresca, na memória das chavalas e das cotas, a guerra dos sexos. De resto, já não se diz sexo, mas género: ser homem ou mulher já não é apenas resultado do determinismo genético, é também uma construção social.



Até uma cota, que por acaso é ministra (de outra pasta), foi aos arames e deixou o seu colega mais corado do que um pimentão vermelho, ao puxar-lhe as orelhas. Em público, fora de portas, no Luxemburgo. Olhe que não, olhe que não: que essa das mulheres para o gineceu, já!, só nos faz perder votos; e você quer melhor exemplo de dedicação à coisa pública do que eu, que uso saias ?



4. Recorde-se o argumento (capital) do senhor a favor das quotas para as mulheres em medicina: (i) as mulheres, quais marabuntas, invadiram aos anfiteatros de anatomia, os centros de saúde, os hospitais, os congressos de medicina; (ii) cerca de 63% dos actuais estudantes que frequentam o curso de medicina nas nossas 7 faculdades (n= 6067) são mulheres; (iii) daqui a uns anos os pobres dos homens, no SNS (leia-se: Serviço Nacional de Saúde), serão uma minoria socioprofissional, reduzidos a meia dúzia de maqueiros e ortopedistas; (iv) por causa dessa coisa da maternidade, elas são muito mais absentistas que os homens.



Pois é, diz o senhor Bastonário, elas têm mais juízo do que os rapazes, são mais aplicadas, estudam mais e melhor. E agora a gente vai ter que as aturar, incluindo naqueles dias em que elas estão impróprias para tudo, para todo o tipo de relação: a profissional, a terapêutica, a conjugal, a filial, etc. Abreviando argumentos, "a maternidade afasta as mulheres do serviço e tira-lhes alguma da capacidade de doação à profissão" (sic) (Bastonário da Ordem dos Médicos, Público, 2 de Junho de 2004). Em termos mais simples: um homem pode estar vinte e quatro horas por dia de alma e coração a exercer medicina; a mulher não tem disponibilidade nem física nem mental para ser doutora a tempo inteiro: ou é doutora e não pode exercer os outros papéis sociais que se esperam dela, como mulher, como mãe, como doméstica; ou é mulher, mãe e doméstica, e nesse caso só pode ser doutora em part-time.



5. Aí surge a valente Isabel do Carmo a comprar esta guerra (Público, do mesmo dia): (i) meus senhores, “nunca ninguém se lembrou de quotas quando a situação era inversa”; (ii) e quando vocês partiram para a guerra e nós ficámos na rectaguarda, fomos capazes de nos bater com os cotas em todas as especialidades, sem deixar de parir e educar os nossos filhos...



Comentário das jornalistas que fizeram a peça (Alexandra Campos, Emília Monteiro): “O que continua a preocupar Isabel do Carmo é que, havendo hoje tantas médicas, apenas cheguem homens a directores de serviço”. Este, por acaso, não é dos menos intrigantes paradoxos da sociedade dos portugas.



6. Curiosamente, de tempos a tempos somos visitados pelos velhos deuses e demónios da medicina, dos saberes e dos poderes da medicina... Há uns cem anos atrás, diziam os burgueses, machos, nova clsse social em ascensão: "Não provam bem as senhoras que se metem a doutoras"...



Mais brutal era o cota, porventura cristão-velho, escolástico, seguramente misógeno e sexista, que industriava o povo, do alto do púlpito da igreja ou da cátedra de Coimbra, com nacos de prosa como esta há trezentos anos atrás: "Deus nos livre da mula que faz him e da mulher que sabe latim"...



7. Pelos vistos, este dossiê está longe de estar encerrado. Há 141 anos atrás, em 1863, os médicos do Middlesex Hospital emitiam a seguinte declaração sobre o assunto escaldante das woman doctors:



"The presence of a young female in the operating theatre is an outrage to our natural instincts and is calculated to destroy the respect and admiration with which the opposite sex is regarded" (em português: "A presenaça de uma jovem mulher na sala de operações é um ultraje aos nossos instintos naturais e tem como intenção destruir o respeito e a admiração com que são devidos ao sexo oposto".



Recorde-se que as mulheres só há cento e poucos anos puderam, no Ocidente cristão, burguês e particular, entrar no santos dos santos (que era então a universidade). A luta para serem reconhecidas como médicas e praticarem a medicina não foi fácil.



É justo referir aqui o nome de Elizabeth Blackwell (1821-1910): (i) a primeira mulher médica dos tempos modernos; (ii) inglesa, emigrou para os EUA em 1832 com a família; (iii) depois de rejeitada por inúmeras escolas, conseguiu finalmente diplomar-se pela Geneva Medical School, em Nova Iorque, em 1843; (iv) foi sistematicamente boicotada e vilipendiada em toda a parte ao tentar exercer medicina (EUA, França, Inglaterra); (v) foi professora da London School of Medicine for Women (1875-1907); e, por fim, (vi) é hoje considerada como uma das grandes feministas da 1ª geração, por ter travado um longo combate pelo direito das mulheres a seguirem a medicina como profissão.



Post Scriptum - As mulheres não só se indignaram como inclusive estão a pedir a cabeça do São João Baptista, quero eu dizer, do Senbhor Ministro da Saúde. Veja-se a recolha de assinaturas que está a ser organizada, com o apoio da APMJ - Associação portuguesa de Mulheres Juristas. refiro-me a abaixo assinado Mulheres em Medicina Sim, Retrocesso Não!

Socio(b)logia - X: Deus nos livre de mula que faz him e de mulher que sabe latim

1. Um cota, um senhor cota, veio há dias defender, em público, o sistema de quotas para as mulheres que querem ser médicas. É uma opinião, seguramente polémica mas provavelmente respeitável. Por ser pública e não privada, é uma opinião que pode e deve ser comentada no espaço semi-público que é este, o da blogosfera.

Acontece que o senhor é ministro, e não é um ministro qualquer. É o ministro que tutela a saúde, a nossa saúde. Os rapazes que querem ser médicos mas não conseguem entrar nas faculdades de medicina, terão aplaudido. Alguns. Outros não terão sequer entendido o alcance histórico da controversa proposta do senhor. Para mais, feita fora de portas, no Luxemburgo.

2. Os médicos, alguns, terão aplaudido. Voltámos à guerra dos sexos ? A avaliar pela posição pública do Bastonário da Ordem dos Médicos, não. Trata-se apenas de (re)equacionar, sem tabus, um problema que vai ter consequências no exercício futuro da medicina em Portugal. A urologia e a ortopedia, por exemplo. As mulheres não têm apetência para estas especialidades. E depois há as questões do pudor médico, masculino e feminino. Vocês estão a imaginar as urologistas a fazer o toque rectal à turma dos portugas ?

3. As mulheres, essas, indignaram-se. É que a guerra dos sexos acabou, é verdade. Já assinámos há muito o nosso Tratado de Évora-Monte. Mas ainda está bem fresca, na memória das chavalas e das cotas, a guerra dos sexos. De resto, já não se diz sexo, mas género: ser homem ou mulher já não é apenas resultado do determinismo genético, é também uma construção social.

Até uma cota, que por acaso é ministra (de outra pasta), foi aos arames e deixou o seu colega mais corado do que um pimentão vermelho, ao puxar-lhe as orelhas. Em público, fora de portas, no Luxemburgo. Olhe que não, olhe que não: que essa das mulheres para o gineceu, já!, só nos faz perder votos; e você quer melhor exemplo de dedicação à coisa pública do que eu, que uso saias ?

4. Recorde-se o argumento (capital) do senhor a favor das quotas para as mulheres em medicina: (i) as mulheres, quais marabuntas, invadiram aos anfiteatros de anatomia, os centros de saúde, os hospitais, os congressos de medicina; (ii) cerca de 63% dos actuais estudantes que frequentam o curso de medicina nas nossas 7 faculdades (n= 6067) são mulheres; (iii) daqui a uns anos os pobres dos homens, no SNS (leia-se: Serviço Nacional de Saúde), serão uma minoria socioprofissional, reduzidos a meia dúzia de maqueiros e ortopedistas; (iv) por causa dessa coisa da maternidade, elas são muito mais absentistas que os homens.

Pois é, diz o senhor Bastonário, elas têm mais juízo do que os rapazes, são mais aplicadas, estudam mais e melhor. E agora a gente vai ter que as aturar, incluindo naqueles dias em que elas estão impróprias para tudo, para todo o tipo de relação: a profissional, a terapêutica, a conjugal, a filial, etc. Abreviando argumentos, "a maternidade afasta as mulheres do serviço e tira-lhes alguma da capacidade de doação à profissão" (sic) (Bastonário da Ordem dos Médicos, Público, 2 de Junho de 2004). Em termos mais simples: um homem pode estar vinte e quatro horas por dia de alma e coração a exercer medicina; a mulher não tem disponibilidade nem física nem mental para ser doutora a tempo inteiro: ou é doutora e não pode exercer os outros papéis sociais que se esperam dela, como mulher, como mãe, como doméstica; ou é mulher, mãe e doméstica, e nesse caso só pode ser doutora em part-time.

5. Aí surge a valente Isabel do Carmo a comprar esta guerra (Público, do mesmo dia): (i) meus senhores, “nunca ninguém se lembrou de quotas quando a situação era inversa”; (ii) e quando vocês partiram para a guerra e nós ficámos na rectaguarda, fomos capazes de nos bater com os cotas em todas as especialidades, sem deixar de parir e educar os nossos filhos...

Comentário das jornalistas que fizeram a peça (Alexandra Campos, Emília Monteiro): “O que continua a preocupar Isabel do Carmo é que, havendo hoje tantas médicas, apenas cheguem homens a directores de serviço”. Este, por acaso, não é dos menos intrigantes paradoxos da sociedade dos portugas.

6. Curiosamente, de tempos a tempos somos visitados pelos velhos deuses e demónios da medicina, dos saberes e dos poderes da medicina... Há uns cem anos atrás, diziam os burgueses, machos, nova clsse social em ascensão: "Não provam bem as senhoras que se metem a doutoras"...

Mais brutal era o cota, porventura cristão-velho, escolástico, seguramente misógeno e sexista, que industriava o povo, do alto do púlpito da igreja ou da cátedra de Coimbra, com nacos de prosa como esta há trezentos anos atrás: "Deus nos livre da mula que faz him e da mulher que sabe latim"...

7. Pelos vistos, este dossiê está longe de estar encerrado. Há 141 anos atrás, em 1863, os médicos do Middlesex Hospital emitiam a seguinte declaração sobre o assunto escaldante das woman doctors:

"The presence of a young female in the operating theatre is an outrage to our natural instincts and is calculated to destroy the respect and admiration with which the opposite sex is regarded" (em português: "A presenaça de uma jovem mulher na sala de operações é um ultraje aos nossos instintos naturais e tem como intenção destruir o respeito e a admiração com que são devidos ao sexo oposto".

Recorde-se que as mulheres só há cento e poucos anos puderam, no Ocidente cristão, burguês e particular, entrar no santos dos santos (que era então a universidade). A luta para serem reconhecidas como médicas e praticarem a medicina não foi fácil.

É justo referir aqui o nome de Elizabeth Blackwell (1821-1910): (i) a primeira mulher médica dos tempos modernos; (ii) inglesa, emigrou para os EUA em 1832 com a família; (iii) depois de rejeitada por inúmeras escolas, conseguiu finalmente diplomar-se pela Geneva Medical School, em Nova Iorque, em 1843; (iv) foi sistematicamente boicotada e vilipendiada em toda a parte ao tentar exercer medicina (EUA, França, Inglaterra); (v) foi professora da London School of Medicine for Women (1875-1907); e, por fim, (vi) é hoje considerada como uma das grandes feministas da 1ª geração, por ter travado um longo combate pelo direito das mulheres a seguirem a medicina como profissão.

Post Scriptum - As mulheres não só se indignaram como inclusive estão a pedir a cabeça do São João Baptista, quero eu dizer, do Senbhor Ministro da Saúde. Veja-se a recolha de assinaturas que está a ser organizada, com o apoio da APMJ - Associação portuguesa de Mulheres Juristas. refiro-me a abaixo assinado Mulheres em Medicina Sim, Retrocesso Não!