16 novembro 2004

Portugal sacro-profano - XXI: 'Ala malek' ou o tráfico do Cairo

1. Às vezes este país...





Às vezes este país parece-se com o Cairo,

Com o caótico tráfico rodoviário do Cairo.

Sem código da estrada.

Sem regras.

Sem semáforos.

Sem polícia sinaleiro.

Uma perigosa montanha russa,

Um carrossel desengonçado.

Mas mesmo assim a coisa anda, flui,

E a gente sempre consegue chegar a alguma parte.

Pode não ser o sítio certo,

Mas sempre chega a algum parte.

Ou pelo menos tem essa ilusão de óptica.

Que o importante é chegar, sobreviver, dizem-te.

"Cá vamos andando", responde-te o Zé Portuga,

Quando lhe perguntas como está.

No Portugal sacro-profano, a gente lá vai andando.

Às vezes a gente tropeça e cai,

Para logo se levantar e prosseguir a marcha,

Ora lenta ora brusca.

Agora o pobre do país tenta, a todo o custo,

Não perder a última carruagem

Do comboio chamado Europa.



Há quanto tempo?

Às vezes tenho a impressão

De que essa correria atrás do comboio da Europa

É um filme que dura há já muito,

Há anos, há séculos, quiçá desde sempre...

Um daqueles filmes, mudos,

Que a gente via no nosso cinema de bairro.

Quando havia cinema de bairro

E filmes mudos

E a Fénix da Europa renascia das cinzas

E eu vivia num país orgulhosamente só.

Pobrezinhos mas orgulhosamente sós.



Mas tal comparação é injusta e ofensiva

Para com os portugas, para com o Zé Portuga:

Na realidade, é a política deste país

Que se parece com o caótico trânsito cairota...

É a política, são os políticos,

Os seus dirigentes, a sua elite...

É a gestão da coisa pública, ou a falta dela,

O laxismo, o cansaço, a falta de imaginação,

A perda de valores, a ausência de liderança,

A opacidade das regras ou melhor o seu vazio,

A ligeireza, a falta de lata, de vergonha, de carácter...



Às vezes apetece-me gritar, ao homem do leme,

Ao motorista do táxi, ao condutor do carro de bois,

Ao simples peão, a mim próprio:

"Ala malek"!, mais depressa, homem,

Que se faz tarde,

E que ainda perdes a última carruagem do último comboio.





2. "Ala malek", em árabe, quer dizer mais depressa. É sempre bom, em qualquer esquina do mundo, ter meia dúzia de palavras do patois local na ponta da língua...



Leio, aloém disso, na minha Guia prática para viajar a Egipto (guia, no feminino, na língua de Cervantes), que levei comigo no tórrido passado mês de Agosto para a terra dos filhos dos faraós: "Los taxis de El Cairo son blancos y negros, con una placa naranja en la que aparece el número de la licencia".



Esta informação é sempre útil, mesmo quando a gente não tenciona andar de táxi porque vai com um pacote de férias onde está tudo incluído, desde o hotel aos transportes, ao guarda-costa, à entrada nos museus e à mão estendida dos indígenas. Fico a saber, incrédulo ma no troppo, que "los contadores" (os taxímetros) só se utilizam "raramente" (já imaginava!) e que a coisa "deberá hacerse con una tarifa oficial" (como em toda parte, há dois mundos, o de superfície e o subterrâneo). Mais: "Lo mejor es indicar el destino, pactar un precio, y pagar al llegar a destino".



Ah!, como eu gostaria de poder recorrer, no meu país, a este expediente, tão prático e tão cómodo, de indicar ao motorista da Nação um destino, negociar um preço e pagar-lhe só no fim do serviço... Com a condição de ele não me deixar especado, no meio da rua, sem passaporte, sem dinheiro, sem guia, sem mapa, sem bagagens, sem ideias, sem pinga de sangue!



Claro, há depois os conselhos do amigo da onça: "No olvide la propina". A propina é universal, mô camba. "Gasosa, muadié", em mangolês, no falar de Angola. E depois há os naturais problemas de comunicação entre os humanos de diferentes tribos. Nada como consultares o manual prático (manual, porque está sempre à mão; e prático, por que é do tipo pão-pão, queijo-queijo): "Tendrá dificultades para entenderse con el conductor, a no ser que usted conozca el itinerario y puede guiarle con expresiones como izquierda, derecha, etc.".



Ora aqui está uma ideia peregrina e uma coisa que é exportável: e por que não aplicar essa filosofia lapalissiana, tal e qual, ao meu país ? Seguramente que a história seria muito mais apaixonante e divertida se a gente pudesse, a nosso bel-prazer, comandar o homem da jangada de pedra.



Parece-me elementar: esquerda, direita, aprendi eu, na tropa, em longas marchas (es)forçadas. Por outro lado, não adianta gritar às alimárias que te conduzem, que elas nem sequer sabem para que lado é a direita e a esquerda, na língua de Camões. Esquerda, direita, são hieróglifos, dizem os populistas. Em qualquer dos casos, cuidado: "Los taxistas egípcios tienen fama de temerarios al volante". Não andei de táxi no Cairo, mas andei de carroça em Luxor, e posso comprovar que os condutores egípcios encaixam bem no estereótipo.



O Egipto é uma coisa, o Cairo é outra. O Cairo é outro país, é um mundo. É decididamente a maior montanha russa do mundo. Não sei se é, mas a mim pareceu-me, mesmo não conhecendo outras megacidades como Bombaim, Xangai, São Paulo ou Tóquio. Eu, pelo menos, diverti-me a andar no sobe e desce dos viadutos ("pasos elevados"), altos como prédios de cinco ou seis andares. No mínimo, conta com um trânsito infernal, próprio de uma cidade que tem o dobro da população da tua terra, ó Zé Portuga. Apesar dos faraónicos esforços de modernização: "A pesar de que se han construido numerosos pasos elevados, se ha prohibido la circulación por el centro de la ciudad a vehículos pesados a determinadas horas, se ha hecho una carretera de circunvalación, el tráfico en El Cairo sigue siendo un problema fundamental".



Toma nota: O tráfico do Cairo é um problema, um problema fundamental... Mesmo assim, os cairotas são sortudos porque só têm um problema fundamental. Os portugas, esses, queixam-se sempre de terem muitos problemas fundamentais. Nunca os contei, mas devem ser muitos pela frequência e gravidade das queixas.



3. Caro viajante que passas pelo gigantesco Cairo, a caminho do Nilo, das pirâmides e dos demais templos antigos, ou em busca da misteriosa Núbia e da África perdida, a pensar na formosíssima Lisboa dos fenícios ou na mui nobre e invicta cidade do Porto, escreve ou memoriza estes ensinamentos de quem anda há muito neste ofício de globetrotter: "En la ciudad circule al ritmo de los demás. Si es demasiado lento, le adelantarán por los dos lados".



"Acerte o passo, ó sua besta!", que na tropa e lá fora não há lugar para os desalinhados. É verdade que a tartaruga , apesar de lenta em terra, ganhou a luta pela sobrevivência no mar, diz o meu amigo Charles Darwin. Mas tu, no Cairo, estás tramado, se andares como a tartaruga. A regra é não haver regras e não seres nenhum empata: "No hay preferencias: el primero que llega a una intersección, cruza; si espera, sólo logrará confundir a otros conductores". Agora entende-se melhor por que é que os "coches" cairotas andam mais amolgados do que a minha panela de cozer batatas no campismo.



Diga-se de passagem que não vi nenhum velhinha ser passada a ferro na passagem de peões. Também não me lembro de ver passagens de peões. Mas vi gentis polícias a acompanharem simpáticas velhinhas a atravessar a rua. No Cairo, além do fabuloso pôr-do-sol, ainda podes ver este gesto de humanidade. No meu país, terás de travar a fundo, buzinar à velhinha e gritar-lhe meia dúzia de palavrões, daqueles de fazer corar um menino de coro. No meu país, tu terás de gritar ou buzinar para que dêem conta da tua insigificante existência de desalinhado. Também no Cairo, como no resto do mundo motorizado pós-fordista, poderás comprovar que "el uso del claxon es algo habitual".



Last but not the least, nunca pares, em caso algum! É a única regra de segurança que, pessoalmente, deves observar, além de não beberes água da torneira. No Egipto e no resto da África: "Si choca con un peatón o un animal doméstico, que no sea un perro o un gato, no pare, vaya a la estación de policía más cercana. No intente ayudar o salir del coche".



No meu país, leva-se o conselho a sério e ao exagero: já nem se para quando se apropela um gato ou um cão. É assim que a gente cultiva a arte e a ciência do ir andando no Portugal sacro-profano.

Portugal sacro-profano - XXI: 'Ala malek' ou o tráfico do Cairo

1. Às vezes este país...


Às vezes este país parece-se com o Cairo,
Com o caótico tráfico rodoviário do Cairo.
Sem código da estrada.
Sem regras.
Sem semáforos.
Sem polícia sinaleiro.
Uma perigosa montanha russa,
Um carrossel desengonçado.
Mas mesmo assim a coisa anda, flui,
E a gente sempre consegue chegar a alguma parte.
Pode não ser o sítio certo,
Mas sempre chega a algum parte.
Ou pelo menos tem essa ilusão de óptica.
Que o importante é chegar, sobreviver, dizem-te.
"Cá vamos andando", responde-te o Zé Portuga,
Quando lhe perguntas como está.
No Portugal sacro-profano, a gente lá vai andando.
Às vezes a gente tropeça e cai,
Para logo se levantar e prosseguir a marcha,
Ora lenta ora brusca.
Agora o pobre do país tenta, a todo o custo,
Não perder a última carruagem
Do comboio chamado Europa.

Há quanto tempo?
Às vezes tenho a impressão
De que essa correria atrás do comboio da Europa
É um filme que dura há já muito,
Há anos, há séculos, quiçá desde sempre...
Um daqueles filmes, mudos,
Que a gente via no nosso cinema de bairro.
Quando havia cinema de bairro
E filmes mudos
E a Fénix da Europa renascia das cinzas
E eu vivia num país orgulhosamente só.
Pobrezinhos mas orgulhosamente sós.

Mas tal comparação é injusta e ofensiva
Para com os portugas, para com o Zé Portuga:
Na realidade, é a política deste país
Que se parece com o caótico trânsito cairota...
É a política, são os políticos,
Os seus dirigentes, a sua elite...
É a gestão da coisa pública, ou a falta dela,
O laxismo, o cansaço, a falta de imaginação,
A perda de valores, a ausência de liderança,
A opacidade das regras ou melhor o seu vazio,
A ligeireza, a falta de lata, de vergonha, de carácter...

Às vezes apetece-me gritar, ao homem do leme,
Ao motorista do táxi, ao condutor do carro de bois,
Ao simples peão, a mim próprio:
"Ala malek"!, mais depressa, homem,
Que se faz tarde,
E que ainda perdes a última carruagem do último comboio.


2. "Ala malek", em árabe, quer dizer mais depressa. É sempre bom, em qualquer esquina do mundo, ter meia dúzia de palavras do patois local na ponta da língua...

Leio, aloém disso, na minha Guia prática para viajar a Egipto (guia, no feminino, na língua de Cervantes), que levei comigo no tórrido passado mês de Agosto para a terra dos filhos dos faraós: "Los taxis de El Cairo son blancos y negros, con una placa naranja en la que aparece el número de la licencia".

Esta informação é sempre útil, mesmo quando a gente não tenciona andar de táxi porque vai com um pacote de férias onde está tudo incluído, desde o hotel aos transportes, ao guarda-costa, à entrada nos museus e à mão estendida dos indígenas. Fico a saber, incrédulo ma no troppo, que "los contadores" (os taxímetros) só se utilizam "raramente" (já imaginava!) e que a coisa "deberá hacerse con una tarifa oficial" (como em toda parte, há dois mundos, o de superfície e o subterrâneo). Mais: "Lo mejor es indicar el destino, pactar un precio, y pagar al llegar a destino".

Ah!, como eu gostaria de poder recorrer, no meu país, a este expediente, tão prático e tão cómodo, de indicar ao motorista da Nação um destino, negociar um preço e pagar-lhe só no fim do serviço... Com a condição de ele não me deixar especado, no meio da rua, sem passaporte, sem dinheiro, sem guia, sem mapa, sem bagagens, sem ideias, sem pinga de sangue!

Claro, há depois os conselhos do amigo da onça: "No olvide la propina". A propina é universal, mô camba. "Gasosa, muadié", em mangolês, no falar de Angola. E depois há os naturais problemas de comunicação entre os humanos de diferentes tribos. Nada como consultares o manual prático (manual, porque está sempre à mão; e prático, por que é do tipo pão-pão, queijo-queijo): "Tendrá dificultades para entenderse con el conductor, a no ser que usted conozca el itinerario y puede guiarle con expresiones como izquierda, derecha, etc.".

Ora aqui está uma ideia peregrina e uma coisa que é exportável: e por que não aplicar essa filosofia lapalissiana, tal e qual, ao meu país ? Seguramente que a história seria muito mais apaixonante e divertida se a gente pudesse, a nosso bel-prazer, comandar o homem da jangada de pedra.

Parece-me elementar: esquerda, direita, aprendi eu, na tropa, em longas marchas (es)forçadas. Por outro lado, não adianta gritar às alimárias que te conduzem, que elas nem sequer sabem para que lado é a direita e a esquerda, na língua de Camões. Esquerda, direita, são hieróglifos, dizem os populistas. Em qualquer dos casos, cuidado: "Los taxistas egípcios tienen fama de temerarios al volante". Não andei de táxi no Cairo, mas andei de carroça em Luxor, e posso comprovar que os condutores egípcios encaixam bem no estereótipo.

O Egipto é uma coisa, o Cairo é outra. O Cairo é outro país, é um mundo. É decididamente a maior montanha russa do mundo. Não sei se é, mas a mim pareceu-me, mesmo não conhecendo outras megacidades como Bombaim, Xangai, São Paulo ou Tóquio. Eu, pelo menos, diverti-me a andar no sobe e desce dos viadutos ("pasos elevados"), altos como prédios de cinco ou seis andares. No mínimo, conta com um trânsito infernal, próprio de uma cidade que tem o dobro da população da tua terra, ó Zé Portuga. Apesar dos faraónicos esforços de modernização: "A pesar de que se han construido numerosos pasos elevados, se ha prohibido la circulación por el centro de la ciudad a vehículos pesados a determinadas horas, se ha hecho una carretera de circunvalación, el tráfico en El Cairo sigue siendo un problema fundamental".

Toma nota: O tráfico do Cairo é um problema, um problema fundamental... Mesmo assim, os cairotas são sortudos porque só têm um problema fundamental. Os portugas, esses, queixam-se sempre de terem muitos problemas fundamentais. Nunca os contei, mas devem ser muitos pela frequência e gravidade das queixas.

3. Caro viajante que passas pelo gigantesco Cairo, a caminho do Nilo, das pirâmides e dos demais templos antigos, ou em busca da misteriosa Núbia e da África perdida, a pensar na formosíssima Lisboa dos fenícios ou na mui nobre e invicta cidade do Porto, escreve ou memoriza estes ensinamentos de quem anda há muito neste ofício de globetrotter: "En la ciudad circule al ritmo de los demás. Si es demasiado lento, le adelantarán por los dos lados".

"Acerte o passo, ó sua besta!", que na tropa e lá fora não há lugar para os desalinhados. É verdade que a tartaruga , apesar de lenta em terra, ganhou a luta pela sobrevivência no mar, diz o meu amigo Charles Darwin. Mas tu, no Cairo, estás tramado, se andares como a tartaruga. A regra é não haver regras e não seres nenhum empata: "No hay preferencias: el primero que llega a una intersección, cruza; si espera, sólo logrará confundir a otros conductores". Agora entende-se melhor por que é que os "coches" cairotas andam mais amolgados do que a minha panela de cozer batatas no campismo.

Diga-se de passagem que não vi nenhum velhinha ser passada a ferro na passagem de peões. Também não me lembro de ver passagens de peões. Mas vi gentis polícias a acompanharem simpáticas velhinhas a atravessar a rua. No Cairo, além do fabuloso pôr-do-sol, ainda podes ver este gesto de humanidade. No meu país, terás de travar a fundo, buzinar à velhinha e gritar-lhe meia dúzia de palavrões, daqueles de fazer corar um menino de coro. No meu país, tu terás de gritar ou buzinar para que dêem conta da tua insigificante existência de desalinhado. Também no Cairo, como no resto do mundo motorizado pós-fordista, poderás comprovar que "el uso del claxon es algo habitual".

Last but not the least, nunca pares, em caso algum! É a única regra de segurança que, pessoalmente, deves observar, além de não beberes água da torneira. No Egipto e no resto da África: "Si choca con un peatón o un animal doméstico, que no sea un perro o un gato, no pare, vaya a la estación de policía más cercana. No intente ayudar o salir del coche".

No meu país, leva-se o conselho a sério e ao exagero: já nem se para quando se apropela um gato ou um cão. É assim que a gente cultiva a arte e a ciência do ir andando no Portugal sacro-profano.