16 julho 2004

Em Lisboa nem sangria má nem purga boa - V: Porque (não) reclamam os utentes dos serviços de saúde ?

A Andreia é uma ciberamiga que eu não conheço pessoalmente mas com quem me correspondo por e-mail, há mais de cinco anos! Jornalista, tem andado por vários sítios, o último dos quais no "Tempo Médico".

Há dias pediu-me, mesmo em cima da hora, para lhe responder a umas tantas perguntas, suscitadas pela leitura do relatório sobre as reclamações que chegaram à Direcção Geral de Saúde, relativamente ao ano de 2003 e aos utentes dos serviços de saúde, quer públicos quer privados (n=114). O relatório, de 13 páginas, está disponível em formato pdf no sítio da Direcção Geral de Saúde.
 
Eis as perguntas (P) da Andreia a que eu respondi (R), de improviso, em cima do joelho, sem ter lido o citado documento:

P1 - Quais serão os motivos que poderão justificar o facto de serem os médicos os mais visados pelas queixas dos utentes dos hospitais do SNS (48%) e centros de saúde (34%), quer na vertente de prestação de cuidados, quer na vertente da sua correcção e humanidade?
 
R1 - Os médicos são  mais visados pelas queixas dos utentes dos hospitais do SNS (48%) e centros de saúde (34%) do que os outros profissionais (enfermeiros, pessoal de acção médica, administrativos, técnicos de diagnóstico e terapêutica)…
 
Haverá diversas explicações: (i) maior número de interacções dos utentes/doentes com o pessoal médico; (ii) maior impacto da relação terapêutica na satisfação do utente/doente; (iii) a relação terapêutica é uma relação de poder, assimétrica, stressante, propensa ao conflito; (iv) o poder técnico-científico que é reconhecido ao médico tem uma dimensão oculta (o poder mágico-religioso de toda a relação terapêutica: a palavra  terapeuta vem do grego (terapeutes), quer dizer: medium, aquele que faz a ligação a um deus, aquele que cura através de ….; (v) last but not the least, os médicos, nas faculdades de medicina, são treinados para ver doenças, não para lidar com doentes, com pessoas doentes…

 
P2 - Nos Centros de Saúde, as matérias relacionadas com a sua organização e funcionamento originam a maioria das reclamações dos seus utentes (47%). O que é que o poderá motivar e o que poderá ser feito para melhorar a situação?

R2 - Os problemas de organização e funcionamento dos centros de saúde  estão na origem da maioria das reclamações dos seus utentes (47%)… São sobretudo os problemas de marcação de consulta, de gestão da lista do médico de família, de falta de médicos, de excesso de consultas por médico, de horários, de falta de condições de acolhimento dos utentes (sala de espera)…

O primeiro contacto com o centro de saúde, o rosto do centro de saúde, é um administrativo, sem formação específica, muitas vezes com baixa escolaridade, e que nalguns casos vem da escala mais baixa do funcionalismo público: o pessoal auxiliar e operário… A solução do problema passa também pela melhoria das competências em gestão dos médicos, enfermeiros e administrativos que dirigem (ou dirigiam)  os centros de saúde…

A actual reforma da rede dos cuidados de saúde primária (Decreto Lei nº 60/200, de 1 de Abril) pretende atacar este problema, mas isso não se resolve de um pé para a mão pondo os “privados” a governar o barco… Por outro lado, a clientela dos nossos centros de saúde tende, cada vez mais, a ser a população com menores recursos económicos e culturais (idosos, pobres, imigrantes…).

P3 - A DGS refere no relatório que as reclamações ainda não são usadas pelos utentes como oportunidades de melhoramento, mas para fazerem acusações. Como interpreta esta afirmação?

R3 - Na realidade, o utente dos serviços de saúde tem um papel passivo, e não proactivo: foi sempre visto como um consumidor, um doente, um “paciente” (sic), e não como um verdadeiro cliente com capacidade de influenciar a oferta de serviços… É um problema de empowerment, de competição, de mercado, de equidade… É também um problema sociocultural mais complexo…

P4 - Cerca de metade (49%) das reclamações são de utentes de instituições da Sub-Região de Saúde de Lisboa, seguindo-se as da Sub-Região de Saúde do Porto (13%) e de Setúbal (11%). A “interioridade” revela-se também neste tipo de actuação (ou não actuação) dos utentes?

R4 - De facto,a "interioridade” também se revela aqui… O eixo Setúbal-Braga, desenvolvido, litoral, urbano, jovem, com maior grau de literacia, também aqui faz sentir o seu peso (demográfico, económico, social…) sobre a periferia, pobre, rural, envelhecida, com baixa literacia…

Por outro lado, há uma maior relação de proximidade dos centros de saúde do interior (por ex., Baixo Alentejo) com a população que servem… O modelo de prestação de cuidados (por ex., trabalho em equipa, visitas domiciliárias, existência de extensões) também pode ser uma variável relevante para explicar estas diferenças comportamentais…

P5 - A maior parte das reclamações dizem respeito ao sector público. Será que as pessoas não se queixam do sector privado por falta de motivos de queixa ou porque não sabem que a DGS poderá intervir a esse nível?

R5 - Eu acho que os portugueses, embora não sendo parvos, são masoquistas… Por um lado, pensam que o dinheiro compra tudo (competência, qualidade, simpatia…), o que não é verdade… Se assim fosse, as nossas grandes empresas prestadores de serviços tratariam muito melhor os seus clientes… Essa história do “em cima o cliente, em baixo o presidente”, é uma história de conto de fadas que a gente costuma contar nos cursos de formação, mas que hoje em dia só produz sorrisos amarelos…

De resto, há cada vez menos respeito pelo cliente (seja externo, seja interno): parece que o único stakeholder que interessa satisfazer é o shareholder, esse peixe voraz e anónimo que especula na bolsa de valores…

Há ainda que referir que os consumidores de saúde (ou melhor do health care industry, que é a indústria da doença, e não da saúde!) não estão organizados, nem têm os mesmos meios de defesa e de lobbying como os outros… Abro uma excepção, para as relativamente poderosas associações de doentes crónicos…

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