21 dezembro 2003

Socio(b)logia - III: O que fazer desta satisfação ?

Há uma base (a trigésima...) da Lei de Bases da Saúde (Lei n.º 48/90, de 24 de Agosto de 1990) que diz que o funcionamento do Serviço Nacional de Saúde (abreviadamente, SNS) deverá ser avaliado através dos seguintes indicadores (entre outros): (i) a qualidade dos serviços, (ii) o seu grau de aceitação pela população utente, (iii) o nível de satisfação dos profissionais e (iv) a razoabilidade da utilização dos recursos em termos de custos e benefícios.



Eu acho que o disposto neste diploma legal (ou pelo menos na tal Base XXX) tem sido letra morta, pelo menos no que diz respeito à avaliação da satisfação profissional dos profissionais de saúde que trabalham no SNS. Nunca ouvi, a nenhum Ministro da Saúde, desde o tempo de Leonor Beleza até agora, dizer publicamente que a satisfação profissional dos médicos, enfermeiros e demais profissionais de saúde é um dos indicadores de avaliação do SNS e que, como tal, faz parte do painel de bordo instalado no edifício do n.º 9 da Av. João Crisóstomo, em Lisboa (Para quem não sabe, é a sede do Ministério da Saúde).



Todo o discurso da saúde tem sido centrado no utente, como mandam as boas regras do marketing. E ainda bem: é o utente que é (ou deveria ser) o centro do sistema. Mas não se pode escamotear ou ignorar o papel dos prestadores dos cuidados de saúde. A satisfação profissional é (i) um indicador do clima organizacional, mas também (ii) um elemento determinante da avaliação da qualidade, a par da satisfação dos clientes.



Há muito, talvez desde a publicação, em 1999, do MoniQuor – Monitorização da Qualidade Organizacional dos Centros de Saúde, que eu não tenho ouvido falar deste tópico. No documento Contributos para um Plano Nacional de Saúde: Orientações Estratégicas (Direcção Geral de Saúde, 2003), há uma referência a projectos em curso no domínio da avaliação da satisfação profissional dos profissionais de saúde, a par da satisfação dos utentes.



Diga-se, de passagem, que são projectos que vêm na sequência do louvável esforço do Instituto da Qualidade em Saúde (IQS) para desenvolver a cultura da qualidade organizacional no sistema de saúde português. Cultura que falta (ou que tarda a chegar ) aos nossos hospitais e centros de saúde.



Por outro lado, não há suficientes indícios de que a realização destes estudos, bem como a divulgação e a discussão das suas conclusões, estejam a merecer a devida atenção da tutela do SNS bem como das administrações regionais de saúde e das direcções dos hospitais. E até dos próprios profissionais de saúde, a começar pelos médicos e as suas organizações.



Eu receio que possamos vir a estar, no futuro, perante uma utilização abusiva dos resultados de estudos de avaliação da satisfação, seja dos utentes seja dos profissionais do SNS, para legitimar ou contestar orientações estratégicas, medidas políticas, alterações legislativas ou intervenções organizacionais. É possível que em breve possamos cair na tentação de fazer da avaliação periódica da satisfação dos clientes do SNS, tanto externos como internos, o mesmo que os jornais fazem das sondagens e estudos de opinião dos eleitores.



Dizem os políticos que não se pode governar com sondagens. E, de facto, mal andaria a nossa democracia se os governos decidissem apenas em função da opinião (volátil ou conjuntural) de amostras eleitorais.



Há questões teóricas e metodológicas no estudo de satisfação que eu nunca vi minimamente discutidas entre nós, no âmbito da administração de serviços de saúde, a não ser no contexto muito restrito de trabalhos de índole académica. Por exemplo, questões como a validade e a fiabilidade das escalas de atitudes e dos questionários de opinião que nós usamos.



Independentemente de tudo isso, resta a questão (primordial) de se saber o que vamos fazer com a maior ou menor satisfação dos nossos utentes e dos nossos profissionais de saúde.



No final da década de 1990, havia reconhecidamente uma dimensão em que, a par das questões remuneratórias, os profissionais de saúde (v.g., médicos de família, enfermeiros, administrativos e outro pessoal de apoio nos centros de saúde) apresentavam elevados níveis de não-satisfação. Tratava-se da Segurança, Higiene e Saúde no Trabalho (abreviadamente, SH&ST). É legítimo perguntarmo-nos o que é que o SNS, enquanto empregador, fez nestes três primeiros anos do Século XXI para prevenir os riscos profissionais e promover a saúde dos seus trabalhadores...



Eu acho que fez pouco, muito pouco, quase nada ou nada... Falo das suas obrigações legais. E a prova disso é que há um estranho silêncio nas páginas, na Internet, do Ministério da Saúde e da Direcção Geral de Saúde a respeito desta questão...



Um silêncio não só estranho como incómodo: é que os profissionais de saúde, além de (i) não serem de ferro (é bom lembrá-lo!), (ii) também são gente. E depois acontece ainda que (iii) os trabalhadores do SNS deviam a ser os primeiros de todos a darem o exemplo, o de trabalhadores activos, produtivos, satisfeitos e saudáveis.



Na década de 1990, o SNS inglês adoptou, de modo coerente e integrado, (i) uma estratégia nacional de saúde (Our Healthier Nation, 1992 e 1999), (ii) um plano de desenvolvimento estratégico dos seus recursos humanos (Working Together: Securing a Quality Workforce for the NHS, 1998) e (iii) uma política de protecção e promoção da saúde dos seus trabalhadores (Framework for Action: Health at Work in the NHS, 1999).



O ministro da saúde inglês, Alan Milburn, escreveu na altura, no prefácio ao documento Working together (1998), as seguintes palavras: "First class health care delivered by first class staff also requires first class employers".



Como nós gostaríamos de ler, em documentos de estratégia semelhantes, escritos em português, uma frase semelhante, que fosse ao mesmos tempo um desafio e uma oportunidade para administradores, trabalhadores e utentes do SNS: “Meus senhores, cuidados de saúde de primeira classe, prestados por profissionais de primeira classe, também exigem empregadores e gestores de primeira classe”.



A gente já se contava com uma classificação deste nível, a de primeira classe. Que a classificação “de luxo”, essa, bem podia exportar-se para um qualquer país das arábias.

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