Fonte: Extractos de
Diário do Alentejo, de 23 de Abril de 2004. Com a devida vénia.
Crónica do soldado 328, por Alberto Franco
O alentejano Joaquim Ganhão foi um dos milhares de portugueses que lutaram em África, nos anos da Guerra Colonial. Nas dificuldades e sustos que viveu em terras da Guiné – participou na célebre Operação Tridente, em 1964 – certamente muitos outros ex-militares se reconhecem. Quando passam 30 anos sobre o 25 de Abril, é oportuno recordar a longa guerra, unanimemente considerada uma das principais causas da revolução.
Quando o
Niassa zarpou de Lisboa, em 17 de Julho de 1963, não se pode dizer que os rapazes do Batalhão de Cavalaria 490 estivessem inquietos. Afinal, iam para Moçambique, onde a guerra que lavrava noutras colónias portuguesas não tinha ainda chegado. Mas a meio da viagem o programa sofreu alterações. O agravamento da situação militar na Guiné obriga ao reforço do contingente naquele território. O
Niassa recebe ordem de rumar a Bissau, e aí desembarcar as tropas que transportava.
- Foi um balde de água fria para todos nós-, recorda Joaquim Moita Ganhão, 61 anos, nado e criado em Moura, um dos muitos alentejanos que integravam o Batalhão
Quatro Noventa. A guerra na Guiné começara há escassos meses, mas o território gozava já de má reputação entre os militares portugueses. À ameaça que a guerrilha do PAIGC (Partido Africano da Independência da Guiné e Cabo Verde) representava, combinava-se com uma geografia inóspita e um clima duríssimo, quente e húmido, favorável ao paludismo e a outras doenças tropicais. Quem esperava passar dois anos em Moçambique, no sossego de Vila Pery, e se vê inesperadamente atirado para a Guiné, não podia ter outra reacção que não fosse o alarme. Mesmo que se tivesse 20 anos, muito sangue na guelra e se pertencesse a um batalhão cujo lema era
Sempre em Frente.
Em casa de Joaquim Ganhão eram nove irmãos, que o curto salário do pai, caiador de profissão, não chegava para sustentar:
- Eu ficava em casa a cuidar dos meus irmãos mais novos, enquanto a minha mãe trabalhava a dias. Essa a razão porque só entrei para a escola com nove anos-. Aos 12, Joaquim perde o pai. Com o amparo reduzido, vê-se forçado a trabalhar antes do tempo. Aprende o ofício de pedreiro, que exerce até aos 20 anos, idade em que é mobilizado para a tropa.
O soldado 328 estaciona três meses em Beja e dali segue para Estremoz, onde o Batalhão 490 está a ser formado. No
Quatro Noventa, os alentejanos estavam em maioria:
- Havia gente de Elvas, Estremoz, Messejana, Aljustrel, Salvada. Só os cozinheiros eram do Norte…- , assinala Joaquim Ganhão - A instrução em Estremoz foi dura. Preparam-nos para combater, segundo os modelos da época.
Vendo os conflitos que deflagravam nos territórios coloniais de outros países europeus, o exército português tinha-se preparado para enfrentar o fenómeno a que uns chamavam
guerra subversiva e outros
guerra de libertação. Oficiais portugueses estagiaram junto do exército francês na Argélia e especialistas estrangeiros ministraram em Portugal para acções de formação. Mas uma coisa era a guerra teórica, outra a guerrilha nos pântanos da Guiné, as bolanhas, nas matas de Angola e Moçambique. Pela sua parte, Joaquim Ganhão fez pela vida e frequentou em Estremoz o curso de cabos:
- Fui o segundo melhor classificado. Quando embarquei para África, em Julho de 1963, já era 1º cabo da minha Companhia, a 489.
Baptismo de fogo no Oio-MorésAté àquela data, o pedreiro de Moura não tinha posto os pés num navio, e em matéria de cursos de água só conhecia o mansos rios Ardila e Guadiana. Mesmo assim não se deu mal na jornada a bordo do
Niassa:
- Tive a sorte de não enjoar, ao contrário de muitos companheiros”-. Os seis dias de viagem passou-os a dormitar nas baleeiras do
Niassa, a espantar as saudades com cartas para a família e em camaradagem com o seu amigo de infância Henrique Pinto, outro militar mourense em trânsito para a Guiné.
Chegados a Bissau em plena estação das chuvas, são alojados no quartel da Amura, um antigo entreposto de escravos. O clima doentio surpreende-os desde logo:
- Era diferente de tudo o que conhecíamos. Com a humidade, a roupa colava-se-nos ao corpo. Só estávamos bem debaixo do chuveiro. De vez em quando, caíam trovoadas que metiam medo -. Outro motivo de espanto é a pobreza do território. Com poucos ou nenhuns recursos naturais, sem núcleos urbanos desenvolvidos, a Guiné era a peça menos valiosa do império português, e como tal a mais desprezada por Lisboa. Ganhão sublinha “a miséria das populações, as filas de mulheres e crianças com latas, à espera que lhes dessem alguma comida”.
A guerra aberta na Guiné principiou em 23 de Janeiro de 1963, com o ataque ao quartel de Tite, embora desde 1961 se registassem actos de sabotagem levados a cabo pelo Paigc de Amílcar Cabral. Bem armada, apoiada por países fronteiriços como a Guiné-Conacri e o Senegal, a guerrilha alastra pelo território guineense como um regueiro de pólvora. A companhia do 1º cabo Joaquim Ganhão recebe o baptismo de fogo no Norte da colónia:
- Fomos render uma companhia que se encontrava em Mansabá. Aí sofremos uma emboscada nocturna, na zona do Oio-Morés, que por ser muito pantanosa e de acesso difícil era um bom refúgio para os guerrilheiros.
Joaquim Ganhão lembra-se que a noite estava escura e a mata era cerrada:
- Ia à frente da minha companhia, quando senti o encosto de uma arma. O guia deu o alarme, eu comecei a disparar no escuro e a correr pelo capim, como um doido. Quando as coisas acalmaram e a companhia se reorganizou, deparo com um guerrilheiro a apontar-me uma pistola-metralhadora. Tentou atirar, mas, felizmente para mim, a arma estava encravada -. O soldado 328 captura o homem, apreende-lhe a metralhadora e três carregadores de munições.
- O guerrilheiro chamava-se Albino Sampa. Mais tarde cheguei a ir visitá-lo à cadeia, em Bissau -. O melhor desta aventura acabou por ser o prémio de um mês de licença na Metrópole:
- Quando me deram a notícia, ia ficando maluco de alegria. O pior foi que a minha família, quando soube que eu estava em Lisboa, pensou que estava todo partido... Só descansaram quando a minha irmã me foi buscar a Estremoz e viram que estava bem de saúde.
Tridente da morteMas a emboscada no Oio-Morés foi uma brincadeira, comparada com o que veio a seguir. O Batalhão de Cavalaria 490, e com ele Joaquim Ganhão, foi um dos participantes na operação Tridente, uma das mais aparatosas ofensivas portuguesas na Guerra Colonial. Denominada Tridente porque envolvia a marinha, o exército e a força aérea, a operação visava ocupar as ilhas do Como, Caiar e Catunco, no Sul da Guiné, onde os combatentes do PAIGC dispunham de importantes bases. Ali se movimentava o astuto comandante Nino Vieira, formado nas técnicas da guerrilha pela Academia Militar de Pequim, que teria no Como cerca de 300 homens, incluindo militares da Guiné-Conacri. Um dos objectivos da missão consistia em conquistar o apoio da população das ilhas, que os guerrilheiros controlavam:
- Em todas as tabancas (aldeias tradicionais) do Como, se viam retratos de Amílcar Cabral-, observa Joaquim Ganhão.
A operação Tridente iniciou-se em 15 de Janeiro de 1964. O 1º cabo Ganhão só soube o que o esperava quando se viu a bordo de uma lancha LDM, dos fuzileiros. Através das bolanhas, ladeadas por uma vegetação densa e asfixiante, o tarrafo, a Companhia 489, comandada pelo capitão Pato Anselmo, avançou até à ilha de Catunco. Ganhão permaneceu ali mais de dois meses, “entrincheirado num buraco, juntamente com dois companheiros, agarrados às G3, com as balas do inimigo a passarem-nos rente”. Quem disparava?
- Nenhum de nós sabia. Os tiros vinham da mata, onde os guerrilheiros estavam bem escondidos -. Por isso, sair do
buraco só em último caso:
- Tínhamos o exemplo de um companheiro que se levantou para beber uma pinga de água e foi atingido por um tiro no queixo.
Quando se iniciou a segunda fase da operação, foi necessário deixar os abrigos e patrulhar as ilhas:
- Saíamos aos ziguezagues, em grupos de três. Depois deitávamo-nos ao chão e saíam outros três. E isto sempre aos tiros. Foi numa destas acções que Joaquim Ganhão perdeu o seu amigo Henrique Pinto, o primeiro militar de Moura a tombar na guerra:
- O Henrique, que pertencia à Companhia 487, seguia numa patrulha, formada em leque. Ele, que estava numa das pontas, avançou demais e foi capturado, às três da tarde do dia 24 de Janeiro -. Ganhão e outros tinham ido buscar mantimentos à base logística da operação, instalada numa praia. Aí viu chegar um helicóptero com o cadáver de Henrique, resgatado pelos fuzileiros. O choque foi terrível. Quarenta anos passados, ainda hoje a voz de Ganhão se embarga quando fala do caso:
- Podia ter sido eu. Tive sorte, não calhou.
Os aviões F-86 e T-6 flagelavam as matas do Como com
napalm, as granadas explodiam a toda a hora, mas os resultados práticos da operação tardavam em ver-se. A única evidência era o sofrimento dos militares portugueses:
- Bebia-se qualquer água e a alimentação resumia-se a rações de combate-, conta o 1º cabo Ganhão - Comemos carne fresca uma única vez, quando os fuzileiros abateram algumas vacas. Não admira que durante a operação Tridente 193 militares tenham sido retirados do teatro de guerra, por motivo de doença.
Setenta e um dias depois, a missão é considerada finda. As estatísticas apontavam 76 guerrilheiros mortos, 15 feridos e nove detidos. Do lado português contaram-se nove mortes e ferimentos em 47 soldados. Foram disparadas 124 mil balas, 1200 granadas de artilharia e 550 granadas de morteiro. Os militares aliviaram a tensão consumindo 15 500 garrafas de cerveja e fumando 10 100 maços de tabaco. Números que não maquilham o insucesso da operação. A última palavra pertenceu à guerrilha, que continuou a servir-se do Como, só abandonando a região quando os seus interesses se transferiram para outros locais.
Cruz de Guerra no 10 de JunhoDepois de intervir na Tridente, a Companhia 489 é destacada para o Norte:
- Fomos para junto da fronteira com o Senegal, com o objectivo de dificultar as entradas e saídas dos guerrilheiros e das forças que os apoiavam.
Joaquim Ganhão andou por Contima, Farim, Bula, Bafatá, Mansoa. Porém, antes de pensar em fiscalizar o que quer que fosse, era preciso construir as bases necessárias ao estacionamento de tropas. Na Guiné, como na generalidade das vastas colónias portuguesas, faltavam aquartelamentos, vias de comunicação e demais infra-estruturas. Por outro lado, no caso específico do Norte da Guiné, tornava-se necessário atrair e organizar a população que tinha cruzado a fronteira do Senegal, fugindo à guerra. Os soldados da 489 ajudavam à reconstrução de tabancas, construíam abrigos, “à mão, sem a ajuda de quaisquer máquinas”, de valas em redor dos quartéis e outras infra-estruturas defensivas, muitas vezes debaixo de fogo. Quando empunhavam a G3, vigiavam a fronteira e montavam as suas emboscadas. A tropa “saía por volta da meia-noite. Então víamo-los passar, a pé, outras vezes de bicicleta”. Nessas alturas, “a fuzilaria era tanta que nem os raios das bicicletas se aproveitavam.”
As normas da altura determinavam que o tempo de serviço militar era de 24 meses. Todavia, muitos militares excediam, contra vontade, este período. Às vezes morriam em África, quando, segundo a lei, já deviam estar em Portugal. Joaquim Ganhão lembra um episódio ocorrido em Bula, com uma companhia de caçadores que já tinha atingido os 27 meses de comissão:
- Por sermos mais novos, a nossa companhia seguia atrás deles, numa deslocação pelo mato. De repente, caem numa emboscada. Recordo-me que os guerrilheiros tinham cortiços de abelhas em cima de árvores; cortavam as cordas e os cortiços caíam em cima dos soldados. Com este truque e com o tiroteio, morreram dois ou três caçadores. Que já não deviam estar na Guiné, porque já tinham cumprido o seu tempo.
Ganhão teve mais sorte. Regressou a Moura em Setembro de 1965, são e salvo. Um ano depois, já casado, recebeu em Évora, nas cerimónias do 10 de Junho, a Cruz de Guerra de terceira classe, pelo seu desempenho na Guiné. Quarenta anos depois, Joaquim Ganhão, mestre de construção civil, pai de duas filhas, olha para trás com serenidade:
- É bom que se diga que fui para a Guiné obrigado. Tínhamos que livrar o corpo, para não morrer. Foi o que eu fiz. Estimo muito a Cruz de Guerra, mas lamento que além da medalha ninguém me tenha compensado pelos dois anos de vida que perdi.
A Guerra Colonial e o 25 de AbrilO desgaste que a guerra provocou nas forças armadas portuguesas e a ausência de soluções pacíficas para a questão colonial, contam-se entre as principais motivações do 25 de Abril. Treze anos de confrontos exigiram o destacamento de 70 mil homens para Angola, 42 mil para a Guiné e 57 mil para Moçambique. Segundo a
Resenha Histórico-Militar das Campanhas de de África (1961-1974), registou-se um total de 8 290 mortos, nas três frentes de batalha. A este número há a juntar 112 000 feridos, dos quais 30 mil terão sofrido deficiências para toda a vida, e perto de 100 mil vítimas do stresse de guerra.
Este factor conjugou-se com uma série de transformações na instituição militar, ditadas pelo esforço de guerra. A falta de capitães para o comando de companhias levou o Governo a recorrer a oficiais milicianos, para postos normalmente ocupados por militares de carreira. Facilitou-lhes o ingresso na Academia Militar, reduziu a duração dos cursos e criou um “quadro especial de oficiais”. Por um lado, esta situação refrescou as fileiras das forças armadas, mas gerou tensões e conflitos entre milicianos e oficiais oriundos de cadetes da Academia Militar.
A gota de água acabou por ser o famoso Decreto 353/73, de 13 de Julho, que introduziu diversas alterações ao nível da antiguidade na carreira das armas. Os protestos levam o Governo a recuar, publicando um outro diploma que protege os interesses dos oficiais superiores e põe em causa os dos capitães. O avolumar da contestação, a que se junta, naturalmente, a oposição ideológica entre militares e governantes, e as aspirações de liberdade dos primeiros, está na génese do Movimento dos Capitães, que desencadeou o 25 de Abril.
Manhas de soldadoNem sempre o soldado 328 estava disposto a dar o corpo ao manifesto. Um enfermeiro amigo livrou-o de uma ou outra incursão, atestando que Joaquim Ganhão não se encontrava a cem por cento. “Eram manhas típicas da guerra”, recorda. O truque nem sempre resultava:
- Aconteceu quando tive que substituir um furriel, que tinha cegado com o rebentamento de uma granada. Uma noite em que me chamaram para uma operação, pedi ao Fernando, o enfermeiro, que me desse uma ou duas injecções. Ele assim fez. Passei a estar doente, incapacitado para qualquer missão. Mas o alferes que devia chefiar a missão não engoliu o truque. Chega ao pé de mim e diz-me: ‘Tu está tão doente como eu! Levanta-te da cama, que o pessoal está todo à tua espera’. E lá fui, mesmo com duas injecções.
(...)