15 março 2004

Em Lisboa nem sangria má nem purga boa - IV: Deitar fora a criancinha com a água do banho

Há sempre um grande risco, nas reformas de tipo topdown e por decreto que os políticos tendem a protagonizar no nosso país, de deitar fora a(s) criancinha(s) com a água do banho. No caso da saúde, isso pode vir a acontecer com a reforma do subsistema de cuidados de saúde primários. O Decreto-Lei nº 60/2003, de 1 de Abril, veio criar a chamada rede de cuidados de saúde primários, e revogar o Decreto-Lei nº 157/99, de 10 de Maio (Regime de criação, organização e funcionamento dos centros de saúde).

Uma das criancinhas é o médico de família, o mesmo é dizar, a especificidade e a identidade da medicina geral e familiar. Os cerca de 1500 médicos de família, reunidos no 21º Encontro Nacional de Clínica Geral (Vilamoura, 10-13 de Março de 2004), estavam inquietos e, mais do que inquietos, receosos em relação aos possíveis efeitos perversos da implementação do novo diploma.

A entrevista que o Ministro da Saúde deu, na sua presença, no dia 12 de Março, não me parece que os tenha tranquilizado nem muito menos convenceu. Louve-se a atitude (intelectual) e até a coragem (física) do ministro, ao aceitar dar uma entrevista em terreno hostil, perante uma plateia de centenas de médicos de família reunidos no seu congresso anual.

Os compromissos assumidos publicamente pelo titular da pasta da saúde vão implicar alterações ao D. L. nº 60/2003, de 1 de Abril, dizem as estruturas representativas dos médicos de família (Ordem dos Médicos, Associação Portuguesa de Clínica Geral, sindicatos médicos). Mas uma coisa é a negociação, de boa fé, e outra coisa o discurso político para consumo interno e/ou externo.

A criancinha não é apenas o prestador de cuidados de saúde ou a "equipa de saúde multiprofissional", como se lê no preâmbulo do contestado diploma legal (o médico, “preferencialmente” da carreira de clínica geral; o médico de saúde pública, se o houver; o enfermeiro, o técnico de serviço social, o psicólogo, o pessoal de apoio administrativo, etc.). A criancinha é também, e sobretudo, o utente, o cidadão, a pessoa, no seu contexto sociofamiliar...

Para os médicos de família e os seus representantes, a questão é a seguinte: (i) este decreto-lei não acautelaria a gestão integrada da saúde e dos serviços de saúde; (ii) a carreira médica de clínica geral seria destruída; e (iii) os cuidados de saúde primários ficariam inexoravelmente na órbita centrípeta e trituradora da medicina hospitalar e da "gestão mercantilista da saúde"...

Trata-se de um parti-pris ideológico ? De uma reacção de defesa corporativa ? De uma forma de resistência à mudança ? Mesmo que assim fosse, seria sempre uma reacção saudável e necessária em qualquer sistema e em qualquer mudança, justamente para evitar que os reformadores, ofuscados pela sua agenda e pressionados pelo seu timing, acabem por esquecer o essencial, a missão, os valores, os princípios, os resultados... Ou até que façam mudanças que, embora tecnicamente bem conceptualizadas, redundem em estrondoso fracasso do ponto de vista sócio-organizacional... Infelizmente, a história dos cuidados de saúde primários em Portugal é, também ela, um sucessão de tentativas de mudança que não têm passado do papel, independentemente da cor política do ministro da tutela...

Partilho as preocupações do Senhor Presidente da República, manifestada num encontro de economistas no Palácio de Belém, no mesmíssimo dia 12 de Março de 2004, quanto aos riscos de a empresarialização dos hospitais e demais serviços de saúde e a consequente lógica de mercado não garantirem, devidamente, a equidade (ou a igualdade de oportunidades), que é essencial à operacionalização do conceito de direito à saúde, consagrado na nossa Constituição.

Seria trágico que, mais de 30 trinta anos depois da consagração portuguesa do conceito de cuidados de saúde primários (com vários anos de avanço em relação a instâncias internacionais como a OMS), nós voltássemos à estaca zero, ou seja, à caixificação da saúde/doença, ao modelo de prestação de cuidados dominante nos Serviços Médico-Sociais das Caixas da Previdência.

Ora este risco é real, e eu partilho as preocupações da minha médica de família que, o ano passado, me explicou, detalhadamente, por que razão é que ela, pela primeira vez na sua vida, fazia uma greve no seu centro de saúde. Ela não tinha nada que se justificar perante mim, simples utente da sua grossa lista, mas eu achei bonito o seu gesto. Ao sair do seu gabinete, pensei cá com os meus botões quão privilegiado era eu por ter esta mulher como minha médica de família!

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