28 fevereiro 2006

Guiné 63/74 - DXCIII: Cancioneiro de Canjadude (CCAÇ 5, Gatos Pretos)

Guiné > Região do Gabu > Canjadude > CCAÇ 5 (Gatos Pretos, 1973/74) - Bandeira.

©João Carvalho (2006)

O João Carvalho, que foi furriel miliciano enfermeiro dos Gatos Pretos, diz-nos que começou a rebuscar o seu "baú de recordações". E nessas voltas ao passado, "enontrei uma pequena bandeira dos Gatos Pretos. Digitalizei só uma face"...

A par desta preciosidade, também foi desencantar letras de canções com que os Gatos Pretos exorcizavam os seus fantasmas, os seus medos, as suas angústias nas noites longas de Canjadude (1)...

Fica aqui uma amostra desse Cancioneiro que eu tomei a liberdade de chamar o Cancioneiro de Canjadude, por analogia com o da Niassa (Moçambique) (3), tal como já tinha feito com os cadernos do Eduardo Magalhães Ribeiro, ex-furriel miliciano de operações especiais, da CCS do BCAÇ 4612, que teve o seu momento de glória em Mansoa, em 9 de Setembro de 1974, ao arrear a última bandeira verde-rubra, e que eu rebaptizei com o título Cancioneiro de Mansoa (3) .

Também já aqui publicámos, no nosso blogue, a famosa letra do hino de Gandembel (4). No meu tempo (CCAÇ 12, Bambadinca, 1969/71) era provavelmente a canção de caserna mais popular, passando de boca em boca. Guileje, Gadamael e Gandembel eram três nomes de aquartelamentos do sul que os periquitos, em Bissau ou na Zona Leste, pronunciavam com temor e respeito... Infelizmente já não me lembro da música...

O nosso camarada João Carvalho, ex-furriel miliciano enfermeiro da CCAÇ 5 (1973/74), hoje farmacêutico

©João Carvalho (2006)



Guiné> Região do Gabu > Canjadude > CCAÇ 5 (Gatos Pretos, 1973/74) - Balada de Canjadude. Música: DEsconhecida. A letra é uma paródia do conhecidíssimo poema do Augusto Gil (1873-1929), Balada da Neve (do livro Luar de Janeiro, 1909) (LG).

© João Carvalho (2006)

Voam forte, fortemente,
Provocando o alvoroço.
Metralha de outra gente
Que pretende certamente
Estragar-nos o almoço.

Será talvez um tornado,
Mas ainda há pouco tempo,
Nem as chapas do telhado,
Nem o desconjuntado,
Se moviam com o vento.

Fui ver...
As morteiradas caíam,
Do azul cinzento do céu,
Grandes, negras, explodiam,
Como elas se moviam,
Mas que barulho, Deus meu!

Olho através da seteira,
Está tudo acinzentado.
Elas caem, que poeira,
Levantam à nossa beira,
Felizmente mais ao lado.

Ficando olhando estes sinais,
Deixados pela tormenta.
E isto por entre os mais,
Buracos descomunais,
Dos impates do oitenta.

Inesperado, cortante,
Eis que ribomba o canhão
Que, apesar de estar distante,
Com a sua voz troante,
Vem espalhar a confusão.

Com potente vozear,
Estas armas falam forte,
O canhão a metralhar,
Propõe-se a enviar
Sua mensagem de morte.

Que quem já é terrorista,
Sofra tormentos, enfim.
Mas esta tropa, Senhor,
Porque lhes dai tanta dor,
Porque padecem assim ?

É uma infinita tristeza,
Constante perturbação,
No coração é inverno,
Cai chumbo na natureza,
Canjadude é um inferno.



Guiné > Região do Gabu > Canjadude > CCAÇ 5 (Gatos Pretos, 1973/74) - Hino da Velhice. Música de Puppet on the String, uma canção do Reino Unido, composta por Bill Martin/Phil Coulter que ganhou o Festival da Canção da Eurovisão de 1967, interpretada por Sandi Shaw. (LG).

© João carvalho (2006)

Refrão

Ai....
Tirem-me daqui,
Mandem-me p'ra Metrópole,
Que eu estou a ficar maluco, maluco, maluco,
Quero ir daqui embora!...

Já lá vem o meu periquito
A saltar na bolanha,
Quando for daqui para fora
Nunca mais ninguém me apanha.

Quero ir embarcar...
E à Metrópole voltar...

Refrão

Despedidas eu vou fazer
E a arma entregar.
Depois então vou receber
A guia p'ra marchar.

Quero ir embarcar...
E à Metrópole voltar...


Região do Gabu > Canjadude > CCAÇ 5 (Gatos Pretos, 1973/74) - Bibóculos de guerra. Música: Vou partir, vou voltar, vou partir... (Conhecida música da época, mas já não me lembro quem era o intérprete) (LG)

© João Carvalho (2006)



Guiné > Região do Gabu > Canjadude > CCAÇ 5 (Gatos Pretos, 1973/74) - Gato Pira. Música: Negro Gato, do Roberto Carlos. ©João Carvalho (2006)

Minha triste história
Vou-lhes contar,
Por certo ao ouvi-la
Vão ter que tarrafiar!

Miau... Eu sou o gato pira (bis)

Manga de meses tenho
Para lutar,
Manga de chances tenho
Para escapar.
Mas se eu afinar,
Acabo num farrapo.

Miau... Eu sou o gato pira (bis)

Há dias, lá no mtao,
Pobre de mim,
Queriam as minhas penas
Para um ronco assim.
Apavorado eu pensei
Ai, que será de mim ?


Miau... Eu sou o gato pira (bis)



Guiné > Região do Gabu > Canjadude > CCAÇ 5 (Gatos Pretos, 1973/74) - Fado da Emboscada. Música: Fado do Embuçado (Autor: João Ferreira Rosa).


©João Carvalho (2006)

A história que eu vou contar,
Já há muito aconteceu,
Gatos pretos em acção,
Na grande operação,
Lacoste em Burmeleu.

A malt' ia pela mata,
Ainda não viar nada,
Mas por mal dos meus tormentos,
Com fortes rebentamentos,
Começou a emboscada.

Logo a malta reagiu,
No meio da confusão,
Atrás deles e a correr,
A gritar e a dizer
Gato preto agarra à mão.

Perante a admiração geral,
No meio da algazarra,
Enquanto os turras fugiam,
Os nossos os perseguiam,
A gritar Agarra, agarra!.

EW então já noitinha,
Quando a tropa instalou,
P'ra nosso contentamento,
Munições e armamento,
Foi o ronco que ficou.


____________

Notas de L.G.

(1) Vd. post de 23 de Janeiro de 2006 > Guiné 63/74 - CDLXXIV: O nosso fotógrafo em Canjadude (CCAÇ 5, 1973/74)


(2) vd post de 11 de Maio de 20054 > Blogantologia(s) - XI: Guerra Colonial: Cancioneiro do Niassa (1)

" (...) 1. No final dos anos sessenta, no norte de Moçambique, na região do Niassa, os soldados portuguesas entoavam fados e canções que relatavam as alegrias e as tristezas do seu quotidiano de guerra. O registo era, umas vezes, de bravata e paródia, e outras vezes mais triste e intimista... Era uma forma de exorcizar a angústia das emboscadas e das minas, de lidar com o stresse, de manter viva a ligação com a sua terra natal, de reforçar o seu espírito de corpo como combatentes e até de certo modo humanizar uma guerra que não parecia ter uma solução militar à vista. Nas letras dessas músicas podia-se inclusive descortinar sinais de contestação e até de resistência, sinais esses que minavam o moral das tropas e a vontade de combater.

"O mesmo se passava, de resto, noutras frentes de guerra, como a Guiné, como eu posso testemunhar pela minha própria experiência pessoal: as longas noites da Guiné eram passadas, muitas vezes, entre muitos copos de uísque, cerveja, intermináveis jogos de lerpa e longas sessões de fados, baladas e outras canções (com o Manuel Freire à cabeça, seguido do Zeca Afonso, do Adriano Correia de Oliveira, dos Beatles, do Bob Dylan, do Donovan e de tantos outros...): "Eles não sabem nem sonham/ Que o sonho comanda a vida...", era uma das nossas preferidas, sendo cantada e acompanhada à viola com um misto de saudades da nossa terra e de rebeldia contra o aparelho político-militar.

"Vários poetas e versejadores, de maior ou menor talento, pertencentes aos três ramos das forças armadas, contribuiram anonimamente para aquilo a que depois se veio a chamar o Cancioneiro do Niassa (5). As letras eram acompanhadas por melodias em voga na época, incluindo tangos e fados, tradicionais ou não, ainda hoje facilmente reconhecíveis (por ex., A Casa da Marquinhas, de Alfredo Marceneiro, ou a Júlia Florista, da Amália). O seu interesse não é literário mas sim documental, socioantropológico" (...).

(3) Vd post de 1 de Dezembro de 2005 > Guiné 63/74 - CCCXXVI: Cancioneiro de Mansoa (1): o esplendor de Portugal

" (...) O que o Ribeiro me mandou foi um carderno, de 47 páginas, onde ele conta, em verso, as peripécias da sua atribulada vida militar. Vou chamar a estes cadernos o Cancioneiro de Mansoa, por analogia com o Cancioneiro do Niassa. Está imbuído da ideologia ou (da mística) ranger, não é uma obra colectiva, é escrito por um dos últimos guerreiros do Império e, para mais, ao longo dos anos que se sucederam ao 25 de Abril de 1974 em que o autor também participou... O Cancioneiro do Niassa tem outra origem, outro contexto, outro tom... De qualquer modo, o Magalhães Ribeiro e os seus camaradas de operações especiais não me levarão a mal se eu chamar Cancioneiro de Mansoa ao conjunto destes versos, ditados pela nostalgia do império perdido e pela afirmação do valor e do patriotismo do soldado português" (...).

(4) Vd post de 30 de Dezembro de 2005 > Guiné 63/74 - CDII: O Hino de Gandembel

(5) Vd ainda:

(i) Página do nosso camarada Jorge Santos > A Guerra Colonial > Canções do Niassa


(ii) Página do José Rabaça Gaspar > Cancioneiro do Niassa

"(...) as CANÇÕES que fazem parte da Gravação da Rádio Metangula, da Marinha, em 1969, na voz de João Peneque (Como é evidente, pedimos desculpa das falhas na gravação, que foi recuperada a partir de uma cassete gravada em 1969, pelos bons serviços dos amigos Manuel Aleixo e Manuel Cruz, a quem deixamos os melhores agradecimentos) " (...)

Este camarada fez parte da CART 2326, Os Lobos de Maniamba (Moçambique, 1968/70).

1 comentário:

Quito disse...

Como ex-Furriel Miliciano dos Gatos Pretos - Canjadude, envio-lhe um abraço. Estive lá em 1972 e 1973 (Agosto).
Estava no quartel na noite do ataque dos foguetões. O meu abrigo era junto ao embondeiro perto da casa de banho. O Comandante de Companhia chamava-se Gil de Figueiredo Barros e reside agora em Braga.
Um abraço
Eurico Pereira