15 março 2006

Guiné 63/74 - DCXXIX: Ser cripto no olho do cu de Judas (João Tunes)

Camarada Luís,

Numa tua legenda a uma foto do nosso camarada Afonso M. F. Sousa, com ele confortavelmente instalado e posando para a posteridade como um soba de camuflado à espera de uma cerveja bem gelada, junto ao centro cripto da sua unidade, disseste: "O centro cripto era uma espécie de cofre forte dos nossos aquartelamentos, o santos dos santos, o mais misterioso recôndito da pátria lusa naquele pedaço de terra onde flutuava a bandeira das quinas...". E como é teu costume e abuso, disseste bem.

Confirmo essa aura que circundava a actividade cripto na guerra, num relativismo que ia da treta até à treta e meia. Eu próprio gozei do privilégio dessa casta aristocrática no domínio do acesso ao antro sagrado em que as mensagens a transmitir por rádio eram codificadas para que não fossem conhecidas pela guerrilha.

Como oficial de transmissões, era também o responsável pela actividade de codificação ao nível do batalhão. Pelas regras da segurança militar, dava-se até um dado curioso - os únicos militares com acesso ao centro cripto eram exclusivamente os que nele prestavam serviço, o que excluía qualquer oficial com função de comando, fosse alferes, capitão, major, tenente-coronel ou general comandante-chefe. O que transformava o centro cripto num lugar sagrado. Assim, se o comandante de companhia ou o comandante de batalhão decidissem passar revista a esse local, o regulamento obrigava a que estes oficiais fizessem aviso prévio dessa intenção, com tempo necessário para que todo o material de codificação fosse coberto com cobertores a fim de os sumos oficiais não poderem espreitar e conhecer os códigos em utilização.

Quando havia renovação dos códigos, era o oficial cripto (acumulando com as funções de oficial de transmissões) que fazia a troca (entregando os códigos vencidos e recebendo os novos) dentro de um circuito paralelo e exógeno à cadeia do comando.

Refira-se, ainda, que a acumulação de funções transmissões/cripto se dava exclusivamente no caso do alferes miliciano do batalhão, passando a haver distinção clara de funções relativamente aos furriéis e cabos (que eram só de transmissões ou só cripto).

Outra protecção dada, de resguardo, aos elementos das equipas cripto (normalmente, um furriel e dois cabos) era - julgo que só comparável ao tratamento dado ao capelão e ao cabo sacristão - a sua dispensa de qualquer actividade operacional para prevenir o risco da sua captura pela guerrilha. Ou seja, não se queria que o IN nos decifrasse os códigos das mensagens militares nem os salmos e as penitências com que comunicávamos com a Santíssima Trindade e lhe pedíamos protecção divina.

Por todas estas razões, a equipa cripto (a par do staff religioso) constituía, de facto, uma certa elite nos aquartelamentos, o que, claro, deve ser interpretado à luz da justa e fraca proporção das coisas no universo típico de uma unidade encafuada no meio do mato da Guiné.

A situação referida, o resguardo da fortaleza cripto, deu-me alguns dissabores bem gostosos. O comandante e segundo comandante que me (nos) mandavam no Pelundo (1969/71) não conseguiam engolir a reserva nos seus acessos ao centro cripto. E tentaram, ao princípio, violar as regras, forçando a entrada, sem aviso prévio. Ora, perante essas tentativas de violar as regras militares (claramente estabelecidas e escritas) eram, para mim (melhor para o meu sangue quente de então) uma oportunidade a não perder para exercício de inversão da macacada do cerimonial da hierarquia militarista, metendo um tenente-coronel e mais um major - e que par de jarras! - em sentido e na devida ordem. Não só lhes barrei as tentativas de entradas inopinadas no antro sagrado (sem o necessário aviso prévio para tapar os materiais com os cobertores regulamentares) como lhes comuniquei que a contumácia na prevaricação me levaria a uma participação ao Comando-Chefe por violação das regras de segurança militar por parte do Exmo Comando do Batalhão (e, por regulamento, podia fazê-lo). Cederam eles (serviriam a vingança, a frio, mais tarde...).

O que, por sinal, foi pretexto (a malta queria era pretextos!) para uma rica e bem regada patuscada da malta cripto em comemoração da vã glória de estar para ali encafuada no que - bem dito por ti, camarada Luís - era o santo dos santos daquelas nossas moradias enfiadas lá no olho do cú de judas, se me é prmitida alguma dose de libertinagem na linguagem.

Porque, acho eu e sem desprimor para com opiniões em contrário, se o Judas teve cú, como nós temos, presumindo-se que sim, embora nenhuma autópsia lhe tenha certificado algo mais que a bolsa dos euros traidores, ali na Guiné, na nossa Guiné, estava lá o lugar central do cú de judas - o do seu realíssimo e infecto olho. E ser isto ou ser aquilo, ser miliciano ou chico, ser oficial, sargento, furriel, cabo ou soldado, ser cripto ou não, sacristão ou relapso às santas práticas, no mesmíssimo cú estivemos enfiados, riscando os dias em falta para dali sairmos. E talvez tenha sido isso, afinal graças a um cú e ao cabrão do seu olho, que nos tornámos todos melhores como homens, e camaradas, e amigos. Valha-nos isso.

Um abraço forte para ti e para todos os camaradas e estimados tertulianos.

João Tunes

[Blogador-mor do Água Lisa (6) ]

1 comentário:

Anónimo disse...


Não posso deixar de comentar o meu desagrado por este texto. Porém, como não vejo este espaço próprio para "libertinagens", não posso manifestar adequadamente o péssimo momento que me proporcionou. Afinal, trata-se de uma crítica (ou protesto) que reflete o desconhecimento das regras a que obrigam a delicadeza e periculosidade que rodeia a atividade da criptografia. Se tivermos em conta que se vivia um dia a dia de guerrilha...