16 maio 2006

Guiné 63/74 - DCCLXIV: Fala-se em 11 mil fuzilados (Leopoldo Amado, historiador)

Post nº 764 (DCCLXIV)

Guiné > Região Leste > Bafatá > Soldado ferido em operações > "Ponto de honra no terreno. Não podia ficar para trás nenhum combatente, ferido ou morto", diz o João Varanda o fotógrafo, (ex-combatente da CCAÇ 2636, Có/Pelundo e Teixeira Pinto; Bafatá, Saré Bacar e Pirada, 1969/71) .

Foto: © João Varanda (2005)


Temos o privilégio de poder inserir hoje, no nosso blogue, um texto do Leopoldo Amado, historiador, mestre em Estudos Africanos, doutorando em história contemporânea pela Universidade de Lisboa, especialista da guerra de libertação 'versus' guerra colonial na Guiné, guineense, vivendo actualmente em Portugal, editor do blogue Lamparam II, e de quem já publicámos alguns excelentes e oportunos posts (1).

O Leopoldo teve a gentileza de responder ao meu pedido para "pôr os guineenses a falar" sobre o conturbado e ainda mal conhecido período que foi a partida dos portugueses e a subida ao poder dos guerrilheiros do PAIGC..."Eu bem gostaria de pôr a falar os guineenses... Talvez o nosso amigo Leopoldo, o historiador, o nosso doutor, queira dar uma achega"... Estou-lhe grato pelo seu contributo altamente qualificado sobre esta matéria (LG).


Caros amigos:

No período pós-independência, os fuzilamentos dos antigos colaboradores africanos incidiram sobre os Comandos Africanos, Milícias, agentes das forças especiais, fuzileiros, cipaios, régulos, agentes da PIDE, elementos da Acção Nacional, guias, e até agentes que trabalhavam para a administração colonial.

Só no caso da Guiné, fala-se em cerca de 11.000 o número de elementos fuzilados pelo PAIGC imediatamente após a independência. Certo ou não, a verdade é que houve como que uma espécie de vingança quando os ânimos se serenaram, depois que o PAIGC assumiu a administração política do país.

Foi nesse âmbito que, por exemplo, representantes dos Comandos Africanos chegaram a encetar encontros com elementos do PAIGC nessa fase de transição, no quadro e na sequências das negociações encetadas do lado português por Carlos Fabião, e em que se aquilatou a proposta/possibilidade de os ex-soldados africanos integrarem o Exército do PAIGC, proposta essa, de resto, liminarmente refutada pelo PAIGC.

Porém, na sequência do plano de evacuação do contingente do português na Guiné, aprovado nas negociações de Argel e sequencialmente nas matas de Cantanhez por delegações do PAIGC e de Portugal e perante a recusa liminar por parte do PAIGC de proceder a integração pura e simples desses elementos no seu Exército, a generalidade das ex-soldados africanos do, como que pressentindo o que lhes poderia suceder, declararam que não entregariam as armas, nem mesmo depois da evacuação do último contingente português, como forma de pressionar as autoridades portuguesas, junto de quem, aliás, exigiam uma solução para a sua situação.

Do lado do PAIGC, esta declaração dos ex-soldados africanos, sobretudo dos Comandos Africanos, apresentava-se não somente como um desafio à sua autoridade, mas igualmente como uma ameaça, esta última, de resto, alimentada à montante pelo facto de as tropas africanas do Exército Português e essencialmente os Comandos Africanos serem sobremaneira aguerridos e igualmente pelo facto de terem criado, no decorrer da guerra, imensas dores de cabeça ao Comando Militar do PAIGC.

Pois bem, o processo de descolonização na Guiné-Bissau é normalmente caracterizado por "Descolonização por conta própria”, essencialmente devido a inaudita celeridade que o processo conheceu, mas também devido ao facto de, no decorrer do processo, praticamente o PAIGC não ter abdicado da sua posição militar privilegiada para, num ou noutro sentido, influenciar decisões importantes.

É nesse contexto que enquadra a recusa do PAIGC em proceder a integração dos ex-soldados guineenses do Exército português, mas também a recusa por parte dessa formação política-militar da proposta de Spínola no sentido de o próprio se deslocar à Guiné para presidir a cerimónia onde se reconheceria a independência da Guiné-Bissau através de uma Assembleia Magna, em que igualmente marcariam presença as outras forças políticas guineenses, algumas delas como o MDG (Movimento Democrático da Guiné), fabricadas por Spínola à última da hora, com base nos elementos que com ele colaboram na política da Guiné Melhor e nos diversas acções de acção psicológica que quase feriam de morte o PAIGC.

Efectivamente, as tentativas de Spínola de conferir um estatuto que não a da independência as ex-colónias portuguesas, mas sim de uma ampla autonomia mas no quadro de uma federação ou confederação lusa, conforme preconizava no seu Portugal e o Futuro, originou um ambiente de crispação entre este e o MFA que mais tarde havia de levar ao afastamento do próprio Spínola da presidência portugusa.

Portanto, factores de natureza interna da Guiné, na qual o PAIGC não prescindia de influenciar a agenda e o rumo dos acontecimentos e também as decorrentes da política metropolitana, sobretudo em matéria do estatuto a conferir às colónias, acabariam na Guiné por condicionar e mesmo determinar a “Descolonização por conta própria”. Doravante, a evacuação dos contingentes portugueses conheceu uma acrescida celeridade, antecipando-se mesmo, na maioria das situações, o timing aprovado nas negociações havidas. Aliás, é curioso reparar-se que todo o processo de retracção dos contingentes portugueses, concluiu-se antecipadamente em cerca de quase dois meses relativamente ao plano estabelecido.

Assim, animados pela sensação de abandono, acentuado sobretudo pela rapidez com que se processava a retracção dos contingentes portugueses, os ex-soldados guineenses endureceram as suas posições públicas, procurando de alguma forma organizar-se militarmente, não sabendo ou ignorando o facto de que o PAIGC, aproveitando-se sobretudo da sua privilegiada situação militar no período de transição, havia conseguido introduzir meios bélicos e humanos indispensáveis ao aniquilamento de qualquer tentativa de subversão, mesmo nos centros urbanos, onde aparentemente esses ex-soldados africanos dispunham de maiores vantagens.

À medida que o PAIGC ia assumindo o controle total nas circunscrições e aquartelamentos onde, em cerimónias céleres, arreava-se a bandeira portuguesa enquanto se içava a bandeira do PAIGC e da Guiné-Bissau, os ex-soldados africanos encontravam-se numa situação de completo abandono, inteiramente resignados e entregues a si e sem qualquer capacidade de reacção ou de reorganização em termos militares.

Os mais previdentes ainda tiveram tempo de galgar a fronteira com o Senegal, fazendo posteriormente o percurso terrestre até Portugal, mas a maioria foi alvo fácil da estonteante caça às bruxas, imediatamente posta em prática pelas forças do PAIGC, entretanto mobilizadas com um discurso assente na necessidade de ripostar à tentativa dos ex-soldados africanos de continuarem a lutar contra o Exército do PAIGC. Sucederam-se então autênticas razias pelos bairros de Bissau e pelas tabancas do interior onde os ex-soldados africanos entretanto se refugiaram, e onde eram presos e, em regra, fuzilados.

A mesma sorte tiveram muitos agentes da PIDE e/ou colaboradores da administração portuguesa que, em geral, após um longo período de detenção em Bissau, Mansôa, Cantchungo, Quebo, Bafatá, Jugudul e outras localidades, eram sumariamente julgados e publicamente fuzilados, sem apelo nem agravo, sem direito ao contraditório ou o direito de constituição da defesa.

Ainda no alvor da adolescência, assisti em Cantchungo [antiga Teixeira Pinto ] a um desses fuzilamentos públicos, a 10 de Março de 1976, numa sessão pública em que foram fuzilados três traidores, entre os quais o Régulo Baticã do Chão dos Manjacos e um primo meu que pertenceu aos Comandos Africanos, a quem, de resto, visitava e assistia clandestinamente na prisão, graças a colaboração de um guarda prisional, na altura meu amigo.

Hoje, é todavia possível, à distância dos anos da euforia, fazer-se uma leitura mais serena dos acontecimentos que se seguiram à independência e que conduziram ao fuzilamento de milhares de guineenses, sob a acusação de terem pertencido às forças do Exército português, na qual alegada ou pretensamente cometeram crimes e outros porque alegada ou pretensamente colaboraram a vários níveis com as autoridades colónias como PIDE ou na Acção Nacional ou ainda com a política da Guiné Melhor de Spínola.

Com efeito, podemos até compreender que em certos casos teria havido excesso de zelo, mas excesso esse de que indirectamente a Direcção do PAIGC caucionava, em virtude de um sentimento misto que dele se apoderou e que se desdobrava numa espécie da necessidade de vingança para exorcizar algum mal (sobretudo àquela de que se nutriu relativamente aos Comandos Africanos no decorrer da guerra) e igualmente a necessidade de expurgar definitivamente a ameaça (que já não era real) que os ex-soldados africanos só aparentemente representavam, sobretudo os Comandos Africanos.

Hoje, não obstante a fraca capacidade negocial que lhe era intrínseco, fruto do sentimento do derrotismo que se apossou das estruturas de comando, penso que o Exército português devia e podia, ainda na mesa das negociações, ter encontrado uma solução global de compromisso, assente no respeito dos direitos humanos e na dignidade dos guineenses que combateram no Exército colonial.

Tivesse havido vontade política, creio que o próprio PAIGC estaria interessado numa qualquer solução equilibrada relativamente aos ex-soldados guineenses, uma vez que seriam, inquestionavelmente, uma mais valia para o Exército Nacional da Guiné-Bissau, para além da importante contribuição que a sua equilibrada reintegração na sociedade proporcionariam em termos de uma maior catarse em relação às mazelas da guerra, na senda das sinergias necessárias aos esforços ciclópicos de edificação de um novo Estado.

Do lado do PAIGC, pese embora o facto de em certa medida ser compreensível a forma como o PAIGC actuou relativamente aos ex-soldados africanos, é preciso convir que teria faltado a Direcção do PAIGC a serenidade e o sangue frio necessários para, pacificamente, lá onde era possível, integrar social e militarmente os ex-soldados guineenses, sem o prejuízo de, pela via judicial, chamar à razão aqueles sobre os quais pendiam gravíssimas acusações.

Mas em situação de guerra, ou no seu rescaldo, de qualquer guerra, como foi o contexto em que milhares de guineenses foram fuzilados, é sempre possível descortinar-se, a posteriori, imensas situações absurdas. Desde logo, a razão porque se fez a guerra e porque, na sua decorrência, fuzilados ou não, morreram nela milhares de inocentes, de um e outro lado barricada.

Pior ainda: se nos abstrairmos da noção ideológica que encerra a noção politicamente correcta do direito a autodeterminação e independência a que os povos têm direito e a imoralidade que representava a colonização, do lado guineense, tudo o resto tende cumulativamente a constituir-se num grande absurdo que certamente a História se encarregará de elucidar.

Hoje, para além da independência conquistada, infelizmente o povo guineense ainda não se encontra propriamente em posição de, plenamente, poder com propriedade dizer que valeu à pena a independência por que lutaram e morreram muitos guineenses nacionalistas. Do lado português, não é igualmente por acaso que os arcaicos mitos imperiais – em nome dos quais milhares de vidas foram inocentemente ceifadas –, tendem, até hoje, não obstante os novos paradigmas, a sobressaltar a consciência colectiva da sociedade portuguesa e, particularmente, daqueles que nele directamente participaram.


Leopoldo Amado

Abril de 2006

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Notas de L.G.

(1)Vd. posts de:

25 de Setembro de 2005 > Guiné 63/74 - CLXXIX: Leopoldo Amado, guinense, historiador, novo membro da nossa tertúlia

(...)"Para mim, e para a Guiné-Bissau, é sumamente importante a compreensão dos contornos desta guerra, até para que a imprescindível catarse tenha lugar e possa curar as feridas que abriu (e são elas tantas!), pelo que proponho que me aceitem no vosso grupo de tertúlia, caso acharem que a minha presença não iria de alguma forma perturbar, na medida em que [sou] tão somente um estudioso do assunto e bem tão pouco participei na guerra, senão ouvindo os tiros de um o outro lado, que me deixavam borrado de medo (ainda era uma criança)" (...).

22 de Fevereiro de 2006 > Guiné 63/74 - DLXXV: Simbologia de Pindjiguiti na óptica libertária da Guiné-Bissau (Leopoldo Amado) - I Parte

(...) "Inicimos hoje a publicação de um importante texto, inédito, do historiador guineense, Leopoldo Amado, doutorando em história contempânea pela Universidade Clássica de Lisboa e membro da nossa tertúlia, sobre o significado dos acontecimentos de 3 de Agosto de 1959, na perspectiva da luta, mais recente, de libertação nacional, liderada pelo PAIGC, e da tradição, mais antiga, de resistência dos guinéus à colonização europeia (incluindo a portuguesa).

"Devido à sua extensão, o texto teve de ser repartido em várias partes. Apesar de assoberbado com os preparativos para a defesa da sua tese de doutoramento, o nosso amigo Leopoldo quis ter connosco uma especial atenção, o que muito nos honra.

"Não temos dúvida, que este seu paper, alicerçado em minuciosa investigação empírica, baseada em documentação de arquivo (incluindo os ficheiros da PIDE/DGS) e em entrevistas a actores-chaves, vem fazer luz sobre uma parte da nossa história comum recente assim muito mal conhecida, contada, analisada e explicada. Obrigado, Leopoldo! (LG)" (...).

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