Olho do alto,
Do mais alto edifício da Lisboa fontista,
O marquês in su situ,
O dito marquês de Pombal,
Le plus fameux marquis du Portugal:
Estatuado,
Bem apessoado,
Em pose de Estado,
Mas sem insígnias de general:
Apeado,
Sem burro, mula ou cavalo
Para se poder passear
Nas avenidas novas, burguesas.
Consulto o guia turístico do pós-25 de Abril
E vejo que lhe falta, do polícia oitocentista,
O cassetete e o apito,
Mas ele está bem assim,
Acima do Rei,
Maçon e republicano,
Domando o leão,
Dominando a cidade,
Serena, sibilina,
Com o Terreiro do Paço
E o Rio Tejo, o mundo, ao fundo.
Comment ils sont toujours gais, les portugais.
Olho-o de alto,
Sem desprezo nem paixão,
Com o tal olhar sociológico,
Profundo,
Perscrutador,
Que me ensinou o meu professor
De métodos e técnicas
De investigação:
Saibam escutar Deus,
E ponham a falar o pecador.
Deus e a sua corte,
Mais os grandes deste mundo.
Mas só agora reparo
No meu pequeno problema
Do foro oftalmológico.
Não é uma questão de vida ou de morte,
Mas apenas de incapacidade:
Estou com falta de perspectiva,
Não tenho o súbito ângulo de visão,
Nem a suficiente lucidez,
Luminosa, altiva,
Para descer do pedestal
E caminhar, erecto e sozinho,
Pela Avenida, larga, da Liberdade.
Não, não sou pederasta nem pedófilo,
Sou o Intendente,
Do Largo do mesmo nome,
Pina Manique, um seu criado para o servir.
E eu, cá por mim,
Prezo-me de ser um gajo decente,
Não fumo, não bebo, não conspiro,
Sou um anónimo súbdito leal,
Respeitador da lei e da grei:
Je viens du Siècle du Son et Lumière,
Mas sou daqui natural,
Primata social,
De sangue quente,
Português, discreto,
Cidadão avant la lettre,
Jacobino, às vezes,
Maçónico,
Clandestino,
E hoje liberal dos sete costados,
Como o Espada, o Pacheco ou o Barreto;
Por azar, nascido no Estado Novo,
Educado em escola do Conde de Ferreira,
Que antes de conde era visconde,
Como antes tinha sido barão e cavaleiro,
E antes de tudo era o José Ferreira,
Mascido em Gondomar,
Médio camponês, maior roceiro e negreiro,
Filantropo, benemérito,
Apoiante da causa da Dona Maria,
E que eu saiba nunca foi setembrista
Ou capitalista manufactureiro;
Mas que deixou o remanescente da sua imensa fortuna
Para fazer a escolinha
Para o menino e a menina;
E por duplo azar o meu,
Sou ex-combatente da guerra colonial,
Nas bolanhas da Guiné,
Terra de azenegues e de negros;
E ainda por cima
Contribuinte ilíquido,
Cibernauta, blogador,
Com sintomas de burnout,
Ao virar da esquina do século vinte e um.
Desculpe, Senhor Intendente, Excelência,
Mas não reparei na velhinha
Com o cão pela trela,
Na passagem de peões.
Enfim, andei como tu,
Pobre marquês no ocaso dos dias,
Grande marquês o resto do ano,
Uma vida inteira
A exercer ilegalmente
O mister da existência,
O ofício de viver:
A enterrar os mortos
E a cuidar dos vivos,
A destruir o passado,
A construir o presente
E a desenhar o futuro.
Só não matei de morte matada,
Por objecção de consciência.
E afinal,
Alguém me passou um atestado
De robustez física
Para poder circular
Entre o núcleo duro
Da insanidade mental
Da mítica cidade de Ulisses:
Hoje faz parte da blogosfera,
A cidade gravada em cobre por Braúnio
Em Civitates Orbis Terrarum.
Não sei como deixei escapar
Esta exposição
No Centro Cultural de Belém,
Diz o Intendente Pina Manique,
Agora caído em desgraça.
Entre reclusos e negros,
Mouros cativos
E filósfosos esotéricos,
Judeus sefarditas
E cristãos velhos,
Marinheiros e mercadores,
Batedores, dançarinos e cantadores de fado,
Portadores do virús HIV,
Operários sinistrados
Das obras do convento de Mafra
E poetas alcoolizados
No Martinho da Arcádia,
Pederastas e prefeitos
Dos Reais Colégios,
Passei pela consulta do morbo gálico
No Hospital Real de Todos os Santos.
Estava semi-destruído,
Vinte anos depois da Grande Peste
(De que Deus nos livre!).
Afinal, o meu mal era português,
Disse-me o físico,
De serviço ao banco de urgência.
Era já velho, trinta anos,
A cara coberta de bexigas
Por causa da varíola
Ou de algum esquentamento mal curado
- E aos trinta anos, senhor,
Quem não é médico é louco,
Ameaçou-me o maqueiro,
Mal barbeado,
Com ar de galicado
E chulo do Bairro Alto.
Dei-me, o físico, alguns unguentos e sedativos
E um estranho papel com uma receita:
'Senhor real boticário,
É completamente inútil
Este exercício ilegal da medicina,
O mal do doente é português
E quiçá irremediável e universal:
Do coração a sangrar não há sinais,
Dê-se conhecimento ao físico-mor
Para os devidos efeitos
E procedimentos habituais!.
Hoje a cidade está vazia
À hora de ponta
E já não se dispensam mais
Cuidados paliativos.
Facto trivial,
Uma criança é abandonada
Na Roda da Misericórdia,
E um turista acidental espreita
À porta, fechada, da cervejaria Trindade,
Enquanto El-Rei, nosso senhor,
Sangra de saúde, compulsivo,
E deixa o seu ministro aflito.
Nas paredes do hospital da cidade
Alguém escreveu um grafito
Jocoso, quiçá subversivo:
Meu Caro Marquês, em Lisboa...
Nem sangria má nem purga boa!.
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