23 outubro 2005

Guiné 63/74 - CCLVI: As estórias que não contamos aos nossos filhos

Não houve mata na Guiné que o Alferes Comando Briote não tivesse pisado uma ou mais vezes, incluindo Satecuta/Galo Corubal, na região do Xitole, por onde andou 19 dias, na época das chuvas (!). E mata aqui significa território sob controlo (militar, político e adminmistrativo) do PAIGC. L.G.

Entre outros camaradas africanos, o tuga Briote - que foi em rendição individual, nos finais de 1964, para a CCAV 489 (Cuntima, região do Cacheu) e que seis meses depois estava em Brá a fazer o curso de comandos - trabalhou com o Marcelino da Mata e o Jamanta que vieram mais tarde a integrar a 1ª Companhia de Comandos Africanos que eu vi crescer em Fá Madinga (1). L.G. © Virgínio Briote (2005)


Texto de Virgínio Briote, ex-alf mil comando (1965/67):

Pois, a Guiné! A Guiné faz parte de mim. Entrou-me no sangue aos 21 anos, tenho 62, vive comigo. Percorrem-me sentimentos contraditórios, não devia ser, mas é o que sinto às vezes. Assaltos, pé ante pé, ao nascer do dia, ou ainda de noite, de heli a qualquer hora do dia. Descargas de adrenalina e de tiros, estardalhaço de rockets, granadas, 10 minutos no máximo, retirar a seguir no goss-goss. Depois, o regresso a Bissau, o banho e o sono, o almoço farto no Fonseca. E o desassossego e a dor tantas vezes levados àquelas gentes, um peso que trago comigo, que me curva. Passou-se comigo, não ouvi contar.

O Virgínio Briote em Mansoa, já com as insígnias de comando, o crachat na boina (Julho de 1966)

© Virgínio Briote (2005)

Tenho respeito pelas tropas especiais, que fizeram aquilo que lhes pediram. E muito mais pelos soldados, furriéis, sargentos e alferes milicianos que, sem lhes perguntarem nada, os arrancaram ao trabalho e ao estudo. Espalhados pelas Mafras do País, encaixotados nos comboios, nas camaratas, nos beliches ou nos porões sujos e escuros dos Uíges, de G3 na mão pelas matas, savanas, tarrrafos e bolanhas, corações aos saltos, T6 e Fiats G-91 no ar, helis à procura de locais para pousarem, macas com feridos e mortos, os regressos aos abarracamentos, partir para outra, sempre assim, até ao fim dos dois anos. Viram derreter-se 2 anos da vida deles, a fazerem contas aos dias, dentro do arame farpado, entre abrigos, à luz do petromax, sem frescos, à mercê de tudo, da Dornier, das colunas de reabastecimentos, do valente IN.

Quartel de Brá, a nordeste de Bissau. Aqui nasceram os primeiros comandos da Guiné, primeiro organziados em grupos e depois em companhia. Estes comandos, de primeira geração,antecederam a primeira companhia de comandos metropolitana, formada em Lamego, e aqui chegada em Junho de 1966 (3ª CCmds). L.G.

© Virgínio Briote (2005)

Alguns nem chegaram a ir ao Cupilom, saíram dos Niassas, meteram-nos em GMCs, Mercedes, Unimogs e, ala que se faz tarde, estrada fora, a caminho de Nhacra, Mansoa, ou Geba abaixo, Buba a aparecer ao longe. Dois ou três dias depois, parecia que estavam em Bissorã, Mansabá, Cacine, há que meses.

Muito tempo, manga de chatice passada, o caminho do regresso, directos para as lanchas, quando deram por eles, nem acreditavam, era o velho Niassa ou Uíge, outra vez. E, quando chegavam a Lisboa, à terra deles, encontravam gente que lhes fazia perguntas:
- Mataste muitos turras, juntaste algum?

Cemitério de Bissau onde ficaram muoitos dos nossos os e alguns dos nossos melhores (1966).


© Virgínio Briote (2005)


Tempos difíceis que a nossa geração viveu e, valha a verdade, tudo tem sido feito para fazer de conta que nada se passou. E, se calhar é melhor assim, foi só um sonho de uma noite, uma noite que durou 13 anos.

E os que viveram aqueles tempos, quando se encontram agora, recordam episódios, pequenas histórias, quase nunca factos da guerra. Devem ter motivos bem fortes para recordarem os episódios marginais e esquecerem histórias que muitos de nós preferia não ter vivido.

Desculpa lá esta lavagem, Luís. Muito raramente abordo estes assuntos, nunca contei um episódio de guerra que fosse aos meus filhos. Quando desembarquei em Lisboa, jurei a mim próprio nunca mais pegar numa arma, nem na Feira Popular. Quase quarenta anos ao arrumar um sótão de uma casa na aldeia, bem lá para o Norte, vi duas malas cheias de pó. Cartas, roupas, facturas, e uma pistola dentro de um estojo. Quebrei a promessa. Peguei-lhe, meti-me a caminho das margens de um rio e lancei-a para o sítio mais fundo.

E pronto, Luís, a minha prosa bélica acaba aqui, por hoje. Na próxima semana vou estar fora, só regresso no próximo sábado e na semana a seguir, a primeira de Novembro, tenho muito gosto em tomar um café contigo (...).

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Notas de L.G.

(1) Vd. post de 11 de Julho de 2005 > Guiné 69/71 - CIII: Comandos africanos: do Pilão a Conacri

Vd. também a página não oficial dos comandos portugueses > Comandos - Tropa de Elite

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