18 fevereiro 2006

Guiné 63/74 - DLXI: Um periquito da CCAÇ 12 (António Duarte / Sousa de Castro)

Guiné > Zona Leste > Sector L1 > Destacamento do Rio Undunduma > 1970 > CCAÇ 12 > O Humberto Reis e pessoal do seu pelotão (o 2ºGrupo de Combate)

Arquivo de Humberto Reis (ex-furriel miliciano de operações especiais, CCAÇ 12, Bambadinca, 1969/71)


© Humberto Reis (2006)


1. Através do Sousa de Castro, chegou-nos a seguinte mensagem (que muito nos alegra, pelo menos à malta da CCAÇ 12):

Caro Sousa de Castro

Fui seu companheiro na Guiné.

Fui furriel da CART 3493, tendo estado em Mansambo. Antes da companhia seguir para o sul (suponho Cobumba), fui para a CCAÇ 12 (1) onde acabei por passar a rendição individual e regressar [à Metrópole] em Janeiro de 1974 enquanto que o BART 3873 regressou só em Abril.

Quero dar-lhe os parabéns por ser um activista das nossas recordações, quer através do blogue do Luís Graça, quer noutras paragens na Net. Afigura-se-me que nos faz bem.

Da sua companhia [CART 3494] tenho encontrado o ex-furriel Luciano, que trabalha em seguros, na CGD. Recordo também com muita saudade o Bento, que esteve comigo na especialidade em Vendas Novas. Faleceu em 22 de Abril de 1972.

Um abraço, de camarada para camarada,
António Duarte


2. Resposta do Sousa de Castro ao Duarte:

Antes demais existe uma regra no blogue-fora-nada (Luis Graça & Camaradas da Guiné) que é tratarmo-nos por tu: afinal somos todos mais ou menos da mesma idade, portanto estás à vontade para blogar.

Guiné > Zona Leste > Sector L1 > Xime > 1972 > O Sousa de Castro, 1º cabo radiotelegrafista da CART 3494 (Xime e Mansambo, 1972/74)

Como deves calcular, eu pertenci à CART 3494 do Xime que, depois da CART 3493 transitar para Cobumba, foi ocupar a vossa zona - Mansambo.

O Luís Graça que é o grande obreiro da muita documentação publicada no blogue, também pertenceu à CCAÇ 12 [Bambadinca, 1969/71].

Quanto ao ex-Furriel Luciano creio que estás a falar do Luciano José Marcelino de Jesus, certo? Faz o convite a ele, por mim, para entrar no blogue e tu também... Sou o único da CART 3494 [Xime e Mansambo, 1972/74] que tem estado mais ou menos activo. Precisamos que contem as vossas estórias passadas no teatro de operações na Guiné. Como disseste, isto faz-nos bem. Temos muitas fotos da época publicadas no blogue .

Fui 1º cabo radiotelegrafista e moro em Vila Fria - Viana do Castelo. Manda para o Luis Graça uma pequena estória e uma foto da época e outra actual, para a tertúlia.

Fala com o Luciano para fazer o mesmo, diz-lhe também que o próximo convívio da CART 3494 será realizado em Vila Nova de Gaia pelo ex-Furriel de TRMS Luís Coutinho Domingues, no dia 10 de Junho 2006.

Alfa Bravo, Sousa de Castro


____________

Nota de L.G.

(1) O António Duarte é o primeiro graduado da CCAÇ 12, da época de 1972/74, que chega até nós. Pessoalmente, fico muito feliz, eu e os demais velhinos (se é que me é permitido falar em nome deles, o Humberto Reis, o António Levezinho, o Joaquim Fernandes...) já que fomos nós a formar a CCAÇ 12 (Contuboel e Bambadinca, 1969/71). Vamos ter muito que conversar, Duarte, se estiveres disposto a isso... Pels minhas contas, ainda passaste nove meses com os nossos queridos nharros, entre Abril de 1973 e Janeiro de 1974... Foi isso ? Nove meses que, imagino, não terão sido fáceis...

Recorde-se que em Abril de 1973, segundo informações do Sousa de Castro, a CART 3493 foi para o sul, a companhia dele, que estava no Xime (CART 3493) foi para Mansambo, sendo substituída no Xime pela CCAÇ 12 até à data da independência. Nessa época o Xime continuou ainda a ser mais atacado.

Guiné 63/74 - DLXI: Um periquito da CCAÇ 12 (António Duarte / Sousa de Castro)

Guiné > Zona Leste > Sector L1 > Destacamento do Rio Undunduma > 1970 > CCAÇ 12 > O Humberto Reis e pessoal do seu pelotão (o 2ºGrupo de Combate)

Arquivo de Humberto Reis (ex-furriel miliciano de operações especiais, CCAÇ 12, Bambadinca, 1969/71)


© Humberto Reis (2006)


1. Através do Sousa de Castro, chegou-nos a seguinte mensagem (que muito nos alegra, pelo menos à malta da CCAÇ 12):

Caro Sousa de Castro

Fui seu companheiro na Guiné.

Fui furriel da CART 3493, tendo estado em Mansambo. Antes da companhia seguir para o sul (suponho Cobumba), fui para a CCAÇ 12 (1) onde acabei por passar a rendição individual e regressar [à Metrópole] em Janeiro de 1974 enquanto que o BART 3873 regressou só em Abril.

Quero dar-lhe os parabéns por ser um activista das nossas recordações, quer através do blogue do Luís Graça, quer noutras paragens na Net. Afigura-se-me que nos faz bem.

Da sua companhia [CART 3494] tenho encontrado o ex-furriel Luciano, que trabalha em seguros, na CGD. Recordo também com muita saudade o Bento, que esteve comigo na especialidade em Vendas Novas. Faleceu em 22 de Abril de 1972.

Um abraço, de camarada para camarada,
António Duarte


2. Resposta do Sousa de Castro ao Duarte:

Antes demais existe uma regra no blogue-fora-nada (Luis Graça & Camaradas da Guiné) que é tratarmo-nos por tu: afinal somos todos mais ou menos da mesma idade, portanto estás à vontade para blogar.

Guiné > Zona Leste > Sector L1 > Xime > 1972 > O Sousa de Castro, 1º cabo radiotelegrafista da CART 3494 (Xime e Mansambo, 1972/74)

Como deves calcular, eu pertenci à CART 3494 do Xime que, depois da CART 3493 transitar para Cobumba, foi ocupar a vossa zona - Mansambo.

O Luís Graça que é o grande obreiro da muita documentação publicada no blogue, também pertenceu à CCAÇ 12 [Bambadinca, 1969/71].

Quanto ao ex-Furriel Luciano creio que estás a falar do Luciano José Marcelino de Jesus, certo? Faz o convite a ele, por mim, para entrar no blogue e tu também... Sou o único da CART 3494 [Xime e Mansambo, 1972/74] que tem estado mais ou menos activo. Precisamos que contem as vossas estórias passadas no teatro de operações na Guiné. Como disseste, isto faz-nos bem. Temos muitas fotos da época publicadas no blogue .

Fui 1º cabo radiotelegrafista e moro em Vila Fria - Viana do Castelo. Manda para o Luis Graça uma pequena estória e uma foto da época e outra actual, para a tertúlia.

Fala com o Luciano para fazer o mesmo, diz-lhe também que o próximo convívio da CART 3494 será realizado em Vila Nova de Gaia pelo ex-Furriel de TRMS Luís Coutinho Domingues, no dia 10 de Junho 2006.

Alfa Bravo, Sousa de Castro


____________

Nota de L.G.

(1) O António Duarte é o primeiro graduado da CCAÇ 12, da época de 1972/74, que chega até nós. Pessoalmente, fico muito feliz, eu e os demais velhinos (se é que me é permitido falar em nome deles, o Humberto Reis, o António Levezinho, o Joaquim Fernandes...) já que fomos nós a formar a CCAÇ 12 (Contuboel e Bambadinca, 1969/71). Vamos ter muito que conversar, Duarte, se estiveres disposto a isso... Pels minhas contas, ainda passaste nove meses com os nossos queridos nharros, entre Abril de 1973 e Janeiro de 1974... Foi isso ? Nove meses que, imagino, não terão sido fáceis...

Recorde-se que em Abril de 1973, segundo informações do Sousa de Castro, a CART 3493 foi para o sul, a companhia dele, que estava no Xime (CART 3493) foi para Mansambo, sendo substituída no Xime pela CCAÇ 12 até à data da independência. Nessa época o Xime continuou ainda a ser mais atacado.

Guiné 63/74 - DLX: Nha fidju i fidju de soldado (Paulo Salgado)

Guiné > Olossato > 1970 > O Alf Mil Cav Salgado, dando uma mãozinha ao pessoal dos serviços de saúde da CCAV 2721.

© Paulo Salgado (2005)


Camaradas e Amigos:

Quero contar-vos uma estória. Em 1991, corria um Fiat Uno vermelho na picada, então muito boa, de Varela para S. Domingos [na região do Cacheu]. Lá dentro um casal. Seriam quatro da tarde. O sol ainda aquecia e o carrinho não tinha ar condicionado, apenas o ventinho quente aligeirava a modorra dentro da viatura, entrecortada pelos monossílabos que o casal ia trocando.

De repente, após uma curva, sob o peso de um jigo de verga de palmeira bem carregado de nadas (suponho), uma mulher gritava:
- Bolem, bolea!- .O condutor parou adiante, ajudou a colocar o cesto na bagageira, a arrumar a mulher no banco de trás. A mulher do condutor:
- Boa tarde, boa tarde; tome estas bolachas... para onde vai?
- Pa S. Domingos... - respondeu a convidada. O condutor:
- Manga de calor! - E ela:
- Calor, tchiu! - O condutor:
- A nôs portuguesis... - E ela:
- Ah, nha fidju i fidju de soldado. I lebal pa Lisboa. I na cuida del. I na manda dinheru um bokadu…

O condutor e a mulher ficaram estarrecidos. Aquele soldado... Lá de Portugal... grande exemplo de grandez... Verdadeira, esta estória. Comovente. Rememoro-a, a propósito do que ultimamente se tem falado no nosso blogue .

E queria acrescentar algo. Se me permitis, camaradas. Um aquartelamento. Arame farpado à volta. Saídas para emboscadas, patrulhamentos, golpes de mão; ou sofrer ataques, alguns bem perto, direi mesmo ao arame, ou de longe com mísseis…E, pelo menos 150 tipos entre os 20 e 25 anos (no caso de uma companhia sediada em tabanca). O quê de isolamento, o quê solidão, o quê de sexo – como aguentar tal sofrimento, tal ansiedade?!

Já reparastes como é sofrida uma guerra neste particular aspecto? Tanta coisa aconteceu, camaradas. Algumas estórias não nos dignificam, camaradas. Ainda que nada seja tabu, demos ter algum recato quando falamos de terceiros, de outras pessoas que estão vivas, que deverão ser respeitadas. E a dignidade passa por nós próprios. Nada é tabu. Mas tudo deve ser (re)contado com muita dignidade.

Paulo Salgado (2006)

Recorde-se que, para além de antigo Alf Mil Cav da CCAV 2721, comandada pelo então Cap Cav Tomé (nos idos tempos de 1970/72, lá para os lados do Olossato, a sudoeste de Farim, e depois em Nhacra, a nordeste de Bissau), o Paulo é também, hoje em dia, um cooperante activo, solidário e empenhado, na Guiné-Bissau, estando à frente do Hospital Nacional Simão Mendes (LG)

Guiné 63/74 - DLX: Nha fidju i fidju de soldado (Paulo Salgado)

Guiné > Olossato > 1970 > O Alf Mil Cav Salgado, dando uma mãozinha ao pessoal dos serviços de saúde da CCAV 2721.

© Paulo Salgado (2005)


Camaradas e Amigos:

Quero contar-vos uma estória. Em 1991, corria um Fiat Uno vermelho na picada, então muito boa, de Varela para S. Domingos [na região do Cacheu]. Lá dentro um casal. Seriam quatro da tarde. O sol ainda aquecia e o carrinho não tinha ar condicionado, apenas o ventinho quente aligeirava a modorra dentro da viatura, entrecortada pelos monossílabos que o casal ia trocando.

De repente, após uma curva, sob o peso de um jigo de verga de palmeira bem carregado de nadas (suponho), uma mulher gritava:
- Bolem, bolea!- .O condutor parou adiante, ajudou a colocar o cesto na bagageira, a arrumar a mulher no banco de trás. A mulher do condutor:
- Boa tarde, boa tarde; tome estas bolachas... para onde vai?
- Pa S. Domingos... - respondeu a convidada. O condutor:
- Manga de calor! - E ela:
- Calor, tchiu! - O condutor:
- A nôs portuguesis... - E ela:
- Ah, nha fidju i fidju de soldado. I lebal pa Lisboa. I na cuida del. I na manda dinheru um bokadu…

O condutor e a mulher ficaram estarrecidos. Aquele soldado... Lá de Portugal... grande exemplo de grandez... Verdadeira, esta estória. Comovente. Rememoro-a, a propósito do que ultimamente se tem falado no nosso blogue .

E queria acrescentar algo. Se me permitis, camaradas. Um aquartelamento. Arame farpado à volta. Saídas para emboscadas, patrulhamentos, golpes de mão; ou sofrer ataques, alguns bem perto, direi mesmo ao arame, ou de longe com mísseis…E, pelo menos 150 tipos entre os 20 e 25 anos (no caso de uma companhia sediada em tabanca). O quê de isolamento, o quê solidão, o quê de sexo – como aguentar tal sofrimento, tal ansiedade?!

Já reparastes como é sofrida uma guerra neste particular aspecto? Tanta coisa aconteceu, camaradas. Algumas estórias não nos dignificam, camaradas. Ainda que nada seja tabu, demos ter algum recato quando falamos de terceiros, de outras pessoas que estão vivas, que deverão ser respeitadas. E a dignidade passa por nós próprios. Nada é tabu. Mas tudo deve ser (re)contado com muita dignidade.

Paulo Salgado (2006)

Recorde-se que, para além de antigo Alf Mil Cav da CCAV 2721, comandada pelo então Cap Cav Tomé (nos idos tempos de 1970/72, lá para os lados do Olossato, a sudoeste de Farim, e depois em Nhacra, a nordeste de Bissau), o Paulo é também, hoje em dia, um cooperante activo, solidário e empenhado, na Guiné-Bissau, estando à frente do Hospital Nacional Simão Mendes (LG)

Guiné 63/74 - DLIX: os relatórios militares e a História (Zé Neto)

Texto do José Neto

Meu caro Luis:

Deste-me corda, agora tens de me aturar. Na tua conversa com o Pepito puseste em evidência um facto que eu tenho sentido ao longo deste terço final da minha vida e não o tinha classificado com a clareza do teu experimentado raciocínio: Nós, os que vivemos os factos, temos pressa de transmitir as nossas estórias porque quando se escrever a História já não podemos voltar das tumbas e dizer: Mentiroso!!!

Já aqui li que é uma pena as autoridades militares tardarem em abrir os seus arquivos históricos. Para quê? O que decerto lá consta é o produto do Relatórios e todos nós sabemos quem e como os elaboravam.

Exemplo? Aí vai: Quando em princípios de 1968 Guileje estava a ferro e fogo aterrou na pista uma biela (Dornier) e ficou na placa de manobra com o motor em funcionamento. Quando nos acercamos da aeronave vimos que o passageiro era o coronel comandante do Sector (nesse tempo sediado em Bolama) que gritava pelo comandante e pelo primeiro sargento da CART 1613. A conversa berrada no que me tocou foi:
- Trate de pôr na sua Ordem de Serviço que eu visitei o aquartelamento. - Dito isto ordenou ao piloto que se fizesse aos ares. Nem um saco de correio (a mercadoria mais preciosa que os aviões nos levavam) nos deixou...
- Coronel manda, sargento redige, escriturário bate à máquina e capitão assina.

Na O.S. do Batalhão, passados dias, lá vinha a transcrição: Visitou o aquartelamento de Guilege no passado dia x o Excelentíssimo Coronel y, Comandante do Sector. ´

No aconchego de Santa Luzia (QG/CTIG) ficou-se a saber que as tropas do Sudeste estavam a ser devidamente inspeccionadas. Essa visita consta da História do BART 1896, documento classificado como Confidencial, de que possuo um exemplar.

Mais palavras para quê? Era um artista português, cheio de...pressa.Entretanto ainda voltarei a este tema Relatórios, de outra guerra, a de Angola, mas que julgo significativo.

Um abração e até breve.

Zé Neto

Guiné 63/74 - DLIX: os relatórios militares e a História (Zé Neto)

Texto do José Neto

Meu caro Luis:

Deste-me corda, agora tens de me aturar. Na tua conversa com o Pepito puseste em evidência um facto que eu tenho sentido ao longo deste terço final da minha vida e não o tinha classificado com a clareza do teu experimentado raciocínio: Nós, os que vivemos os factos, temos pressa de transmitir as nossas estórias porque quando se escrever a História já não podemos voltar das tumbas e dizer: Mentiroso!!!

Já aqui li que é uma pena as autoridades militares tardarem em abrir os seus arquivos históricos. Para quê? O que decerto lá consta é o produto do Relatórios e todos nós sabemos quem e como os elaboravam.

Exemplo? Aí vai: Quando em princípios de 1968 Guileje estava a ferro e fogo aterrou na pista uma biela (Dornier) e ficou na placa de manobra com o motor em funcionamento. Quando nos acercamos da aeronave vimos que o passageiro era o coronel comandante do Sector (nesse tempo sediado em Bolama) que gritava pelo comandante e pelo primeiro sargento da CART 1613. A conversa berrada no que me tocou foi:
- Trate de pôr na sua Ordem de Serviço que eu visitei o aquartelamento. - Dito isto ordenou ao piloto que se fizesse aos ares. Nem um saco de correio (a mercadoria mais preciosa que os aviões nos levavam) nos deixou...
- Coronel manda, sargento redige, escriturário bate à máquina e capitão assina.

Na O.S. do Batalhão, passados dias, lá vinha a transcrição: Visitou o aquartelamento de Guilege no passado dia x o Excelentíssimo Coronel y, Comandante do Sector. ´

No aconchego de Santa Luzia (QG/CTIG) ficou-se a saber que as tropas do Sudeste estavam a ser devidamente inspeccionadas. Essa visita consta da História do BART 1896, documento classificado como Confidencial, de que possuo um exemplar.

Mais palavras para quê? Era um artista português, cheio de...pressa.Entretanto ainda voltarei a este tema Relatórios, de outra guerra, a de Angola, mas que julgo significativo.

Um abração e até breve.

Zé Neto

Guiné 63/74 - DLVIII: Bajudas, nem vê-las! (Carlos Marques dos Santos)

Guiné > Zona Leste > Subsector de Geba > Sare Gana > 1968 > o Fur Mil Marques dos Santos (CART 2339, Fá e Mansambo, 1968/69)

© Carlos Marques dos Santos (2006)


1. Acabo de ler um texto sobre Sara Gana (1) e lembrei-me de aditar um conjunto de fotos que atestam a minha passagem por essa tabanca, muito antes de vós e felizmente sem os problemas como os que foram descritos posteriormente.

Guiné > Zona leste > Subsector de Geba Sare Gana > Putos da tabanca armados em "autênticos guerrilheiros"...© Carlos Marques dos Santos (2006)


Estive aí muito poucos dias, pois a nossa missão era reforçar o sector de Geba.
São fotos de uma vida calma, da infância que aí vivia na altura.

A foto da disputa de comida que eu vi, com os meus olhos, impressionou na altura.
O que estava em disputa era somente uma terrina de sopa, sobra do almoço do meu Pelotão.Aquela disputa era a sério. Seria fome? (2)

Guiné > Zona Leste > Subsector de Geba > Sare Gana > 1968 > CART 2339 (Fá e Nansambo,m 1968/69) > Crianças disputando comida da tropa...© Carlos Marques dos Santos (2006)


2. Em relação ao tema que lançaste sobre as relações sexuais, não tenho nada a dizer.
Até nisso fomos privilegiados. Estivemos sempre dentro do arame farpado e sem população, excepto os picadores e suas mulheres. Bajudas, nem vê-las!

No final da comissão ainda houve duas saídas para Bafatá, para fim de semana.
Ao meu pelotão não chegou a vez.

Melhor ainda. Viemos embora para casa. Tinha terminado o mato. Esperava-nos Bissau e o Uíge, em contraposição com o Ana Mafalda de ida, de vómitos e sofrimento de toda a Companhia.

Foi a minha estreia em cruzeiros. No regresso fomos tratados com senhores.
Só que não vieram todos.

Um Abraço
Carlos Marques dos Santos

______

Nota de L.G.

(1) Vd post de 17 de Fevereiro de 2006 > Guiné 63/74 - DLII: Fátima, a furtiva gazela

"(...) Os dias em Sare Ganà [ no subsector de Geba, a noroeste de Bafatá] ainda vão sendo suportáveis, à aparte o calor, as moscas e o estado de sítio...As noites, essas, é que são longas e penosas (...) Resta-me a companhia silenciosa e furtiva da Fátima, uma das mulheres do comandante da milícia (...)".

Vd. também post de 30 de Maio de 2005 > Guiné 69/71 - XXXI: Sare Ganá, a última tabanca de Joladu

(2) Vd post de 30 de Maio de 2005 > Guiné 69/71 - XXXII: As aldeias fulas em autodefesa


" (...) Hoje, de resto, só há duas alternativas para um homem fula: (i) oferece-se como voluntário para o exército colonial, passando primeiro pela milícia; ou (ii) emigra todo os anos, na época das chuvas, para o chão de francês (Senegal) a fim de trabalhar nos campos de mancarra.

"É a única maneira de fugir ao universo concentraccionário da sua tabanca,e sobretudo à fome. Essa fome visceral que leva as crianças a aproveitar tudo aquilo que nós, tugas, nos damos ao luxo de deitar fora (vi-as aqui a assaram na brasa as vísceras de um frango que o bom do Suleimane me arranjou e reparti-las equitativamente entre si).

"Fome, subnutrição, doença, carências de toda a ordem (roupas, medicamentos...) contrastam, de modo chocante, com a relativa opulência com que um tuga , como eu, aqui vive: ainda ontem me vieram trazer o reabastecimento semanal e, entre outros produtos enlatados, deixaram-me cinco quilos (!) de fiambre dinamarquês, para dois mecos, para mim e para o operador de transmissões, já que as praças são desarranchadas. Tivemos de o comer em menos de vinte e quatro horas, sob pena de se estragar com o calor, e, uma vez aberta a lata, repartir o resto do fiambre pelos putos da aldeia e soldados africanos da secção. É claro que lhe chamaram um figo, não tendo desconfiado sequer que tal iguaria pudesse ser feita de carne.. de porco!" (...).

Guiné 63/74 - DLVIII: Bajudas, nem vê-las! (Carlos Marques dos Santos)

Guiné > Zona Leste > Subsector de Geba > Sare Gana > 1968 > o Fur Mil Marques dos Santos (CART 2339, Fá e Mansambo, 1968/69)

© Carlos Marques dos Santos (2006)


1. Acabo de ler um texto sobre Sara Gana (1) e lembrei-me de aditar um conjunto de fotos que atestam a minha passagem por essa tabanca, muito antes de vós e felizmente sem os problemas como os que foram descritos posteriormente.

Guiné > Zona leste > Subsector de Geba Sare Gana > Putos da tabanca armados em "autênticos guerrilheiros"...© Carlos Marques dos Santos (2006)


Estive aí muito poucos dias, pois a nossa missão era reforçar o sector de Geba.
São fotos de uma vida calma, da infância que aí vivia na altura.

A foto da disputa de comida que eu vi, com os meus olhos, impressionou na altura.
O que estava em disputa era somente uma terrina de sopa, sobra do almoço do meu Pelotão.Aquela disputa era a sério. Seria fome? (2)

Guiné > Zona Leste > Subsector de Geba > Sare Gana > 1968 > CART 2339 (Fá e Nansambo,m 1968/69) > Crianças disputando comida da tropa...© Carlos Marques dos Santos (2006)


2. Em relação ao tema que lançaste sobre as relações sexuais, não tenho nada a dizer.
Até nisso fomos privilegiados. Estivemos sempre dentro do arame farpado e sem população, excepto os picadores e suas mulheres. Bajudas, nem vê-las!

No final da comissão ainda houve duas saídas para Bafatá, para fim de semana.
Ao meu pelotão não chegou a vez.

Melhor ainda. Viemos embora para casa. Tinha terminado o mato. Esperava-nos Bissau e o Uíge, em contraposição com o Ana Mafalda de ida, de vómitos e sofrimento de toda a Companhia.

Foi a minha estreia em cruzeiros. No regresso fomos tratados com senhores.
Só que não vieram todos.

Um Abraço
Carlos Marques dos Santos

______

Nota de L.G.

(1) Vd post de 17 de Fevereiro de 2006 > Guiné 63/74 - DLII: Fátima, a furtiva gazela

"(...) Os dias em Sare Ganà [ no subsector de Geba, a noroeste de Bafatá] ainda vão sendo suportáveis, à aparte o calor, as moscas e o estado de sítio...As noites, essas, é que são longas e penosas (...) Resta-me a companhia silenciosa e furtiva da Fátima, uma das mulheres do comandante da milícia (...)".

Vd. também post de 30 de Maio de 2005 > Guiné 69/71 - XXXI: Sare Ganá, a última tabanca de Joladu

(2) Vd post de 30 de Maio de 2005 > Guiné 69/71 - XXXII: As aldeias fulas em autodefesa


" (...) Hoje, de resto, só há duas alternativas para um homem fula: (i) oferece-se como voluntário para o exército colonial, passando primeiro pela milícia; ou (ii) emigra todo os anos, na época das chuvas, para o chão de francês (Senegal) a fim de trabalhar nos campos de mancarra.

"É a única maneira de fugir ao universo concentraccionário da sua tabanca,e sobretudo à fome. Essa fome visceral que leva as crianças a aproveitar tudo aquilo que nós, tugas, nos damos ao luxo de deitar fora (vi-as aqui a assaram na brasa as vísceras de um frango que o bom do Suleimane me arranjou e reparti-las equitativamente entre si).

"Fome, subnutrição, doença, carências de toda a ordem (roupas, medicamentos...) contrastam, de modo chocante, com a relativa opulência com que um tuga , como eu, aqui vive: ainda ontem me vieram trazer o reabastecimento semanal e, entre outros produtos enlatados, deixaram-me cinco quilos (!) de fiambre dinamarquês, para dois mecos, para mim e para o operador de transmissões, já que as praças são desarranchadas. Tivemos de o comer em menos de vinte e quatro horas, sob pena de se estragar com o calor, e, uma vez aberta a lata, repartir o resto do fiambre pelos putos da aldeia e soldados africanos da secção. É claro que lhe chamaram um figo, não tendo desconfiado sequer que tal iguaria pudesse ser feita de carne.. de porco!" (...).

Guiné 63/74 - DLVII: Antologia (36): o massacre do Pidjiguiti (Luís Cabral)

A. Marques Lopes, coronel, DFA, na reserva.

Selecção e comentários do A. Marques Lopes:

Também sei dos massacres da UPA no Norte de Angola, e acho que ninguém os esqueceu. O Mário Dias (1) não sabe, mas eu também sei do massacre de Mueda, em 16 de Junho de 1960, em que as autoridades coloniais mataram centenas de nativos; do massacre da Baixa do Cassange, em Janeiro de 1961, durante uma revolta dos trabalhadores da Cotonang, tendo a tropa e a aviação matado, segundo o MPLA, mais de 10.000 angolanos; ou do massacre de Wiriamu, em 1973.... e também sei de quem, em Barro, matou, duma vez, 10 elementos de população civil controlada pelo PAIGC. Preto também foi massacrado...

Este é o texto que o Luís Cabral (2) escreve no seu livro Crónica da Libertação” (Lisboa: O Jornal. 1984. 65-73) a propósito do massacre de Pidjiguiti (3). Ele fala em mais de 50 mortos. Como ele refere nem a PIDE acreditou que a greve tivesse sido espontânea. E vejam-se os nomes que ele refere como empregados da Casa Gouveia, além dele próprio. E a Casa Gouveia é que tinha a maior parte dos marinheiros amotinados, também refere.

1. Excertos de Crónica da Libertação:

A situação das equipagens das lanchas e outras embarcações das empresas coloniais era, em 1959, bastante deplorável. Os salários variavam entre 150 e 300 escudos; o capitão da embarcação ganhava ainda menos do que o motorista, pois este em geral sabia ler e gozava do estatuto de "civilizado». Os restantes membros da tripulação, sendo considerados «indígenas», tinham de contentar-se com um salário de miséria, sem quaisquer regalias.

O transporte de cabotagem era, sem dúvida, o que garantia os maiores lucros às empresas, dado que os seus encargos por tonelada transportada eram de longe os mais baratos. Para cada viagem, o tripulante recebia, para a sua alimentação, uma determinada quantidade de arroz e mais 15$00 por mês para mafé, quer dizer, $50 por dia destinados à compra dos condimentos necessários ao molho para o arroz.

Havia já muitos meses que os marinheiros vinham pedindo uma melhoria da sua situação, sem qualquer resultado. Faziam-lhes promessas, é certo, mas a mesma situação mantinha-se e os trabalhadores não viam, na verdade, nenhumas perspectivas de mudança.

Encorajados com o descontentamento crescente dos trabalhadores das docas, cuja situação também era escandalosamente má, os marinheiros fizeram saber às empresas que estavam decididos a parar o trabalho, se as suas reivindicações não fossem atendidas. As respostas das direcções das empresas, já concertadas quanto à sua açção, continuaram a ser promessas sem quaisquer garantias.

A situação política no meio dos trabalhadores africanos já não era, no entanto, a mesma na Guiné. O trabalho clandestino do Partido [ PAIGC ] tinha avançado bastante e no meio dos marinheiros e dos homens das docas existiam militantes já seguros da justiça da luta.

A nossa zona geográfica vivia com entusiasmo o fenómeno novo da independência da República da Guiné [Conacri] e seguia os preparativos para a independência do Senegal, tudo isso concorrendo para dar mais força às palavras de ordem do Partido e galvanizar o interesse geral na conquista duma vida melhor e mais digna.

Nesta nova conjuntura, os marinheiros e os trabalhadores do porto juntaram as suas forças, concertaram-se e chegaram à conclusão de que a única solução para os seus males só podia vir da luta corajosa contra as empresas exploradoras.

A partir da noite do dia 2 de Agosto de 1959, as embarcações que chegavam ao porto de Bissau eram cuidadosamente arrumadas nas cercanias do velho cais de Pijiguiti. Os homens desembarcavam confiantes em si próprios e nas cerimónias certamente feitas aqui e ali, onde as entranhas das galinhas sacrificadas teriam futurado um bom augúrio para a luta que se aproximava. Os capitães das lanchas dirigiam-se aos responsáveis das empresas para lhes dizer que os tripulantes tinham abandonado as suas embarcações.

Na manhã do dia 3 de Agosto, centenas de homens estavam estacionados no recinto do cais de Pijiguiti. Nos seus espíritos decididos, a interrogação era grande sobre a reacção das autoridades coloniais, à qual iam opor a sua firme decisão de continuarem a greve enquanto não fossem atendidas as suas reivindicações.

Os chefes das empresas, encabeçados pelo subgerente da Casa Gouveia, mandaram um ultimato aos grevistas: ou regressavam às suas embarcações e aos seus postos de trabalho em terra, ou pediam a intervenção do exército e da polícia. Homens como os que se encontravam ali, no Pijiguiti, juntos, unidos e conscientes dos seus direitos, não podiam ceder a um primeiro ultimato, e mantiveram-se por isso firmes na sua decisão de continuar a luta.

As autoridades estavam atónitas diante da maneira como a greve fora organizada. Nenhuma fuga de informação pudera ser detectada e ali estavam eles impotentes para quebrar o bloco homogéneo que não cedia às ameaças, e que às promessas aliciantes que lhes foram apresentadas, poucas palavras tinham para dizer - mais pão, mais justiça.

No fim da manhã, as autoridades reuniram-se com os dirigentes das empresas para decidir das medidas a tomar A Polícia Internacional e de Defesa do Estado (PIDE), cujos tentáculos criminosos se tinham já estendido aos nossos países, fora surpreendida como toda a gente e teve de reconhecer que havia qualquer coisa de novo na Guiné.

A decisão fatal foi rapidamente tomada: se até à tarde os trabalhadores não retomassem o trabalho, as forças da repressão deviam agir com a maior prontidão e dureza, para servir de exemplo; só uma acção enérgica e pronta das autoridades poderia convencer os grevistas e o povo em geral de que o Governo não estava disposto a ceder à subversão.

Os homens do porto, esses, não estavam dispostos a vergar. Os tambores que no passado tanto tocaram para chamar o povo à resistência até arrebentarem, voltaram de novo a recompor-se para apelar à luta contra a dominação estrangeira. Tinham voltado de novo a vibrar, desta vez com mais força e vigor ao ritmo da nova esperança nascida com o aparecimento do nosso Partido.

A vida em Bissau parecia ter parado para seguir os acontecimentos. Apenas se viam passar nas ruas os carros da polícia até ao momento em que as forças militares e paramilitares avançaram para o porto.

Os trabalhadores em greve fecharam o portão de acesso ao cais de Pijiguiti, apanharam tudo quanto podia servir para se defenderem e aguardaram. Mas como defender-se com remos com paus ou pedaços de ferro, quando o inimigo trazia armas automáticas modernas e estava disposto a matar? E isso, infelizmente, os heróicos trabalhadores do porto ainda não sabiam.

Poucos minutos depois ouviam-se os primeiros tiros: os soldados e a polícia tinham acabado de romper a frágil barragem do portão e penetravam no recinto do cais, atirando impiedosamente contra os grevistas que, a princípio, ainda tentaram defender-se. Cedo, porém, depois de verem cair muitos companheiros, compreenderam que, diante da cruel realidade, a única solução era procurar fugir do cais, para escapar à morte.

À medida que uns caíam mortos ou feridos, outros procuravam por todos os meios alcançar a saída mais livre e a única que parecia segura, tentando, enquanto ainda era tempo, atravessar a estreita passagem que conduzia ao rio Geba, portanto às embarcações que ali estavam ancoradas.

À medida que os homens conseguiam alcançar a ponta do cais, iam-se atirando às águas do rio e nadavam desesperadamente para alcançar as embarcações. A horda colonialista com os monstruosos sucessos alcançados, também avançou para a ponta do cais de Pijiguiti. Fazendo dali calmamente a pontaria, conseguiram ainda matar ou ferir muitos homens entre os que se tinham atirado desesperadamente ao rio Geba. E não eram só militares, ou só militares e agentes da polícia, os que atiravam. Também se juntaram a eles elementos civis com as suas armas pessoais, que depois se vangloriavam da sua participação na caça selvagem aos homens do 3 de Agosto.


Guiné-Bissau > Bissau > Cais do Pidjiguiti

© Paulo Salgado (2005)

Saímos cedo do trabalho. Os escritórios da Casa Gouveia ficavam perto do cais de Pijiguití e não era possível trabalhar com o barulho terrível do tiroteio, tendo às portas tão criminoso espectáculo, sem precedentes nos nossos dias. Ficámos de pé no passeio, mesmo em frente do grande edifício onde trabalhávamos. Além de mim, estavam Carlos Correia, Elysée Turpin (4) e outros colegas. Os polícias que ali passavam, mesmo à nossa frente, estavam muito excitados e queriam mais vítimas, empurrando e provocando as pessoas sem qualquer razão ou talvez com o objectivo premeditado de ver as reacções que se seguiam.

Um dos polícias empurrou pelo peito o Carlos Correia, que protestou pela incorrecção que isso representava. Foi o suficiente para o agente o prender e mandar imediatamente para a esquadra mais próxima. Que podíamos nós, seus companheiros, fazer naquele momento? Unicamente sair dali, procurar abrigar-nos nas nossas casas contra a fúria criminosa desencadeada no porto de Bissau.

Da varanda do meu apartamento, que estava situado frente ao porto, pude presenciar a parte final do monstruoso crime da caça ao homem no rio Geba. O sol desaparecera nessa tarde dos céus de Bissau; a atmosfera pesada e escura parecia gritar com o povo. A tarde sangrenta de 3 de Agosto fizera mais de cinquenta mortos e muitas dezenas de feridos entre os marinheiros pacíficos que mais não queriam que viver um pouco melhor.

Saí. Queria andar, tinha necessidade absoluta de me encontrar com camaradas meus. Consegui alcançar as traseiras do banco onde encontrei alguns camaradas que me informaram de que um marinheiro ferido estava escondido no pavilhão dos solteiros. Fui vê-lo. Tinha um ferimento superficial numa perna e teria certamente sido apanhado pêlos agentes se não o tivessem escondido. O ferido fora cuidadosamente tratado e, a coberto da noite, pôde voltar para a sua casa.

Na noite de 3 de Agosto, reuni-me com o Aristides [Pereira] e o [Fernando] Fortes. Este, na sua qualidade de chefe da Estação Postal, tinha podido meter no correio que devia partir na manhã seguinte, cópias de um comunicado elaborado rapidamente sobre os acontecimentos, endereçadas às principais emissoras escutadas em Bissau. Lembro-me bem que Rádio Brazzaville, BBC, Rádio Conakry e Rádio Dakar, estavam entre aquelas que receberam e difundiram a notícia que os colonialistas não queriam que saísse da Guiné. Simultaneamente, foi também enviado um primeiro relatório ao Amílcar [Cabral] que se encontrava nesse momento em Angola. No dia seguinte de manhã, logo depois da minha chegada aos escritórios da Casa Gouveia, fui ver o subgerente António Carreira e expliquei-lhe como se tinha dado a prisão do camarada Carlos Correia. Telefonou imediatamente à polícia e o Carlos foi posto em liberdade.

Entretanto, o Aristides tinha sido requisitado pela polícia política para estar em permanência ao seu serviço. As conversações telefónicas do governador ou do director da PIDE, com Lisboa, revestiam-se de um carácter altamente secreto e só podiam, por isso, ser controladas pessoalmente por ele, chefe da Estação, como pessoa de toda a confiança.

Naquela mesma tarde, o director da PIDE em Bissau, falou com o seu director-geral em Lisboa. Este queria as últimas notícias; não acreditavam que a greve tivesse sido organizada pelos próprios marinheiros, quase todos analfabetos. Havia certamente alguém com mais conhecimentos e experiência por trás, a dirigir e a orientar a acção; era absolutamente indispensável encontrar essa pessoa. Não se teria distinguido, por acaso, no meio da confusão, nenhum filho da Guiné com habilitações a que se pudesse atribuir tal responsabilidade ?

O director-geral da PIDE insistiu para que o seu representante pensasse bem e se informasse junto da Polícia de Segurança Pública; que também pusesse os seus agentes em campo para recolherem todas as. informações que conduzissem à identificação dos promotores da greve de 3 de Agosto. O director de Bissau lembrou-se então da prisão de Carlos Correia, no próprio momento da confrontação das autoridades com os grevistas: era africano, filho da Guiné, tinha o Curso Geral dos Liceus e ainda por cima trabalhava na Casa Gouveia, onde havia o maior número de marinheiros. «Prenda-o de novo —disse o director-geral — e mande-o para cá, para ser interrogado por nós.»

Toda a gente sabia o que eram os interrogatórios da PIDE, em Lisboa. Quantos não foram os patriotas portugueses e africanos que sucumbiram às torturas e maus tratos da polícia fascista!

O Aristides mandou imediatamente avisar o Carlos, que me devia contactar e fazer tudo para sair do país, antes de ser de novo apanhado pela policia.

Carlos saiu nesse mesmo instante à minha procura. Foi primeiro à minha casa, embora isso tivesse sido imprudente, pois se alguém o visse a entrar no fim da tarde no prédio de três andares onde eu era o único africano residente, saberia logo que ele só podia dirigir-se à minha casa; procurou-me em seguida em casa da dra. Sofia Pomba Guerra.

A noite acabava de cair bruscamente quando finalmente me encontrou na Sede do Benfica. Chuviscava um pouco, mas mesmo assim saí à rua para falarmos longe de possíveis ouvidos curiosos. Carlos estava acompanhado de um amigo, quando me pôs ao corrente da situação. Disse-lhe que fosse imediatamente esconder-se e que só se mostrasse quando eu mandasse chamá-lo. Pedi-lhe o seu impermeável, e confirmei que tudo seria tratado de forma que ele pudesse sair do país ainda naquela noite.

Tomava-se indispensável encontrar o Elysée Turpin, o homem do nosso grupo capaz de conseguir um meio de transporte. Com a ajuda do meu irmão Toi, que tinha uma motorizada, saímos à procura do Elysée que sempre considerámos o homem mais difícil de encontrar em Bissau, depois das horas de trabalho. Encontrámo-lo finalmente e, informando-o da situação, disse-lhe que tinha de conseguir um carro para pôr o Carlos na fronteira naquela mesma noite. O único indivíduo das suas relações que tinha uma camioneta era conhecido notoriamente pelas relações com a polícia, mas não tínhamos outra escolha e não havia tempo para hesitações. Ficou combinado que o Elysée pediria o carro explicando abertamente qual o objectivo da missão. Confiámos assim nas boas relações existentes entre os dois, e também porque o Carlos era um jovem com muita simpatia e respeito, em Bissau, para o que concorria, além da sua idoneidade moral, o facto de ser um excelente praticante do futebol.



Guiné-Bissau > Bissau > Planta da cidade, da época a seguir à independência.

© A. Marques Lopes (2005)


Enquanto o Elysée devia garantir o transporte para a fronteira, eu fui por outro lado à procura dos meios para a viagem. Terminados os preparativos para a sua saída imediata, precisava encontrar-me com o Carlos e comunicar-lhe os planos estabelecidos. Estava muito escuro e continuava a chuviscar. Aproximava-me da casa da sua mãe, no Chão de Papel. Ia todo envolvido no seu impermeável, quando senti que um carro se aproximava muito devagar atrás de mim. Não parei. Os faróis chegaram tão perto que pareciam queimar-me. O pára-choques do carro quase bateu nas minhas pernas, quando parou.

Voltei-me então e vi que se tratava de um jipe militar cheio de homens fardados; pensei logo que a sua chegada estava relacionada com a prisão do Carlos. Os militares riam quando arrancaram de novo, continuando a sua ronda em direcção à Central Eléctrica. Confesso que, apesar do fresco da chuva, estava a transpirar dentro do impermeável de borracha. Felizmente, os homens só quiseram divertir-se à minha custa.

Voltei para trás e aproximei-me da casa do Carlos. Tive de pedir ao irmão que o fosse procurar. É que eu tinha-lhe dito que se escondesse bem, mas não ficou estabelecido onde.

O Elysée apareceu confirmando que tinha conseguido o carro. Ele seguiria pela estrada do Aeroporto e o Carlos, na sua motorizada, iria juntar-se-lhe, logo que o víssemos. Ficou ainda assente que o Elysée faria tudo para estar de regresso antes das sete da manhã, para não faltar ao trabalho, não fosse a polícia ligar a sua ausência com a fuga do seu colega de serviço.

Chegou finalmente o Carlos. Via-se que estava preocupado, apesar da sua calma aparente. Dei-lhe o dinheiro e o impermeável, abraçámo-nos, tomou a motorizada e partiu. Eram mais ou menos dez horas da noite. O seu irmão mais novo devia passar pela Gouveia à hora da abertura dos escritórios para dizer que o Carlos estava doente.

Foi só depois da partida do Carlos, quando regressava a casa na pequena motorizada conduzida pelo meu irmão, que me apercebi dos erros e imprudências que foram cometidos: ele andou à minha procura em minha casa e noutros lugares e era muito natural que nos tivessem visto juntos conversando à porta do Benfica; entretanto, na manhã seguinte, nada se sabia do Carlos em Bissau. Convenci-me de que a PIDE, a famigerada PIDE que acabava sempre por saber tudo, facilmente me identificaria como sendo uma das pessoas que intervieram directamente na fuga do Carlos.

O meu estado de excitação era, pois, bastante grande no dia seguinte. Tentava imaginar como seria interrogado pela polícia e ia formando mentalmente as respostas que daria às suas perguntas. Recorri à dra. Sofia e ela aconselhou-me a tomar um calmante que me ajudaria a controlar. Arranjou-me um medicamento a que chamou a «pastilha da felicidade». Eu precisava de facto de muita calma, no caso de ser interpelado pela PIDE...

À nossa chegada ao trabalho, no dia seguinte, às 7.30 h, o Elysée informou-me que conduzira o Carlos até à jangada de Barro, continuando ele, a partir dali, na sua motorizada a caminho da fronteira senegalesa. Via-se bem que não tinha dormido a noite toda.

Antes das oito horas, já o irmão do Carlos aparecia para dizer que ele estava doente e não podia apresentar-se na Gouveia. Alguns minutos depois, chegavam os homens da PIDE. Contactaram a direcção e perguntaram pelo Carlos. Saíram imediatamente e foram à casa da sua mãe, mas o Carlos tinha desaparecido sem deixar rastos.

O Elysée, entretanto, pedira licença para sair. Ia dormir...

Logo que recebeu a comunicação sobre o massacre de Pijiguiti, o Amílcar fez-nos saber que passaria por Bissau o mais breve possível, para fazermos o balanço dos acontecimentos e definir o caminho a seguir.

Comentário do A. Marques Lopes:

Naturalmente, as consequências trágicas desta greve foram aproveitadas pelo PAIGC. Como refere o Luís Cabral, a páginas 75 e 76 do seu livro:

2.Excertos de Crónica da Libertação:


O massacre de 3 de Agosto, com todo o seu terrível conteúdo de horror e desespero, servira para acordar a consciência de muitos nacionalistas hesitantes. Veio provar a necessidade de lutar por todos os meios para destruir o colonialismo, o que exigia um trabalho longo e duro, pleno de sacrifícios.

Guiné > Amílcar Cabral (1924-1973), o líder do PAIGC, soube tirar as devidas ilações dos terríveis acontecimentos do dia 3 de Agosto de 1959. Ainda hoje se discute se a greve dos marinheiros e trabalhadores portuários do Pidjiguiti foi conduzida pelo PAIGC, ainda em fase incipiente de organização, ou se foi apenas aproveitada pelo PAIGC, em termos políticos... (LG)

Foto: © CaboVerdeOnline.com(2001-2006). Com a devida vénia...

Na reunião com o Amilcar (19/9/959), depois do nosso relatório sobre os trágicos acontecimentos de 3 de Agosto, ele referiu-se longamente às lições que o Partido devia tirar desses acontecimentos, de maneira que não ficassem vãos os sacrifícios domártires de Pijiguiti.

Não podíamos brincar com um inimigo que provara mais uma vez ser de uma crueldade sem limites. Quando tivéssemos de agir contra ele, tínhamos de estar preparados para todas as eventualidades e ser capazes de não nos deixarmos matar impunemente.

Não restavam dúvidas que a repressão à greve de 3 de Agosto, e a maneira pronta como ela pôde ser organizada, provaram-nos que, na capital, o inimigo era e seria sempre mais forte do que nós. Tinha o seu exército, a sua polícia, os seus carros, o seu dinheiro para comprar a consciência de muitos dos nossos compatriotas. Quase toda a população urbana dependia das autoridades e das empresas coloniais para viverem; tudo isto colocava o grupo de patriotas nacionalistas numa situação de inferioridade manifesta.

Ao contrário, nas imensas zonas rurais onde vivia a maioria esmagadora do nosso povo, o homem não dependia dos colonialistas para viver: era, ao contrário, o homem do campo que alimentava a gente da cidade e fazia prosperar o colonialista. Era do campo que vinham o arroz, a mancarra, o coconote, as hortaliças, e grande parte do dinheiro dos impostos. A população ali, não só não dependia dos colonialistas, como ainda não se identificava com eles, o homem do campo conseguiu, através dos séculos, do tempo de escravatura ao dos trabalhos forçados e dos impostos arbitrários, encouraçar-se na sua própria personalidade cultural e era lá que encontrava as forças para resistir à poderosa influência do inimigo.

A lição mais importante tirada do massacre de Pijiguiti, dizia-nos, portanto, que seria junto da população camponesa do nosso país que teríamos de procurar as forças necessárias para combater e vencer o colonialismo. Não devíamos sacrificar os nossos homens, o capital mais precioso da nossa vida, numa confrontação desigual na cidade. Devíamos, sim, organizar a nossa gente cada vez melhor, prepará-la cuidadosamente para a grande batalha que seria desencadeada, primeiro, no campo, onde acumularia as forças necessárias para se alastrar às cidades.

Impunha-se, desde então, começar a seleccionar os jovens mais capazes que teriam de sair do país, para receberem no estrangeiro uma preparação especial com vista à realização da grande tarefa que tínhamos à nossa frente. Depois da criminosa e sangrenta repressão aos corajosos grevistas de 3 de Agosto — mártires da gloriosa libertação do nosso povo — íamo-nos preparar cuidadosamente para entrar com força irreversível numa nova fase da luta (5).

____________

Notas de L.G.

(1) Vd. post de 15 de Fevereiro de 2006 > Guiné 63/74 - DXXXV: Pidjiguiti, 3 de Agosto de 1959: eu estive lá (Mário Dias)

"Muito se tem escrito e comentado sobre os acontecimentos que tiveram lugar no cais do Pidjiguiti em 3 de Agosto de 1959. Eu estive lá. À época dos factos, cumpria o serviço militar obrigatório, ainda como recruta (o Juramento de Bandeira teve lugar uma semana depois, precisamente a 10 de Agosto) (...).

(2) Luís de Almeida Cabral, meio-irmão de Amílcar Cabral (1924-1973), nasceu a 10 de Abril de 1931, tendo sido o primeiro presidente da República da Guíné-Bissau (1973-1980). Na sequência do 25 de Abril de 1974, Portugal reconhece, em 10 de Setembro de 1974, de jure e de facto, a independência da sua antiga província ultramarina (colónia, até 1951).

Luís Cabral assumiu a liderança do PAIGC após o assassinato de Amílcar, em Conacri, em 20 de Janeiro de 1973. Foi derrubado em 1980 por um golpe militar, liderado por João Bernardo Vieira ('Nino' Vieira), que jogou a facção guineense contra a facção dita cabioverdiana do PAIGC . Após 13 meses de detenção, foi para o exílio, primeiro em Cuba e depois em Portugal. Voltou à sua terra em 1999, depois de 'Nino' Vieira ter sido, ele próprio, derrubado por um outro golpe de estado...

Luís Cabral era empregado da Casa Gouveia em 3 de Agosto de 1959.

Vd. ainda a cronobiografia de Amílcar Cabral, em formato.pdf, disponível no sítio da Fundação Mário Soares.

(3) Repare-se que na edição de O Jornal, de 1984, a grafia que é usada é Pijigutí... Opta-se por usar a mais corrente ou vulgarizada (Pidjiguiti), mesmo que não seja a mais correcta, do ponto de vista lexicográfico...

(4) Sobre este fundador do PAIGC, vd posts de:

(i) 12 de Novembro de 2005 > Guiné 63/74 - CCLXXXV: Antologia (24): Elisée Turpin, co-fundador do PAIGC

" (...) O intensificar de actividades e constantes movimentações políticas levaram a que a PIDE reforçasse as perseguições e, consequentemente, muitos activistas foram sendo aprisionados e torturados nas diferentes celas de prisões. Este facto e outros, nomeadamente os acontecimentos de Pidjiguiti em 1959, levaram à tomada de decisão do Partido de instalar a sua Direcção no país vizinho independente - Guiné Conakry" (...).

(ii) 14 de Novembro de 2005 > Guiné 63/74 - CCLXXXVIII: Memórias de Turpin e da Bissau do seu tempo

"Mais informações, pormenorizadas, sobre o Turpin, por parte do Sargento Mário Dias, dos comandos, ex-camarada do Virgínio Briote (por cujo intermédio chegou esta mensagem) (...)

(5) Hoje esta data é feriado nacional na Guiné-Bissau e no local foi construído ao monumento aos heróis do Pidjiguiti.

Guiné 63/74 - DLVII: Antologia (36): o massacre do Pidjiguiti (Luís Cabral)

A. Marques Lopes, coronel, DFA, na reserva.

Selecção e comentários do A. Marques Lopes:

Também sei dos massacres da UPA no Norte de Angola, e acho que ninguém os esqueceu. O Mário Dias (1) não sabe, mas eu também sei do massacre de Mueda, em 16 de Junho de 1960, em que as autoridades coloniais mataram centenas de nativos; do massacre da Baixa do Cassange, em Janeiro de 1961, durante uma revolta dos trabalhadores da Cotonang, tendo a tropa e a aviação matado, segundo o MPLA, mais de 10.000 angolanos; ou do massacre de Wiriamu, em 1973.... e também sei de quem, em Barro, matou, duma vez, 10 elementos de população civil controlada pelo PAIGC. Preto também foi massacrado...

Este é o texto que o Luís Cabral (2) escreve no seu livro Crónica da Libertação” (Lisboa: O Jornal. 1984. 65-73) a propósito do massacre de Pidjiguiti (3). Ele fala em mais de 50 mortos. Como ele refere nem a PIDE acreditou que a greve tivesse sido espontânea. E vejam-se os nomes que ele refere como empregados da Casa Gouveia, além dele próprio. E a Casa Gouveia é que tinha a maior parte dos marinheiros amotinados, também refere.

1. Excertos de Crónica da Libertação:

A situação das equipagens das lanchas e outras embarcações das empresas coloniais era, em 1959, bastante deplorável. Os salários variavam entre 150 e 300 escudos; o capitão da embarcação ganhava ainda menos do que o motorista, pois este em geral sabia ler e gozava do estatuto de "civilizado». Os restantes membros da tripulação, sendo considerados «indígenas», tinham de contentar-se com um salário de miséria, sem quaisquer regalias.

O transporte de cabotagem era, sem dúvida, o que garantia os maiores lucros às empresas, dado que os seus encargos por tonelada transportada eram de longe os mais baratos. Para cada viagem, o tripulante recebia, para a sua alimentação, uma determinada quantidade de arroz e mais 15$00 por mês para mafé, quer dizer, $50 por dia destinados à compra dos condimentos necessários ao molho para o arroz.

Havia já muitos meses que os marinheiros vinham pedindo uma melhoria da sua situação, sem qualquer resultado. Faziam-lhes promessas, é certo, mas a mesma situação mantinha-se e os trabalhadores não viam, na verdade, nenhumas perspectivas de mudança.

Encorajados com o descontentamento crescente dos trabalhadores das docas, cuja situação também era escandalosamente má, os marinheiros fizeram saber às empresas que estavam decididos a parar o trabalho, se as suas reivindicações não fossem atendidas. As respostas das direcções das empresas, já concertadas quanto à sua açção, continuaram a ser promessas sem quaisquer garantias.

A situação política no meio dos trabalhadores africanos já não era, no entanto, a mesma na Guiné. O trabalho clandestino do Partido [ PAIGC ] tinha avançado bastante e no meio dos marinheiros e dos homens das docas existiam militantes já seguros da justiça da luta.

A nossa zona geográfica vivia com entusiasmo o fenómeno novo da independência da República da Guiné [Conacri] e seguia os preparativos para a independência do Senegal, tudo isso concorrendo para dar mais força às palavras de ordem do Partido e galvanizar o interesse geral na conquista duma vida melhor e mais digna.

Nesta nova conjuntura, os marinheiros e os trabalhadores do porto juntaram as suas forças, concertaram-se e chegaram à conclusão de que a única solução para os seus males só podia vir da luta corajosa contra as empresas exploradoras.

A partir da noite do dia 2 de Agosto de 1959, as embarcações que chegavam ao porto de Bissau eram cuidadosamente arrumadas nas cercanias do velho cais de Pijiguiti. Os homens desembarcavam confiantes em si próprios e nas cerimónias certamente feitas aqui e ali, onde as entranhas das galinhas sacrificadas teriam futurado um bom augúrio para a luta que se aproximava. Os capitães das lanchas dirigiam-se aos responsáveis das empresas para lhes dizer que os tripulantes tinham abandonado as suas embarcações.

Na manhã do dia 3 de Agosto, centenas de homens estavam estacionados no recinto do cais de Pijiguiti. Nos seus espíritos decididos, a interrogação era grande sobre a reacção das autoridades coloniais, à qual iam opor a sua firme decisão de continuarem a greve enquanto não fossem atendidas as suas reivindicações.

Os chefes das empresas, encabeçados pelo subgerente da Casa Gouveia, mandaram um ultimato aos grevistas: ou regressavam às suas embarcações e aos seus postos de trabalho em terra, ou pediam a intervenção do exército e da polícia. Homens como os que se encontravam ali, no Pijiguiti, juntos, unidos e conscientes dos seus direitos, não podiam ceder a um primeiro ultimato, e mantiveram-se por isso firmes na sua decisão de continuar a luta.

As autoridades estavam atónitas diante da maneira como a greve fora organizada. Nenhuma fuga de informação pudera ser detectada e ali estavam eles impotentes para quebrar o bloco homogéneo que não cedia às ameaças, e que às promessas aliciantes que lhes foram apresentadas, poucas palavras tinham para dizer - mais pão, mais justiça.

No fim da manhã, as autoridades reuniram-se com os dirigentes das empresas para decidir das medidas a tomar A Polícia Internacional e de Defesa do Estado (PIDE), cujos tentáculos criminosos se tinham já estendido aos nossos países, fora surpreendida como toda a gente e teve de reconhecer que havia qualquer coisa de novo na Guiné.

A decisão fatal foi rapidamente tomada: se até à tarde os trabalhadores não retomassem o trabalho, as forças da repressão deviam agir com a maior prontidão e dureza, para servir de exemplo; só uma acção enérgica e pronta das autoridades poderia convencer os grevistas e o povo em geral de que o Governo não estava disposto a ceder à subversão.

Os homens do porto, esses, não estavam dispostos a vergar. Os tambores que no passado tanto tocaram para chamar o povo à resistência até arrebentarem, voltaram de novo a recompor-se para apelar à luta contra a dominação estrangeira. Tinham voltado de novo a vibrar, desta vez com mais força e vigor ao ritmo da nova esperança nascida com o aparecimento do nosso Partido.

A vida em Bissau parecia ter parado para seguir os acontecimentos. Apenas se viam passar nas ruas os carros da polícia até ao momento em que as forças militares e paramilitares avançaram para o porto.

Os trabalhadores em greve fecharam o portão de acesso ao cais de Pijiguiti, apanharam tudo quanto podia servir para se defenderem e aguardaram. Mas como defender-se com remos com paus ou pedaços de ferro, quando o inimigo trazia armas automáticas modernas e estava disposto a matar? E isso, infelizmente, os heróicos trabalhadores do porto ainda não sabiam.

Poucos minutos depois ouviam-se os primeiros tiros: os soldados e a polícia tinham acabado de romper a frágil barragem do portão e penetravam no recinto do cais, atirando impiedosamente contra os grevistas que, a princípio, ainda tentaram defender-se. Cedo, porém, depois de verem cair muitos companheiros, compreenderam que, diante da cruel realidade, a única solução era procurar fugir do cais, para escapar à morte.

À medida que uns caíam mortos ou feridos, outros procuravam por todos os meios alcançar a saída mais livre e a única que parecia segura, tentando, enquanto ainda era tempo, atravessar a estreita passagem que conduzia ao rio Geba, portanto às embarcações que ali estavam ancoradas.

À medida que os homens conseguiam alcançar a ponta do cais, iam-se atirando às águas do rio e nadavam desesperadamente para alcançar as embarcações. A horda colonialista com os monstruosos sucessos alcançados, também avançou para a ponta do cais de Pijiguiti. Fazendo dali calmamente a pontaria, conseguiram ainda matar ou ferir muitos homens entre os que se tinham atirado desesperadamente ao rio Geba. E não eram só militares, ou só militares e agentes da polícia, os que atiravam. Também se juntaram a eles elementos civis com as suas armas pessoais, que depois se vangloriavam da sua participação na caça selvagem aos homens do 3 de Agosto.


Guiné-Bissau > Bissau > Cais do Pidjiguiti

© Paulo Salgado (2005)

Saímos cedo do trabalho. Os escritórios da Casa Gouveia ficavam perto do cais de Pijiguití e não era possível trabalhar com o barulho terrível do tiroteio, tendo às portas tão criminoso espectáculo, sem precedentes nos nossos dias. Ficámos de pé no passeio, mesmo em frente do grande edifício onde trabalhávamos. Além de mim, estavam Carlos Correia, Elysée Turpin (4) e outros colegas. Os polícias que ali passavam, mesmo à nossa frente, estavam muito excitados e queriam mais vítimas, empurrando e provocando as pessoas sem qualquer razão ou talvez com o objectivo premeditado de ver as reacções que se seguiam.

Um dos polícias empurrou pelo peito o Carlos Correia, que protestou pela incorrecção que isso representava. Foi o suficiente para o agente o prender e mandar imediatamente para a esquadra mais próxima. Que podíamos nós, seus companheiros, fazer naquele momento? Unicamente sair dali, procurar abrigar-nos nas nossas casas contra a fúria criminosa desencadeada no porto de Bissau.

Da varanda do meu apartamento, que estava situado frente ao porto, pude presenciar a parte final do monstruoso crime da caça ao homem no rio Geba. O sol desaparecera nessa tarde dos céus de Bissau; a atmosfera pesada e escura parecia gritar com o povo. A tarde sangrenta de 3 de Agosto fizera mais de cinquenta mortos e muitas dezenas de feridos entre os marinheiros pacíficos que mais não queriam que viver um pouco melhor.

Saí. Queria andar, tinha necessidade absoluta de me encontrar com camaradas meus. Consegui alcançar as traseiras do banco onde encontrei alguns camaradas que me informaram de que um marinheiro ferido estava escondido no pavilhão dos solteiros. Fui vê-lo. Tinha um ferimento superficial numa perna e teria certamente sido apanhado pêlos agentes se não o tivessem escondido. O ferido fora cuidadosamente tratado e, a coberto da noite, pôde voltar para a sua casa.

Na noite de 3 de Agosto, reuni-me com o Aristides [Pereira] e o [Fernando] Fortes. Este, na sua qualidade de chefe da Estação Postal, tinha podido meter no correio que devia partir na manhã seguinte, cópias de um comunicado elaborado rapidamente sobre os acontecimentos, endereçadas às principais emissoras escutadas em Bissau. Lembro-me bem que Rádio Brazzaville, BBC, Rádio Conakry e Rádio Dakar, estavam entre aquelas que receberam e difundiram a notícia que os colonialistas não queriam que saísse da Guiné. Simultaneamente, foi também enviado um primeiro relatório ao Amílcar [Cabral] que se encontrava nesse momento em Angola. No dia seguinte de manhã, logo depois da minha chegada aos escritórios da Casa Gouveia, fui ver o subgerente António Carreira e expliquei-lhe como se tinha dado a prisão do camarada Carlos Correia. Telefonou imediatamente à polícia e o Carlos foi posto em liberdade.

Entretanto, o Aristides tinha sido requisitado pela polícia política para estar em permanência ao seu serviço. As conversações telefónicas do governador ou do director da PIDE, com Lisboa, revestiam-se de um carácter altamente secreto e só podiam, por isso, ser controladas pessoalmente por ele, chefe da Estação, como pessoa de toda a confiança.

Naquela mesma tarde, o director da PIDE em Bissau, falou com o seu director-geral em Lisboa. Este queria as últimas notícias; não acreditavam que a greve tivesse sido organizada pelos próprios marinheiros, quase todos analfabetos. Havia certamente alguém com mais conhecimentos e experiência por trás, a dirigir e a orientar a acção; era absolutamente indispensável encontrar essa pessoa. Não se teria distinguido, por acaso, no meio da confusão, nenhum filho da Guiné com habilitações a que se pudesse atribuir tal responsabilidade ?

O director-geral da PIDE insistiu para que o seu representante pensasse bem e se informasse junto da Polícia de Segurança Pública; que também pusesse os seus agentes em campo para recolherem todas as. informações que conduzissem à identificação dos promotores da greve de 3 de Agosto. O director de Bissau lembrou-se então da prisão de Carlos Correia, no próprio momento da confrontação das autoridades com os grevistas: era africano, filho da Guiné, tinha o Curso Geral dos Liceus e ainda por cima trabalhava na Casa Gouveia, onde havia o maior número de marinheiros. «Prenda-o de novo —disse o director-geral — e mande-o para cá, para ser interrogado por nós.»

Toda a gente sabia o que eram os interrogatórios da PIDE, em Lisboa. Quantos não foram os patriotas portugueses e africanos que sucumbiram às torturas e maus tratos da polícia fascista!

O Aristides mandou imediatamente avisar o Carlos, que me devia contactar e fazer tudo para sair do país, antes de ser de novo apanhado pela policia.

Carlos saiu nesse mesmo instante à minha procura. Foi primeiro à minha casa, embora isso tivesse sido imprudente, pois se alguém o visse a entrar no fim da tarde no prédio de três andares onde eu era o único africano residente, saberia logo que ele só podia dirigir-se à minha casa; procurou-me em seguida em casa da dra. Sofia Pomba Guerra.

A noite acabava de cair bruscamente quando finalmente me encontrou na Sede do Benfica. Chuviscava um pouco, mas mesmo assim saí à rua para falarmos longe de possíveis ouvidos curiosos. Carlos estava acompanhado de um amigo, quando me pôs ao corrente da situação. Disse-lhe que fosse imediatamente esconder-se e que só se mostrasse quando eu mandasse chamá-lo. Pedi-lhe o seu impermeável, e confirmei que tudo seria tratado de forma que ele pudesse sair do país ainda naquela noite.

Tomava-se indispensável encontrar o Elysée Turpin, o homem do nosso grupo capaz de conseguir um meio de transporte. Com a ajuda do meu irmão Toi, que tinha uma motorizada, saímos à procura do Elysée que sempre considerámos o homem mais difícil de encontrar em Bissau, depois das horas de trabalho. Encontrámo-lo finalmente e, informando-o da situação, disse-lhe que tinha de conseguir um carro para pôr o Carlos na fronteira naquela mesma noite. O único indivíduo das suas relações que tinha uma camioneta era conhecido notoriamente pelas relações com a polícia, mas não tínhamos outra escolha e não havia tempo para hesitações. Ficou combinado que o Elysée pediria o carro explicando abertamente qual o objectivo da missão. Confiámos assim nas boas relações existentes entre os dois, e também porque o Carlos era um jovem com muita simpatia e respeito, em Bissau, para o que concorria, além da sua idoneidade moral, o facto de ser um excelente praticante do futebol.



Guiné-Bissau > Bissau > Planta da cidade, da época a seguir à independência.

© A. Marques Lopes (2005)


Enquanto o Elysée devia garantir o transporte para a fronteira, eu fui por outro lado à procura dos meios para a viagem. Terminados os preparativos para a sua saída imediata, precisava encontrar-me com o Carlos e comunicar-lhe os planos estabelecidos. Estava muito escuro e continuava a chuviscar. Aproximava-me da casa da sua mãe, no Chão de Papel. Ia todo envolvido no seu impermeável, quando senti que um carro se aproximava muito devagar atrás de mim. Não parei. Os faróis chegaram tão perto que pareciam queimar-me. O pára-choques do carro quase bateu nas minhas pernas, quando parou.

Voltei-me então e vi que se tratava de um jipe militar cheio de homens fardados; pensei logo que a sua chegada estava relacionada com a prisão do Carlos. Os militares riam quando arrancaram de novo, continuando a sua ronda em direcção à Central Eléctrica. Confesso que, apesar do fresco da chuva, estava a transpirar dentro do impermeável de borracha. Felizmente, os homens só quiseram divertir-se à minha custa.

Voltei para trás e aproximei-me da casa do Carlos. Tive de pedir ao irmão que o fosse procurar. É que eu tinha-lhe dito que se escondesse bem, mas não ficou estabelecido onde.

O Elysée apareceu confirmando que tinha conseguido o carro. Ele seguiria pela estrada do Aeroporto e o Carlos, na sua motorizada, iria juntar-se-lhe, logo que o víssemos. Ficou ainda assente que o Elysée faria tudo para estar de regresso antes das sete da manhã, para não faltar ao trabalho, não fosse a polícia ligar a sua ausência com a fuga do seu colega de serviço.

Chegou finalmente o Carlos. Via-se que estava preocupado, apesar da sua calma aparente. Dei-lhe o dinheiro e o impermeável, abraçámo-nos, tomou a motorizada e partiu. Eram mais ou menos dez horas da noite. O seu irmão mais novo devia passar pela Gouveia à hora da abertura dos escritórios para dizer que o Carlos estava doente.

Foi só depois da partida do Carlos, quando regressava a casa na pequena motorizada conduzida pelo meu irmão, que me apercebi dos erros e imprudências que foram cometidos: ele andou à minha procura em minha casa e noutros lugares e era muito natural que nos tivessem visto juntos conversando à porta do Benfica; entretanto, na manhã seguinte, nada se sabia do Carlos em Bissau. Convenci-me de que a PIDE, a famigerada PIDE que acabava sempre por saber tudo, facilmente me identificaria como sendo uma das pessoas que intervieram directamente na fuga do Carlos.

O meu estado de excitação era, pois, bastante grande no dia seguinte. Tentava imaginar como seria interrogado pela polícia e ia formando mentalmente as respostas que daria às suas perguntas. Recorri à dra. Sofia e ela aconselhou-me a tomar um calmante que me ajudaria a controlar. Arranjou-me um medicamento a que chamou a «pastilha da felicidade». Eu precisava de facto de muita calma, no caso de ser interpelado pela PIDE...

À nossa chegada ao trabalho, no dia seguinte, às 7.30 h, o Elysée informou-me que conduzira o Carlos até à jangada de Barro, continuando ele, a partir dali, na sua motorizada a caminho da fronteira senegalesa. Via-se bem que não tinha dormido a noite toda.

Antes das oito horas, já o irmão do Carlos aparecia para dizer que ele estava doente e não podia apresentar-se na Gouveia. Alguns minutos depois, chegavam os homens da PIDE. Contactaram a direcção e perguntaram pelo Carlos. Saíram imediatamente e foram à casa da sua mãe, mas o Carlos tinha desaparecido sem deixar rastos.

O Elysée, entretanto, pedira licença para sair. Ia dormir...

Logo que recebeu a comunicação sobre o massacre de Pijiguiti, o Amílcar fez-nos saber que passaria por Bissau o mais breve possível, para fazermos o balanço dos acontecimentos e definir o caminho a seguir.

Comentário do A. Marques Lopes:

Naturalmente, as consequências trágicas desta greve foram aproveitadas pelo PAIGC. Como refere o Luís Cabral, a páginas 75 e 76 do seu livro:

2.Excertos de Crónica da Libertação:


O massacre de 3 de Agosto, com todo o seu terrível conteúdo de horror e desespero, servira para acordar a consciência de muitos nacionalistas hesitantes. Veio provar a necessidade de lutar por todos os meios para destruir o colonialismo, o que exigia um trabalho longo e duro, pleno de sacrifícios.

Guiné > Amílcar Cabral (1924-1973), o líder do PAIGC, soube tirar as devidas ilações dos terríveis acontecimentos do dia 3 de Agosto de 1959. Ainda hoje se discute se a greve dos marinheiros e trabalhadores portuários do Pidjiguiti foi conduzida pelo PAIGC, ainda em fase incipiente de organização, ou se foi apenas aproveitada pelo PAIGC, em termos políticos... (LG)

Foto: © CaboVerdeOnline.com(2001-2006). Com a devida vénia...

Na reunião com o Amilcar (19/9/959), depois do nosso relatório sobre os trágicos acontecimentos de 3 de Agosto, ele referiu-se longamente às lições que o Partido devia tirar desses acontecimentos, de maneira que não ficassem vãos os sacrifícios domártires de Pijiguiti.

Não podíamos brincar com um inimigo que provara mais uma vez ser de uma crueldade sem limites. Quando tivéssemos de agir contra ele, tínhamos de estar preparados para todas as eventualidades e ser capazes de não nos deixarmos matar impunemente.

Não restavam dúvidas que a repressão à greve de 3 de Agosto, e a maneira pronta como ela pôde ser organizada, provaram-nos que, na capital, o inimigo era e seria sempre mais forte do que nós. Tinha o seu exército, a sua polícia, os seus carros, o seu dinheiro para comprar a consciência de muitos dos nossos compatriotas. Quase toda a população urbana dependia das autoridades e das empresas coloniais para viverem; tudo isto colocava o grupo de patriotas nacionalistas numa situação de inferioridade manifesta.

Ao contrário, nas imensas zonas rurais onde vivia a maioria esmagadora do nosso povo, o homem não dependia dos colonialistas para viver: era, ao contrário, o homem do campo que alimentava a gente da cidade e fazia prosperar o colonialista. Era do campo que vinham o arroz, a mancarra, o coconote, as hortaliças, e grande parte do dinheiro dos impostos. A população ali, não só não dependia dos colonialistas, como ainda não se identificava com eles, o homem do campo conseguiu, através dos séculos, do tempo de escravatura ao dos trabalhos forçados e dos impostos arbitrários, encouraçar-se na sua própria personalidade cultural e era lá que encontrava as forças para resistir à poderosa influência do inimigo.

A lição mais importante tirada do massacre de Pijiguiti, dizia-nos, portanto, que seria junto da população camponesa do nosso país que teríamos de procurar as forças necessárias para combater e vencer o colonialismo. Não devíamos sacrificar os nossos homens, o capital mais precioso da nossa vida, numa confrontação desigual na cidade. Devíamos, sim, organizar a nossa gente cada vez melhor, prepará-la cuidadosamente para a grande batalha que seria desencadeada, primeiro, no campo, onde acumularia as forças necessárias para se alastrar às cidades.

Impunha-se, desde então, começar a seleccionar os jovens mais capazes que teriam de sair do país, para receberem no estrangeiro uma preparação especial com vista à realização da grande tarefa que tínhamos à nossa frente. Depois da criminosa e sangrenta repressão aos corajosos grevistas de 3 de Agosto — mártires da gloriosa libertação do nosso povo — íamo-nos preparar cuidadosamente para entrar com força irreversível numa nova fase da luta (5).

____________

Notas de L.G.

(1) Vd. post de 15 de Fevereiro de 2006 > Guiné 63/74 - DXXXV: Pidjiguiti, 3 de Agosto de 1959: eu estive lá (Mário Dias)

"Muito se tem escrito e comentado sobre os acontecimentos que tiveram lugar no cais do Pidjiguiti em 3 de Agosto de 1959. Eu estive lá. À época dos factos, cumpria o serviço militar obrigatório, ainda como recruta (o Juramento de Bandeira teve lugar uma semana depois, precisamente a 10 de Agosto) (...).

(2) Luís de Almeida Cabral, meio-irmão de Amílcar Cabral (1924-1973), nasceu a 10 de Abril de 1931, tendo sido o primeiro presidente da República da Guíné-Bissau (1973-1980). Na sequência do 25 de Abril de 1974, Portugal reconhece, em 10 de Setembro de 1974, de jure e de facto, a independência da sua antiga província ultramarina (colónia, até 1951).

Luís Cabral assumiu a liderança do PAIGC após o assassinato de Amílcar, em Conacri, em 20 de Janeiro de 1973. Foi derrubado em 1980 por um golpe militar, liderado por João Bernardo Vieira ('Nino' Vieira), que jogou a facção guineense contra a facção dita cabioverdiana do PAIGC . Após 13 meses de detenção, foi para o exílio, primeiro em Cuba e depois em Portugal. Voltou à sua terra em 1999, depois de 'Nino' Vieira ter sido, ele próprio, derrubado por um outro golpe de estado...

Luís Cabral era empregado da Casa Gouveia em 3 de Agosto de 1959.

Vd. ainda a cronobiografia de Amílcar Cabral, em formato.pdf, disponível no sítio da Fundação Mário Soares.

(3) Repare-se que na edição de O Jornal, de 1984, a grafia que é usada é Pijigutí... Opta-se por usar a mais corrente ou vulgarizada (Pidjiguiti), mesmo que não seja a mais correcta, do ponto de vista lexicográfico...

(4) Sobre este fundador do PAIGC, vd posts de:

(i) 12 de Novembro de 2005 > Guiné 63/74 - CCLXXXV: Antologia (24): Elisée Turpin, co-fundador do PAIGC

" (...) O intensificar de actividades e constantes movimentações políticas levaram a que a PIDE reforçasse as perseguições e, consequentemente, muitos activistas foram sendo aprisionados e torturados nas diferentes celas de prisões. Este facto e outros, nomeadamente os acontecimentos de Pidjiguiti em 1959, levaram à tomada de decisão do Partido de instalar a sua Direcção no país vizinho independente - Guiné Conakry" (...).

(ii) 14 de Novembro de 2005 > Guiné 63/74 - CCLXXXVIII: Memórias de Turpin e da Bissau do seu tempo

"Mais informações, pormenorizadas, sobre o Turpin, por parte do Sargento Mário Dias, dos comandos, ex-camarada do Virgínio Briote (por cujo intermédio chegou esta mensagem) (...)

(5) Hoje esta data é feriado nacional na Guiné-Bissau e no local foi construído ao monumento aos heróis do Pidjiguiti.

Guiné 63/74 - DLVI: Os filhos de branco (Zé Neto)

1. Mensagem do Ze Neto:

Luis:

Acabo de ler a tua conversa com o Zé Teixeira. E apanhei-te na primeira
falha. Então tu não sabias, nunca ninguém te disse, que os nascituros de
raça negra vêm ao mundo tão branquinhos como nós?. É verdade. Adiante.

Se te for possível diz ao Zé Teixeira, aliás já o disseste, mas eu gostaria
que ele soubesse que sou um grande apreciador dos seus escritos não só pelo
sentido humano que lhe é intrínseco (não se inventa) como também pela minha
enorme admiração pelos pastilhas, os abnegados enfermeiros militares.

Por alguma razão os meus Fur Mil Cadima Ferreira e 1ºs cabos Soares da
Silva, Gentil Fernandes e Celso Igreja, arrecadaram à sua conta 7 (sete)
louvores por feitos em combate. E não dispararam um tiro!

Quanto aos nossos descendentes furtivos (desgraçadamente deixei um em Macau)
disse-me o Pepito que o Dauda foi sempre tratado por Viegas pela população,
era camionista (tinha um camião em Cacine) e morreu em Junho do ano passado
antes de atingir os quarenta anos de idade.

A Sona, sua mãe, ainda é viva e está em Guileje. Também é justo referir que o pai teve conhecimento do nascimento do filho, fez algumas diligências para o trazer, mas a esposa, então em Bissau, se opôs terminantemente.

Boa noite e até breve.

O sacramental abraço do Zé Neto

2. Comentário de L.G.:

Zé: Infelizmente o meu curriculum vitae é muito mais pequeno do que o teu... Ou, pelo menos, andámos por sítios diferentes a fazer coisas diferentes. O mais importante é esse sentimento de confiança e essa auto-estima que tu transmites. Bem podes dizer, como o poeta Pablo Neruda: Confesso que vivi!

Obrigado

PS - Essa dos putos negros nascerem brancos, eu já tinha lido... Mas não me ocorreu... Pensei que o Zé Teixeira estivesse a insinuar que o pai da criança poderia ser um tuga.. De qualquer modo, não sendo médico, nunca assisti a nenhum parto africano... Poderia ter acontecido, andei também por algumas tabancas em autodefesa com os meus nharros e privei, com alguma intimidade, com a respectiva população.

Guiné 63/74 - DLVI: Os filhos de branco (Zé Neto)

1. Mensagem do Ze Neto:

Luis:

Acabo de ler a tua conversa com o Zé Teixeira. E apanhei-te na primeira
falha. Então tu não sabias, nunca ninguém te disse, que os nascituros de
raça negra vêm ao mundo tão branquinhos como nós?. É verdade. Adiante.

Se te for possível diz ao Zé Teixeira, aliás já o disseste, mas eu gostaria
que ele soubesse que sou um grande apreciador dos seus escritos não só pelo
sentido humano que lhe é intrínseco (não se inventa) como também pela minha
enorme admiração pelos pastilhas, os abnegados enfermeiros militares.

Por alguma razão os meus Fur Mil Cadima Ferreira e 1ºs cabos Soares da
Silva, Gentil Fernandes e Celso Igreja, arrecadaram à sua conta 7 (sete)
louvores por feitos em combate. E não dispararam um tiro!

Quanto aos nossos descendentes furtivos (desgraçadamente deixei um em Macau)
disse-me o Pepito que o Dauda foi sempre tratado por Viegas pela população,
era camionista (tinha um camião em Cacine) e morreu em Junho do ano passado
antes de atingir os quarenta anos de idade.

A Sona, sua mãe, ainda é viva e está em Guileje. Também é justo referir que o pai teve conhecimento do nascimento do filho, fez algumas diligências para o trazer, mas a esposa, então em Bissau, se opôs terminantemente.

Boa noite e até breve.

O sacramental abraço do Zé Neto

2. Comentário de L.G.:

Zé: Infelizmente o meu curriculum vitae é muito mais pequeno do que o teu... Ou, pelo menos, andámos por sítios diferentes a fazer coisas diferentes. O mais importante é esse sentimento de confiança e essa auto-estima que tu transmites. Bem podes dizer, como o poeta Pablo Neruda: Confesso que vivi!

Obrigado

PS - Essa dos putos negros nascerem brancos, eu já tinha lido... Mas não me ocorreu... Pensei que o Zé Teixeira estivesse a insinuar que o pai da criança poderia ser um tuga.. De qualquer modo, não sendo médico, nunca assisti a nenhum parto africano... Poderia ter acontecido, andei também por algumas tabancas em autodefesa com os meus nharros e privei, com alguma intimidade, com a respectiva população.

Guiné 63/74 - DLV: Teresa: amores e desamores (Virgínio Briote)


Luís,

Envio-te em anexo uma pequena história que faz parte das minhas memórias.

Se vires que ela se enquadra no tema, publica-a. Um abraço,
vb

VB:

Esta é já (ou pode vir a ser) uma das mais belas novelas sobre o amor em tempo de guerra (colonial)... Vem confirmar o teu já suspeitado talento de escritor... Que garra, que (con)tensão, que ritmo!... É um privilégio, para mim e para os demais tertulianos, podermos ler esta tua mininovela em primeira mão ! LG



1. TERESA. TERESA SÓ!

Sempre em festa, a casa da Dora era uma animação quase todas as noites. Gente conhecida, quase todos da grande família cabo-verdiana da Guiné, amigas e amigos que chegavam, de Santo Antão, de Santiago, S. Vicente. Novidades, a loja que abriu, a Dona que morreu finalmente com 94, coisas assim. Duas estudantes repartiam-lhe as despesas, pagavam-lhe os quartos, mais alguns pesos para a manutenção da casa, os outros trocados, nunca o soube como os arranjavam, nem nunca quis saber.

A Dora era só um conhecimento, mais nada. Um dia, atacada com paludismo, viu o Gil entrar pela casa dentro, com médico, medicamentos e comida. A partir daí, o conhecido que aparecia às vezes, sempre sem avisar, passou a ser um amigo chegado, daqueles que estão sempre à beira, sem outro interesse que se visse. Amizade, só isso. Como se fossem irmãos muito chegados, a Dora confiava-lhe segredos, mesmo alguns que se calhar não devia, mandava-lhe recados para Brá, convidava-o para pequenos convívios com os amigos, quase todos cabo-verdianos de Bissau. Para aquela festa, tinha-lhe dito que o iria apresentar a uma pessoa de quem ele iria gostar.

Conheceram-se em Bissau numa pequena festa em casa da Dora. Viu-a logo, mal entrou. Uma cabo-verdiana linda, a pele morena clara, desenhada sobre o magro, à volta dos 20.

Trocaram as palavras do costume quando a Dora, olhar cúmplice para eles, os mostrou um ao outro.

Teresa. Teresa quê, que não ouvi? Teresa só. Olhos grandes, claros, esverdeados. Que bem que ficavam com aquela pele! Voz doce, ar curioso. Algo esquiva e desinteressada, virou-lhe logo as costas e cada um foi para seu lado. Ouviram músicas, mexeram os braços e as pernas, conversaram com este e aquele até se fazerem horas.

Quando descia as escadas, ela chamou-o, ar atrevido, pareceu-lhe até demais. Mas já vai, tão cedo, nem se despediu, os outros não nos deram oportunidade de falar um pouco mais, uma pena, não foi? Voltamo-nos a encontrar? Um dia, disse-lhe ela, vemo-nos por aí, não? Afinal, Bissau não é assim tão grande… Se é meu desejo? Saiu a desconversar, meio desconsolado.

Dias depois, sentado no Bento, viu-a passar. Os olhares dos outros chamaram-lhe a atenção. Todos se viraram, não era fácil passar despercebida. Parecia-lhe mais alta. Os olhos com um verde mais magnífico ainda, levemente sombreados, cabelo liso preto, a cobrir as orelhas, elegante com um vestido sem mangas, azul-escuro pintalgado de bolinhas branca, a balançar acima dos joelhos, sandália preta de meio tacão. Como se tivessem combinado, dirigiram-se um para o outro, cumprimentaram-se com alguma cerimónia.

Sentados, os olhares dos outros em cima, vamos andar, por aí fora? Meteram-se no carro, uma volta pelas ruas, por aí não, é a minha casa. Saíram da cidade, para os lados da Sacor, estacionaram de frente para o Sol, a desaparecer no Geba.

O rádio a passar Capri , c’est fini (1), ela a cantarolar baixo, até começar a falar. Quem és tu? Sou este que está aqui! Mas quem és tu, porque estás aqui? Como? Porque estás aqui comigo? Sabes lá, que resposta! Vamo-nos embora, então! A conversa assim, até encontrar o fio.

Esta guerra, os desencontros, as pessoas para um lado e para outro, muita gente deslocada das suas casas, todos a virem para Bissau, muita tropa também, demasiada até, onde é que isto vai parar. Assim, de um momento para o outro.

Depois mais suave, as origens, as famílias, os amigos, os interesses. Estava a concluir o 7º no liceu de Bissau, os pais eram de Cabo Verde, queria tirar Medicina em Lisboa, estava com As vinhas da Ira nas mãos, tinha acabado um livro de Hervé Bazin. Só ódio, queres que to empreste? Porquê, se é só ódio? Pode ser interessante para ti, como sabes que não gostas sem o ler? Vou trazê-lo. Ficou assim marcado o próximo encontro.

O que estava ali a fazer, perguntou-se. Como se tivesse adivinhado ela adiantou que gostava de olhar para ele. Que gostava de estar, de o conhecer. Mas quem és tu, fala!
A noite a cair como cai em África, noite num momento. Temos que ir, não é? Deixou-a à porta da Sé, junto à rua dela. O grupo dele saía na madrugada seguinte, para o norte.

No regresso procurou-a. Os olhos, grandes na mesma, pareciam de cor diferente, o rosto mais fechado, o que se passa, algum problema?

Uma semana, esperara este tempo todo, começou ela, parecia que tinha fogo. Porque não disseste nada, Gil Duarte? Saíste para o mato, não? Para onde foste? Para Norte, para o Oio, não? O que fizeram? A fama que vocês têm, Duarte!

Olha-me de frente, Duarte, assim não, olha-me nos olhos, assim! O que sou para ti, ora diz? Porque me foges com os olhos? Séria, os olhos a entrarem por ele dentro, porque andas atrás de mim? Duarte, não falas? Responde, porque não falas? Gosto que me contes tudo! Gil! Encostada a ele, tão baixo que mal a ouviu, vamos sentar-nos antes no jardim? Estamos mais á vontade, a mamã não está, se ela aparecer apresento-ta, qual é o mal?

Que gostava, mas agora não. E logo? Os papás ficam no varandim a apanhar o fresco, até ás 11, depois vão-se deitar. Gil, que é que te deu, não falas? Tens namorada na metrópole, todos vocês têm, sei muito bem, como é ela? A boniteza não é só na cara, sabias? Não gostas de mim? Então que estás aqui a fazer?

Duarte, que estás aqui a fazer na Guiné, que estão vocês todos aqui a fazer, a desinquietar-nos? O que vocês fizeram na Associação Comercial (*), orgulhas-te disso? Que vergonha, entrarem sem serem convidados, estragarem a nossa festa! A causar-nos sofrimento, a matar pessoas, a ocupar a nossa terra, a impedir o nosso povo de ser livre, é isso?

Estás a olhar assim para mim porquê? Achas que não temos cabeça para pensar, que só somos corpo para vocês gozarem? Porque nunca te vejo fardado, porque será, tens vergonha de vestir a farda? Aliás odeio fardas, nunca me esperes fardado á porta do liceu, ouviste?

Vens logo à noite? Quando os papás se vão deitar fico sempre um bocado à janela. Saiu dali atordoado, sem saber o que fazer. Uma mulher diferente!


2. NOS ANOS DA DORA

Do portão viu a Dora ao cimo das escadas. Ambiente animado, pessoal a dançar cá fora, para aí uma dúzia de pares, gente cabo-verdiana, colados uns aos outros, aquele jeito deles, os corpos no ritmo das mornas e coladeras.

Então, bem aparecido, zangado comigo? Porquê, Dora, a consciência pesa-te?
Não lembro de nada, mas sempre pode ter acontecido alguma coisa de que me não tenha dado conta, não é?

Que não deve ter ocorrido nada, que se recorde, os olhos dele pelo baile, a Teresa a dançar, a um metro bem medido do parceiro cabo-verdiano, a saia do vestido bem acima dos joelhos, o decote a mostrar. Mal os olhos se cruzaram, ela encostou-se ao parceiro, a cara para o outro lado.

Que não, não havia problema nenhum, estivera fora, andava ocupado, aos fins dos dias não tinha vontade de sair, só isso, mais nada.

Só isso, de certeza? Anda comigo, a Dora a levá-lo para o meio dos dançarinos, mexe o corpo assim, juntinho.

Passa-se alguma coisa contigo, Gil, alguma coisa que eu não saiba? O que é que tu não sabes, Dora? Porque andas tão afastado agora, tão cheio de cerimónias, anda aí qualquer coisa e tu não queres contar. Não sabes do que estou a falar, ora, estás a desconversar, especialidade tua.

Dora, estão a chamar-te, dali, olhos na Teresa, colada ao par.

Despediram-se da Dora, isso agora vai, olhar maroto para as mãos deles. Tinham dançado uma e outra vez até ao fim da noite, quase só os dois no fim, tão colados que os outros até reparavam. Desceram a rua de Santa Luzia, mãos entrelaçadas, a fazerem cócegas um ao outro, a rirem-se por ali abaixo.

Á porta dos pais dela, os rebentamentos que ouviam há horas soavam mais fortes. O que será? Jabadadas (2) , menina, chega-te para cá, para onde vais, Teresa? Tenho medo, não posso, encosta-te então, não te sentes mais abrigada assim, mas não é das explosões que tenho medo, então de que é?

Uma mão na perna, a subir, ai, aí não, Gil! Respirações atrapalhadas, afastados, um momento que não acabava, a olharem um para o outro, uma sirene bem perto, a Teresa lançada outra vez, os lábios a rasparem-se, o gosto da boca dela, a mão dele nos seios, aqui não, anda, não podemos ficar aqui, mão amarrada à dele, que malucos, que é que nós estamos a fazer, Gil?

Na espreguiçadeira onde se recostava a ler e a sonhar nas tardes quentes de Bissau, ansiosa, não sabia o que queria, a mão dele fazia-lhe comichão no joelho, ria-se das cócegas e do nervoso. A mão em cima da dele, parecia-lhe que a acalmava. As duas mãos juntas, a subirem por ela acima, não posso, Gil, tem cuidado, miminhos só, não me faças mais nada!

Não ando a fazer nada com ela, não pretendo nada da Teresa, só passar uns momentos entretido! Não sei é se me vou aguentar assim, não sei não! Se calhar é melhor ir procurar a Matilde. E a Clara, onde andará aquele amor? Ah, Clara, Clara!

Esta história com a Teresa pode dar chatices, pode trazer-te problemas! Como vai ser o próximo lance? O 14-04 com o pára-brisas no capô, vento na cara, a falar sozinho, até Brá.

3. QUE TERESA!

Naquele fim de tarde, quando descia a rua devagar em direcção à Sé, viu o pai da Teresa, de calção, a tratar da relva e das flores. Aliás, viram-se um ao outro ao mesmo tempo, que chatice, ele a desviar os olhos para as montras da Ultramarina, o pai mais demorado, endireitou-se, sacho na mão, se calhar é aquele o gajo que anda atrás da Tesa.

Acabada a missa da tarde, Teresa, véu dobrado na mão, braço na mãe, desceu as escadas. Iam começar a subida da rua para casa quando o viu. E agora, que faço?

A mãe conhece-o de vista, já o viu da janela mais que uma vez, está a par, uma tardinha perguntou-lhe até quem era. Sei lá, mãe, um militar qualquer, como hei-de saber, queres que lhe pergunte o nome, porque está a passar na rua? Que atrevida que estás, Tesa, julgas que tenho os olhos fechados? E se nós mudássemos a conversa, mãe?
Uns tempos mais tarde vira a Tesa a falar com aquele moço moreno, alto e magro, de farda amarela clara, junto a um jeep. Quando a viu voltar a correr, com a roupa do ténis, fizera-se desentendida, descera para o jardim, para a beira dela, calada com o livro na mão. Sentira-a ausente naqueles instantes, rodeara-a, falara-lhe da carta da tia de Santo Antão a dizer que vinha passar um mês com eles. A Tesa ausente, desinteressada, ah sim, quando?

Aliás, o Vasco já reparara, a nossa filha está diferente, claro meu amor, já tem 19 anos! Não é disso que eu estou a falar, Benilde, acho-a diferente, o comportamento dela! Porque dizes isso, nunca dei por nada! Vai para o quarto cedo, anda a pé às vezes à noite, já a vi junto à janela da sala mais que uma vez! Ora Vasco, sempre assim foi, são raparigas novas, aconteceu connosco, já não te lembras? Não Benilde, cuidado, a Tesa é muito nova, abre-me esses olhos!

Tesa, e as tuas aulas como vão? Ora mãe, que te deu agora? Tentou evitar até não poder mais, a mãe Benilde a cercá-la, sim conheço-o, tem mal, mãe? Que não, filha, desde que me contes tudo, desde que tenhas cuidado, sabes como são, militares longe das famílias, saudosos das namoradas, estão aqui de passagem, só querem divertir-se, tu sabes bem o que aconteceu à Lurdes com aquele alferes dos comandos também, até a chegaste a avisar, já te esqueceste? Tinha sido assim, a conversa ficara neste ponto, um dia que calhe, eu apresento-to, pronto.

De braço dado com a mãe, mudou de passeio e subiram a rua, a mãe a beliscá-la, a olhar para as montras como quem não quer a coisa, até ficarem frente a frente.
A mãe Benilde, o Gil Duarte, um amigo, as mãos estendidas.

Sentámo-nos no varandim, com sumo de laranja e ananás, feito na ocasião pela Mabilde, a nossa criada de Cabo Verde. Conversávamos e calávamo-nos ao mesmo tempo, até teve graça. Os meus estudos, as disciplinas de Física e Matemática, os meus professores, o ambiente que se vive em Lisboa, as tias, as irmãs do papá, que vivem lá em Benfica.

Foi pouco tempo, para aí 1 hora, a mamã a lamentar, que pena o teu pai não estar aqui para o conhecer, naqueles fins de tarde andava a tratar do jardim, depois ainda ia ao escritório, ficaria para mais tarde, também se estavam a fazer horas, o Gil a dizer que tinha que ir. A minha mãe portou-se impecável, um amor mesmo, desci com ele as escadas, ainda ficámos um pouco na brincadeira, a rirmo-nos. Combinámos encontrarmo-nos lá mais para a noitinha, quando todos estivessem deitados.

A mamã ficou muito bem impressionada contigo, sabes? Gostou de ti, acha-te simpático, é verdade, não te rias, tu simpático, vê lá! Que pareces atinado, muito correcto. Depende dos dias e dos momentos, também acho, agora simpático, como as aparências enganam, se ela te conhecesse melhor!

Gosto de estar contigo, nem sei bem porquê. E no entanto, há tanta coisa entre nós a separar-nos. O quê? Esta guerra, por exemplo!

Nem entendo como te envolveste assim, numa força tão agressiva, porque foste para lá?
Porque é que toda a gente pergunta isso? Sei lá porquê, talvez o fascínio pela guerra, não sei! Soldados com as caras sujas, o sangue nas fardas rasgadas, as imagens da destruição, os heróis lavados com as fardas novas, os emblemas a reluzirem, os tambores a rufarem, o clarim a tocar aos mortos, o frio pela espinha, os jeeps, os camiões, as lagartas dos carros de assalto, o nó que sinto na garganta, não sei, Teresa, sei lá!

E não sentes uma ponta de remorso pelo que andas a fazer, não entendes a luta deste povo? É um assunto de que não queres falar? Nem sequer te interessa? E em ti, tens pensado na guerra em que andas envolvido, de arma na mão? Porque é que não fizeste como tantos outros, levar uma vida mais resguardada, mais sossegada, até no teu interesse? Tens pensado no futuro ou é também um assunto que não te interessa?
Claro que estamos a fazer tropelias, não o devíamos fazer, não é para isso que estamos aqui. Lutamos pelo gosto da luta. Gosto disto, desta adrenalina toda. O único problema é ficarmos mutilados, se morrermos, nem damos por ela. Mas odeio a guerra, esta ou qualquer outra. Aliás, não há dia nenhum que não combata contra a minha própria guerra. E não quero morrer, nem quero que os outros morram. Mas, por mim, não vamos perdê-la. Mas é um assunto pessoal, muito íntimo, Teresa.Para as outras conversas és íntimo comigo, porque é que esta é diferente, tens outras vidas de que não queres falar comigo? Para mim tens? Alguém te obriga a estar aqui comigo ou alguma vez te obriguei?

A consciência pesa-te aí dentro, no teu íntimo, Gil, e por mais que digas que não, estás traumatizado e mais, se pudesses, fugias daqui. As minhas aulas vão andando, obrigada, não desconverses!

Quando vai ser, não sabemos. Já estivemos mais longe. Eu era muito menina, andava para aí no 3º ano, quando tudo começou a sério. Até 63, tirando o caso do Pidjiguiti, ao que ouço dizer, era só conversa. Nem me lembro de alguma vez ter ouvido falar a sério em independência. Independência, só a vossa, com o rei Afonso Henriques, que bateu na mãe dele, aprendeste também? E também em 1640 e tal, outra vez Portugal a dizer aos reis de Espanha que mandassem na terra deles, não foi?
A partir de 1963, a história aqui passou a escrever-se de outra forma. Foi pena, mas para trás, se formos a ver tem sido sempre assim, não se consegue quase nada a bem, é pena, mas é assim.

Não estava era à espera de vir a ter esta conversa contigo hoje. Sempre pensei que um dia viria a falar deste assunto com alguém que estivesse do outro lado, assim, tão frontalmente como estamos a fazer agora, mas nunca me ocorreu que viesse a ser contigo! Mas também é bom que assim seja, temos interesses comuns, interessamo-nos um pelo outro, somos capazes de ter uma conversa destas assim, sem recriminações, sem zangas, não achas? És capaz de me dizer, se estivesses deste lado, o que fazias, alistavas-te no partido?

Olha, Gil, acho que não vai ser já, vai demorar ainda uns anos, mas tenho a certeza que a nossa bandeira vai subir no mastro do palácio, lá em cima na praça, e quem sabe, nós os dois no meio do povo, a vê-la ao vento, diz lá, eras capaz de ir comigo?

O barulho dos ramos das árvores e um mocho ou uma coruja lá para trás, dos lados do cemitério, os dois sentados há que tempos, na espreguiçadeira que mal dava para um.


4. QUE ESTOU AQUI A FAZER?

“Temos que ser nós a pô-los daqui para fora, esta terra é nossa, não nos faltam apoios, é todo o mundo a dar-nos razão! Desde meados deste século, os colonialistas têm sido corridos de todo o lado, ficaram os portugueses e porquê, camaradas? Porque de todos os impérios, o deles é o mais atrasado, não só economicamente como também em termos culturais. Uma taxa de alfabetização baixíssima, um país inculto, atrasado, governado por um grupo de lacaios em nome dos interesses de meia dúzia de famílias. Por isso dizemos e insistimos, somos aliados do povo português na mesma luta contra o colonialismo e contra o fascismo. Mas esta situação, camaradas não duvidem, está a mudar e ainda vai ser no nosso tempo e vamos ser nós que vamos acabar com o colonialismo na nossa terra. Temos amigos em todo o mundo, URSS, Suécia, China, Noruega, Cuba, toda a África, toda a Ásia, todo o mundo, amigos que nos ajudam com armas, comida, medicamentos, técnicos. Mas temos que ser nós, camaradas, nós é que temos que fazer o trabalho aqui na Guiné e em Cabo Verde, pô-los daqui para fora!”

O partido precisa de todos nós, cabo-verdianos e guineenses, não posso deixar de contribuir com a minha parte, Benilde, há muito que conheces o meu modo de pensar, esta terra é pobre mas é nossa.

Não sei não, Vasco. Estamos tão bem agora, a nossa vida não teve um começo fácil, demos uma volta tão grande na nossa vida, abandonámos a nossa terra, os nossos pais, e agora que a Teresa está tão bem nos estudos, todos os anos no quadro de honra, não sei que te diga, Vasco, temos levado uma vida tão sossegada, damo-nos bem com toda a gente, a nossa vida vai mudar tanto. Tenho medo, muito medo, Vasco!

Mas o partido necessita de todos, não viste o Aristides, com uma posição tão boa aqui, também abandonou tudo para ir com os camaradas. E tantos outros. Até agora tenho sido só simpatizante, uma vez ou outra colaboro quando me pedem, mas agora é a minha vez de participar mais activamente, não compreendes, Benilde?

Aqueles tempos calmos, com tempo para tudo, o sossego das tardes de Bissau estavam cada vez mais longe. Depois dos incidentes do Pidjiguiti (3), a vida nunca mais foi a mesma. Pide e mais pide, tropa todos os dias a chegar, incidentes em todo o lado, prisões durante a noite, a vida cada vez mais difícil. Benilde pensava muitas vezes em como era boa a vida na Praia, difícil a subsistência, mas o ambiente era outro, como era bom se o Vasco conseguisse ser colocado em Cabo Verde, na Praia ou no Mindelo. Chegou até a falar-lhe, mas ele não recebeu bem a ideia. Casaste comigo, as nossas vidas estão juntas para o melhor e para o pior.

Não te esqueças da Tesa, Vasco, lembra-te da nossa menina!

Benilde, a menina continua a estudar, se algo correr mal, voltas com ela para a Praia, para junto dos teus pais.

Teresa estava com 19 anos, vivia intensamente com a ansiedade própria da idade o que ouvia contar em casa e entre os amigos, as gloriosas lutas que se travavam nas matas contra a tropa colonialista, as tentativas de alfabetização das populações, nas escolas dispersas pelo mato, os progressos pela emancipação, o caminho irreversível para independência.

O relacionamento dela com aquele militar era motivo de reprovação dos amigos e do próprio pai. Coisas separadas, pai, não têm nada que ver, já não sou menina!

A mãe Benilde contou ao papá da tua visita, sabes? A princípio, ficou muito calado, continuou a comer, mas não ficou de muito boa cara, não. No fim de jantar, então falou, que ainda sou muito nova, que tenho muito tempo à frente. É mesmo a sério, virado para mim, que tudo indica que sim, não é? Quer conhecer-te, falar contigo quando te apetecer, claro, jantarmos todos, quando pode ser? Um dia quando, não pode ser amanhã?

A Teresa a querer saber novidades, a mandar recados pelo Alegre, chegara até a ir a casa do Sany. Paludismo forte, mas só, mais nada. Entrar em Brá não podia, não a deixaram, deixou recado, 2 abacaxis pequenos, um cartão, dois corações, uma seta neles, pingas da cor do sangue de saudades, um beijo imenso, maior que o embrulho, nem parecia dela.

Encontraram-se depois das febres. O jantar fica então para amanhã, 6ª feira, posso dizer à mamã? Mas espera, Teresa, jantar? Então, não ficou combinado, apresentar-te ao meu pai? Apresentar-me ao teu pai? Gil, as febres deitaram-te abaixo, precisas de te alimentar bem, recuperas num rápido! Mas, Teresa, apresentar-me ao teu pai, para quê?

Teresa no varandim, com aqueles olhos. A mãe como se fosse para a festa, música de morna, o salão grande, sente-se Gil, esteja à vontade, a Tesa faz-lhe companhia, vou ver as coisas, dá-lhe um sumo de ananás com pouco gelo, quer?

Sentia-se fraco, não lhe estava a apetecer nada estar ali, era bem melhor não ter vindo. Os dois sentados, ele a passar a vista pelo salão, a mesa ao canto, fotos antigas de outras terras, rostos desconhecidos, pau preto, a cadeira de palhinha, a luz suave filtrada pelos cortinados, o que estou eu aqui a fazer e os pais a entrar.

Ora viva, então, como, ah, senhor Gil, Gil quê, Gil Duarte, muito prazer, então? Sorriso sem palavras, cumprimentos, quer beber alguma coisa fresca, ah já está servido, então? Então nada, desta vez apeteceu-lhe mesmo responder.

Calor, hem, esta humidade não deixa a gente respirar, então? Então, como? Que vocês lá na metrópole tem um clima bem mais ameno, mais temperado, mas muito frio no Inverno. Acho que vocês nunca prepararam as vossas casas para o frio, se calhar porque estão lá só de passagem, não é, no regresso de todos os Brasis por onde andam, só param em Lisboa para descarregar o ouro, a prata, as madeiras, o sisal, café, cacau, tudo às toneladas, não é, gargalhada trocista. Assim! O pai da Teresa além de trabalhar nos escritórios da maior empresa colonialista, era também um humorista!

Talvez, nunca pensei nesse assunto, ainda não tive tempo. Na sua idade também não, pensava noutras coisas, não é, a Mabilde e um ajudante de travessas na mão, cadeiras a afastarem-se, então é melhor sentarmo-nos.

Galinha à cafreal, saladas, fruta por todo o lado, ananás, bananas, e para beber, cerveja, Casal Garcia, tinto do Dão, o que lhe apetece?

Então? De onde é o senhor Gil Duarte, o que faz na vida civil, os seus estudos, como vai a metrópole, o que dizem de lá, como vêem esta guerra, o Salazar está para durar? Não vai durar a vida toda não é, vem outro a seguir, já deve estar escolhido, claro, quem lhe parece que seja?

Que não estava a par, não fazia ideia. Mas esse assunto não é do seu interesse? Quando lá estive no mês passado, a estudantada andava toda alvoroçada, a guarda a cavalo em Coimbra, na rua da Sofia as lojas todas trancadas. Isto está um problema, senhor Duarte, não pode continuar assim, na vossa metrópole e aqui, a tendência é para agravar, a URSS, a China do Mao (4) , a própria América veja lá, a Suécia, a Noruega, o mundo todo, menos a Espanha do Franco, o vosso governo de portas fechadas em quase todos os países, agora até o Brasil, sabia? Servem-se da vossa juventude, quando regressam deixaram o melhor das vossas vidas, muitos deixam bocados deles aqui, outros nem regressam, não é?

O cafreal da galinha não passava, atravessado na garganta, não havia maneira de ir para baixo, sumo na mão, a da Teresa, a acalmá-lo, a brincar-lhe no joelho por baixo da mesa.

Que estava a par da agitação estudantil, que deveriam ter alguns motivos, mais outros da idade, adiante se veria.

E então, senhor Duarte, a Tesa o que é para si? A Tesa é muito boa menina, já reparou? Um bocado senhora do seu nariz, às vezes teimosa demais, muito boa estudante, até agora…

Como é que a conheceu? O senhor gosta mesmo dela?

5. MAIS DO QUE ESTAVA À ESPERA

Um interrogatório, perguntas atrás de perguntas. Depois, ofegante, braços cruzados, calada, a exigir respostas. O que é feito de ti, porque não tens aparecido, estás cansado de mim, já não tenho novidades para ti, vocês são todos iguais, espera, onde vais, toma nota do que te vou dizer, mas porque viras os olhos, já não me queres ver?
Olhos, uns olhos grandes, agora cinzentos de zangada, brilhantes, húmidos, ele quase esquecido de respirar, momentos de silêncio, tréguas.

Arrependimento a seguir. Coisas que mal a gente diz se arrepende logo, sabes bem como sou, tu também és assim, às vezes dizes coisas que não gostarias de dizer, não é? Mas diz-me, o que vês em mim, Gil?

Um feitio complicado numa figura agradável, Teresa. E o que conheces de mim que eu nem imagino? Não é possível continuarmos assim, Teresa, com esses modos não…
A força das mãos nos braços dele, os olhos molhados, a exigir-lhe silêncio agora, não digas nada de que te arrependas a seguir, pára um minuto só, pára! Pessoas a chegarem, a olharem para eles, os dois a olharem para o lado, como se não fosse nada com eles, os dedos dela a tapar-lhe a boca, a situação a alterar-se. Não posso, Teresa, já não tenho mais disposição para estar aqui contigo, boa noite!

Não se conseguia ver livre dela, só se desse escândalo, mãos dela no pescoço dele, não me deixes agora, sou tão tua amiga, deixa-me estar assim, só este bocadinho, as coisas que se dizem nestas alturas.

Como me podes fazer uma coisa destas, Gil, ele vencido, outra vez a história a andar para trás, tudo a correr tão bem para o fim, afinal nem tinha sido ele a desencadear as hostilidades e agora outra vez, tentativas para se descolar com meiguice, pior ainda, ela a arrastá-lo para o jardim, a empurrá-lo para a rede, em cima dele, vencido.

Isto está a ir longe demais, tens que parar já, é tempo para começares a pensar nos passos que vais dar para te saíres bem, magoá-la o menos possível, nada de choros, o que vai ser difícil, falar-lhe com calma, nem pensar em meiguices, alegar outros compromissos, cada um para o seu lado.

Passou pelo Bento, arranjou transporte para Brá, copo de água no bar da messe, desceu para o quarto, um bom banho e meteu-se na cama com os documentos que lhe deram na 2ª repartição.

“Cassaprica é o maior acampamento IN existente na área deste posto administrativo. Há um caminho bastante perigoso, porém muito importante, uma vez iludida a vigilância dos sentinelas, pois corta a retirada do IN para a república da Guiné-Conackry em caso de operação em Camissorã. Ainda o mesmo disse que em Bagadai perto de Cane Faque, estão a construir uma jangada de paus para transportar a Cane Faque e daí para Caule uma arma bastante pesada. Também informou que mais de metade dos elementos da guerrilha passou para Caule onde existe um acampamento e um pequeno estabelecimento. Que no entroncamento da estrada velha de Cacafal com a estrada de Cambeque, do lado esquerdo de quem vai para Cabo Nepo, junto a uma árvore grande, existe um abrigo onde o IN aguarda oportunidade de montar emboscada à tropa”.

Três folhas com os depoimentos de guerrilheiros apanhados. Tinham dito tudo o que sabiam e, nada de admirações, também coisas que só se lembraram quando lhe apertaram as unhas, a polícia dizia e assinava por baixo, localização dos acampamentos, disposição, nº de guerrilheiros em cada, armas, os nomes dos comissários políticos em alguns casos. Dentro de uma pasta, uma etiqueta na capa a classificá-los. Estivera a lê-los, o sono a chegar, enfiara-os na pasta e fechou o mosquiteiro.

No outro dia, no QG, quis dar andamento às informações que lhe tinham fornecido. Os documentos vistos outra vez um por um, notas ao lado, localização de guias, onde falar com eles, transportes, esboçar os planos de operações. Da 3ª rep ficaram de lhe dizer as melhores datas, meios, as horas das marés, as coisas do costume.

No VW preto de aluguer que lhe tinham entregue logo pela manhã em Brá, meteu a pequena pasta dentro do porta-documentos. Começou a descer para Bissau, um fim de tarde agradável, sentia-se bem sem saber porquê, nada que fazer agora, e se passasse pela casa da Teresa, para arrumar o assunto, era capaz de ser boa ideia, não?

A rua sem movimento àquela hora, viram-se logo, ela deitada na espreguiçadeira com os cadernos espalhados pela relva.

Era ele, nem parecia naquele carro, onde o arranjaste, apetece-me sair, levas-me a dar uma volta? É só um instante, arranjo-me depressa, não vou mudar de roupa, só pentear-me, um minuto, ele dentro do carro, à espera.

O pai dela a subir a rua, olhos a cruzarem-se, teve que sair do carro, senhor Duarte, então? Muito trabalho, senhor Vasco? O costume, vocês dão-nos muito que fazer, que bom não é senhor Vasco, é…é… de facto. Então o que diz àquela história da orelha, senhor Duarte? Que orelha? Então, olhos fixos nele, o caso do hotel Portugal! Não sabe? Toda a cidade sabe, um horror!

Um grupo de fuzos (5) ao passar na esplanada do hotel, um deles destacou-se, directo a uma mesa cheia de pessoas de cor, puxou pela orelha de um, facalhão na mão, zás, cortou-a, a correr pela rua abaixo, a rir-se, o ferido cheio de sangue atrás, dá-ma, dá a minha orelha! Não é para rir, senhor Duarte! Um horror! É verdade! Não acredita? Testemunhas é o que não falta!

Não sabias ainda? Sempre metido em Brá, como podes saber, a Teresa parecia que tinha acabado de tomar banho, toda fresca a chegar, a dar um beijo no papá. Isto está cada vez pior, senhor Duarte, cada vez pior! Para onde vão? Tenham cuidado, isto está a ficar de cortar à faca!

Como da primeira vez em que saíram sós, pouco movimento a esta hora, o carro devagar, mal se ouvia o motor, pelas ruas a descer para o porto, o quartel dos fuzileiros, a caminho da Sacor. Encostaram o carro, o Geba orgulhoso lá em baixo, a Teresa a chegar-se, ele a abrir a porta, a pé pela estrada uns metros até lá à frente, a olhar para o rio, deu a volta por dar, olhou para o carro, a Teresa com uns papeis na mão, quê?

Deu-lhes a pressa aos dois, ele a voar sem correr, ela atrapalhada a meter tudo de qualquer maneira no porta-documentos. A cara dela, ah, que cabeça, já me esquecia, tenho uma lembrança para ti, lembra-me depois quando chegarmos a casa, a propósito, quando voltamos a jantar todos juntos? Mal respirava, palavras atrás de palavras.

Mas para onde vamos? Porquê, Gil? Ainda agora chegámos, que pressa é essa, que te deu, não falas? Não estou a perceber nada, Gil, andas tão estranho ultimamente, o que se passa contigo?


6. PONTO FINAL?

Estás mesmo tramado, todo enrodilhado, e agora, como é que te vais livrar deste sarilho? Não tem outro nome, sarilho só, com letras grandes. Se tivesses procedido com ela como tens feito com outros conhecimentos, não estavas agora aqui a matutar, a cabeça ainda por cima a doer-te. Tens pouca corda na mão, é o que é, deste-lhe demais e a ti também. Problema chamado Teresa, não? Como te vais sair dele, quando te resolves?

A Teresa fora um simples conhecimento, no início só para passar o tempo. Engraçou com dela, os olhos primeiro que tudo, atraíram-no, meteram-lhe medo e como os meninos curiosos quis espreitar, ela mostrou-lhe outras coisas que tinha com ela. Uma mulher diferente das que tinha conhecido aqui, estas sim só para passar as mãos pelas redondezas todas e depois parágrafo.

Nem conseguiu viver debaixo do mesmo tecto com a Matilde! Adiantou-lhe um mês de renda para a ter numa casa, equipada com tudo, apenas para os intervalos das guerras, tomar uma chuveirada com ela, levá-la ainda molhada nos braços para o quarto, um banho outra vez, vou dar uma volta, hoje não posso ficar, tardes e noites seguidas, sempre assim.

Nem conseguiu dormir com ela uma noite inteira que fosse, no início ainda disse que tinha compromissos no quartel, um serviço qualquer para fazer, ela a desconfiar que fosse outro motivo, mas não. Estou habituado à minha almofada, trá-la então, à minha cama, trá-la também, traz tudo contigo, mas não me deixes só que não posso. E deixou-a sempre. Teve pena muitas vezes de a deixar, custava-lhe suportar os olhos dela. Chatices que arranjou e arrumou sempre, melhor ou pior. Porquê?

Matilde, é simples, gosto de ti, o teu rosto, o cabelo negro que te fica tão bem assim, o teu peito pequeno e tão bem feito, a tua barriga lisa, as tuas coxas redondas, as pernas como acho que nunca vi. A tua figura toda, mas acho que tu e eu queremos outras coisas que os dois não temos. Só isso, mais nada, Matilde! De modo que é melhor seguirmos cada um o seu destino, amigos para sempre, quando te apetecer outra coisa comigo, se verá, estás de acordo?

Sacana, porquê? Matilde, não posso ficar mais tempo, tenho que me ir embora! Fica aqui um mês de renda para te arranjares.

Não queres, deita-o pela janela fora, faz o que quiseres dele, não me interessa, esse dinheiro é teu, um beijo, Matilde, não dás? Os outros casos foram entretimento para dois, sem dinheiros nem nada!

A Teresa já não é só Teresa como se apresentou da primeira vez, agora tem um nome mais comprido, Teresa Problema, proporções com que nunca sonhaste.

Os olhos, o sorriso, a figura, o andar dela, só isso? Ou terão a ver mais com outras coisas de que não estavas à espera e muito menos aqui? O gosto pela leitura, de assuntos em que nem tu próprio estavas sensibilizado, nem ainda estás, a solidariedade, o interesse pela sociedade guineense. A cultura geral, invulgar para a idade dela.

E a disposição para te afrontar, para lutar contra ti, contigo, puxar por ti, lutar pelos ideais dela, do povo dela! Para te dizer na cara, com aqueles olhos magníficos, aquilo que ela achava no seu direito de dizer. Os teus olhos a fugirem, os ouvidos que não queriam ouvir, tu a disfarçares, com a mão nela, como quem diz, vamos mas é ao que interessa! Um merdas, um Rasas, nem sempre com cheiro a uísque azedo, mas um Rasas na mesma! A aproveitares-te da sensibilidade dela, a fazeres-te caro, de um momento para o outro, a invadi-la com as tuas mãos, ela a acreditar em ti! Miserável, Rasas de merda!

Nem tanto assim! Mas que chatice! O que fizeste com ela este tempo todo, o que fizeram os dois juntos, afinal? Nada do outro mundo, brincadeiras, uma vez ou outra mais ousadas, mas nada mais do que isso, sempre travaste as tuas incursões e as dela também, e bem te custou às vezes, ninguém imagina! De resto, das tuas mãos está inteira, ou quase, não te lembras de lhe deixar marcas irreparáveis, fisicamente falando, claro.

Então porquê esta atrapalhação toda, porque não vais falar com ela, directa nos olhos, assim, Teresa, temos que alterar a relação que temos vindo a manter, não temos razões suficientes para prolongá-la, devemos dar por terminado o nosso conhecimento, não, não te amo nem um pouco, apenas comecei contigo porque te achei graça, tu também, pelos vistos, este tempo passado diz-me que é melhor não continuarmos, e pronto! Já agora, Gil, continua Rasas até ao fim!

Os olhos dela não acreditavam, continuavam insistentes a furá-lo todo, para onde fores vou atrás, senão sei lá o que faço! Inscrevo-me nas forças combatentes do partido, hei-de encontrar-te, nem que seja de arma na mão! Quero ver como te defendes! O que se diz nestas ocasiões, as mãos amarradas aos braços dele, depois largou-os de uma vez, um metro para trás a tomar balanço.

Como quiseres, tu é que sabes, não tenho que me impor a ninguém, não preciso! Tenho amigos, não me vou perder a chorar por aí! Fui ingénua pela primeira vez, vou ser outra e outra vez ingénua, infelizmente para mim.

Enganei-me, pensei que os teus sentimentos eram verdadeiros, que podíamos fazer vida juntos, afinal…mas não tenhas remorsos, a culpa foi também minha. No fundo, pensando bem, é melhor assim.

Já te vais embora? Espera aí, ouve! Há tempos, quando estava a ler um livro, algo me fez pensar em ti, de uma forma diferente do costume. Pensei que fosse impressão minha, mas não, agora já sei porque me lembrei de ti naquele momento.

Afinal, és exactamente o que pareces, dentro de ti não há calor nenhum. Como o gelo, quando se quebra é só água fria por baixo. Só tens água fria por baixo, Gil. Queres ir-te embora, não queres? Vai então, vai!

7. NOTÍCIAS OUTRA VEZ

“Não estranhes esta carta, não te vou pedir nada! Estive a fazer exercícios de Trigonometria até ficar cansada, já estive na cama mas não consegui adormecer.
Há dias que ando a tentar escrever-te, a certa altura paro para reler e rasgo. Tem sido assim, folha atrás de folha, acho-as sem jeito. Nem sei se deveria escrever-te. Estou a fazê-lo para mim, como se estivesse a falar comigo. De resto o que temos para dizer que já não saibamos, não é? E, fico-me a pensar, será também que a gente quer mesmo saber um do outro?

Tenho sabido notícias tuas, de alguém que te vê todos os dias, até já te viu a tomar banho à noite na piscina do QG. Só mesmo tu! Por acaso, falou nos colegas dele e tu és um deles. Como isto é tão pequeno! E uma noite destas quando saía da explicação, quase que me encontravas, mais um minuto e ficávamos frente a frente. Também foi melhor assim, não é? Olha, acho que desta vez vou mesmo conseguir escrever-te. Mas não quero que te sintas obrigado a responder, fá-lo só se tiveres vontade, sem obrigação. Mas quero dizer-te Gil, que gostava muito das nossas conversas, às vezes lembro-me e fico não sei como…

A mamã Benilde está melhor agora, mas o papá acha que é melhor ela ir a Lisboa fazer exames, ela não quer, mas o papá insiste, até já escreveu para as tias em Benfica, elas dizem que tratam de tudo, para a gente ir, a mamã não quer, que não pode deixar a casa, diz que não deve ser nada, a humidade é muita, o tempo também não ajuda, não é? Diz que só vai se eu for com ela, eu só posso nas férias e este ano é muito complicado para mim.

Estou a ter explicações de álgebra e trigonometria, numa sala em frente ao Pintosinho, é uma turma pequena, só raparigas, somos 4. O professor é um militar que chegou, parece que há dois meses, um jovem com muito bom aspecto, muito inteligente, elas andam perdidas por ele, tu nem imaginas, ficam a passear na rua, para trás e para a frente, à espera que ele saia, ele não lhes liga nenhuma, nem as vê, boa noite, até depois de amanhã. Eu por acaso, não simpatizo muito com ele, isto é, acho-o giro, mas ele só fala em senos, co-senos e tangentes, sabes como são os matemáticos, além disso, não te rias, não gosto muito da colónia ou aftershave ou lá o que é que (desculpa isto ir tudo riscado, ia escrever o nome dele mas ele não quer que se saiba) ele usa. É às 2ªs, 4ªs e 6ªs, das 9 às 11 da noite, às vezes um pouco mais tarde, depende. Estou a gostar muito das aulas, acho que ele explica muito bem, tem muita lógica a ensinar, também quem é que vai para Matemática, não é, só quem tem feitio para os números, para a trigonometria, só de ver os exercícios do Palma Fernandes, é de desanimar! Mas estou a gostar muito e acho que vou conseguir fazer a cadeira logo à primeira.

E tu, tens trabalhado muito no bar da cantina? É lá que estás agora, não é? Tem-te corrido bem a vida? Quando vais embora? A semana passada encontrei a Dora na Ultramarina. Disse que deixaste de lá ir, eu também já não vou lá há muito tempo.

E pronto, desta vez foi mesmo a sério, amanhã vou ver se te mando esta carta. É tardíssimo, sabes que horas são, quase duas e não tenho sono nenhum! Um beijo da tua amiga e, podes acreditar, para sempre tua amiga,

Teresa Correia
Rua dos Rouxinóis, Vivenda Correia, nº 14, Bissau.
P.S. Gil, quero pedir-te desculpa da minha reacção, a conversa apanhou-me desprevenida, eu já desconfiava mas mesmo assim não contava que fosses tão bruto, desculpa se magoei a tua cara, mas também me magoaste muito, na cara não, mas cá dentro. Mesmo assim não te sintas obrigado a responder. Escreve-me só se te apetecer.
Bom, agora é mesmo, tchau!”


8. PONTO FINAL

Encontramo-nos então logo à noite, agora temos que ir a um funeral. Quem morreu? Uma aluna do Ramos, morreu de repente, o funeral é agora às 3, o Manaças contrariado. É pá, se não vens depressa já não vale a pena, o Ramos no jeep!

Chegou-se a um grupo, o Daniel no meio a contar a vida no Xitole. E se fosse até à cidade? E foi, por ali abaixo, o calor a apertar àquela hora, sem trânsito nenhum, uma viatura militar ou outra, o rádio a tocar Capri, c’est fini, o chato do locutor não se cansava de interromper.

Deu a volta à praça do Império, meteu-se a descer a avenida, em direcção ao cais, uma mancha de pessoas lá ao fundo, muitos carros, jeeps e outras viaturas militares à frente dele, a afrouxarem junto à Sé, deve ser o tal enterro.

Pessoas a saírem da igreja, muitos jovens, a Teresa também deve ir ali, as roupas dos padres, a carreta a andar com o caixão em cima, quatro pretos de camisa branca e calça preta ao lado, muitas pessoas atrás, senhoras de véu, rostos mais escuros, deve ser o choro, não quero ver mais, que ideia que tive, vir cá abaixo a esta hora! O cortejo a andar, a virar para a esquerda, para a rua da Teresa, em direcção ao cemitério para os lados da Amura. Não quero ver mais nada.

Meningite, um ataque fulminante, pá! Uma miúda de 20 anos, vê lá tu! Ninguém pode estar descansado, porra! Uma chatice, pá, a mãe desmaiou no cemitério, a comunidade cabo-verdiana toda em peso, até pides lá estavam, pessoal dos correios, muita gente mesmo, o pai é muito conhecido…

“Como foi? Só uma dor. Mamã, não sei o que tenho na cabeça, uma dor muito forte, um saridon que a Benilde costuma tomar para as dores dela, não passava, disse que tinha frio, devia ser paludismo, que é que havia de ser, começou a chorar, não aguentava as dores, quando o pai pegou nela ao colo, que não podia com a cabeça, ele mandou logo a Mabilde chamar o doutor que a conhecia desde menina, ele nem demorou muito.

Quando o médico entrou no quarto e a viu, disse que não devia ser paludismo, que o pescoço estava muito rígido, depois olha, quando deram por ela, estava já desmaiada. Ainda foram a correr para o hospital. Foi assim que o pai contou”. A Dora, a Mabilde e a Cesária inconsoláveis.

A missa foi num final de dia. Os pais da Teresa, a Mabilde, muita gente do Liceu, estudantes e professores, a Dora, a Matilde, a Cesária e alguns amigos cabo-verdianos mais chegados. À saída, cumprimentou os pais, a Mabilde, os amigos. Foi a última vez que os viu.

© Virgínio Briote (2006)

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(1) Canção romântica, em voga em 1965/66, de Hervé Villard: "Nous n'irons plus jamais, Où tu m'as dit je t'aime, Nous n'irons plus jamais, Comme les autres années, Nous n'irons plus jamais, Ce soir c'est plus la peine, Nous n'irons plus jamais, Comme les autres années. Capri, c'est fini, Et dire que c'était la ville, De mon premier amour, Capri, c'est fini, Je ne crois pas que j'y retournerai un jour" ...

(2) Rebentamentos das flagelações a Jabadá, aquartelamento das NT frente a Bissau.

(3) Greve dos estivadores no cais do Pidjiguiti, em 3 Agosto de 59, reprimida violentamente pela Polícia.

(4) Mao Tse Tung, na altura Presidente da China

(5) Fuzileiros
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Nota de L.G.

(*) Vd post de 13 de Novembro de 2005 > Guiné 63/74 - CCLXXXVII: O 'baile dos comandos' na Associação Comercial

" (...) Na esplanada do Bento, a 5ª Rep, como também era conhecida , bebia cerveja com mancarra, num grupo de 5 ou 6 comandos e páras. Um terá dito que naquela noite, na Associação Comercial de Bissau, havia o baile dos finalistas do Liceu. Outro lembrou-se de perguntar se alguém recebera convite. Eu não, tu não, aquele também não…Ninguém se lembrou de nós, como pode ser? Queres ir? (...)"

Vd também post de 13 de Dezembro de 2005 > Guiné 63/74 - CCCLXIII: O baile dos finalistas do Liceu de Bissau de 1965 (João Parreira)

"(...) Na manhã daquele dia para me descontrair tinha ido com alguns camaradas para Quinhamel, uma vez que estava com grandes projectos para aquela noite. Semanas antes tinha conhecido a Helena uma moça cabo-verdeana, que era o que se costuma dizer uma brasa e andava todo entusiasmado" (...).