20 dezembro 2004

BlogAngola - III: A cooperação no domínio da formação em saúde pública

1. “Portugal e os portugueses podem dar à Angola e aos angolanos aquilo em que são especialistas: o saber-ser, o saber-estar e o saber-fazer em saúde pública”, dizia-me há um ano, em Luanda, José Vieira Dias Van-Dúnem, vice-Ministro da Saúde do Governo de Unidade e Reconciliação Nacional da República de Angola e membro do Comité Central do MPLA. Cito de cor mas julgo não estar a atraiçoar o pensamento do autor.



Médico licenciado, em 1988, pela Faculdade de Medicina da Universidade Agostinho Neto, de Luanda (FML/UAN), o Dr. José Vieira Dias Van-Dúnem frequentou no ano lectivo de 1994/95 o Curso de Especialização em Saúde Pública da Escola Nacional de Saúde, Universidade Nova de Lisboa (ENSP/UNL), como bolseiro da OMS.



Qual é o sentido exacto das palavras daquele dirigente político angolano e antigo aluno da ENSP/UNL ? Em que circunstâncias foram ditas ? Que recado subentendiam ?



O que o meu interlocutor pretendia dizer-me ou transmitir-me, a mim, à instituição e até ao país que eu estava ali, de certo modo, a representar, era que a cooperação (i) não se resume aos grandes projectos que envolvem muitos milhões de dólares, transferência de alta tecnologia, grande volumes de trocas comerciais, mediáticas declarações políticas e, por vezes até, tráfico de interesses ligados a poderosos lóbis, internos e/ou externos; pelo contrário, que a cooperação também pode (e deve) ser vista, antes de mais, (ii) como uma relação recíproca, duplamente ganhadora, uma relação de amizade entre dois povos que têm valores, interesses e afinidades em comum (a história, a língua, a cultura, o imaginário, a economia…). E justamente em áreas que são vitais para o desenvolvimento do capital humano e que fazem mais apelo às soft sciences do que às hard sciences.



Estava, além disso, a defender uma concepção integrada e sustentada da formação e da cooperação no domínio da formação. Por fim, estava implicitamente a lembrar-me a origem etimológica da palavra cooperar, que significa trabalhar juntamente com outros para um mesmo fim, do latim cu(m) + operari.



A cooperação no domínio da educação, da formação e até da investigação em saúde pública é um campo onde se pode (e deve) estabelecer relações igualitárias, senão mesmo fraternas, entre instituições, povos e países. É algo que obriga à hospitalidade e à partilha, tal como uma refeição tomada à mesma mesa entre amigos. É um terreno onde todos aprendem a aprender e aprendem uns com os outros, o que os coloca num mesmo nível. Qualquer atitude de imperialismo, cultural e científico, ou até de simples paternalismo, é hoje inaceitável, de parte a parte, neste como noutros campos da cooperação bilateral.



2. Tratou-se, além disso, de uma conversa informal, num jantar que nos foi oferecido por ocasião da inauguração do 1º Curso de Especialização em Gestão em Saúde (Opção Administração Hospitalar), curso esse que resultou da solicitação, à FML/UAN, parte do Ministério da Saúde de Angola (MINSA), e que contou com o entusiástico apoio de duas instituições portuguesas: o apoio científico e pedagógico da ENSP/UNL e o apoio financeiro da Fundação Calouste Gulbenkian (FCG).



A FML/UAN ainda não tinha então a experiência e os recursos suficientes para montar um curso de especialização ou um mestrado nesta área (tem noutros, por exemplo o mestrado em educação médica que está a decorrer em Luanda). Decidiu por isso

recorrer à ENSP/UNL mas não quis um curso de "chaves na mão", participou desde o princípio na concepção, desenvolvimento, aplicação e avaliação do produto.



Usando a metáfora do conhecido provérbio chinês, os nossos amigos e parceiros angolanos não querem apenas o peixe, mas também o anzol e a cana de pesca para poderem passar a pescar. Como está na moda dizer-se, a isto chama-se empowerment.



O supracitado curso teve início em Setembro de 2003 e terminou , na sua parte lectiva, em Dezembro de 2004. Até meados de Março de 2005, os alunos deverão entregar uma monografia final de 40 páginas (cerca de 50 mil caracteres), incidindo sobre um tema concreto, actual e relevante da administração hospitalar em Angola.



Os destinatários deste primeiro curso, em número de 33, são profissionais de saúde (cerca de 80% são médicos) que exercem ou podem vir a exercer funções ou cargos de gestão (director geral e director administrativo) e direcção técnica (director clínico) no subsistema hospitalar angolano, de Cabinda ao Cunene.



O Curso teve a duração de um ano (2003/2004) e 630 horas presenciais, repartidas por três Blocos separados no tempo (Setembro a Novembro de 2003, Maio a Julho de 2004; Setembro a Dezembro de 2004).



Cada módulo, semanal, foi leccionado por 2 formadores ou prelectores portugueses (em geral, docentes da ENSP/UNL ou formadores de outras instituições ligadas ao ensino da gestão em saúde). Estes formadores foram coadjuvados, em cada módulo, por 1 monitor local recrutado pela FML/UAN, com o propósito de (i) contextualizar as diferentes áreas temáticas no quadro político, jurídico, cultural, sócio-económico, demográfico e sanitário de Angola, e ainda de (ii) promover o seu próprio treino e formação como potencial docente angolano de futuras edições deste curso de especialização.



No Curso estiveram incluídos dois Estágios Hospitalares (um no Bloco II e outro no Bloco III) para constatação in loco da realidade de diferentes hospitais de referência de Angola, apresentada e discutida sob a forma de um relatório crítico. Nestes estágios colaboraram ainda tutores locais para efeitos de acompanhamento e orientação dos formandos.



O sucesso deste curso deve-se a muitas dezenas de pessoas competentes e e empenhadas. Gostaria de citar aqui, pela parte portuguesa, o Prof. Dr. António Correia de Campos; e pela parte angolana, o Prof. Dr. Mário Fresta.



Embora não querendo incorrer no risco do elogio em boca própria, não posso deixar de apontar este exemplo como um caso de sucesso que serviu três propósitos: (i) formar gestores de saúde angolanos ou melhorar os seus conhecimentos e competências (técnicas, sociais e humanas); (ii) capacitar uma equipa de docentes angolanos na área da administração de serviços de saúde; e, por fim, (iii) garantir o reforço da capacidade educativa e formativa do MINSA e da FML/UAN e a sustentabilidade deste projecto de cooperação, criando ao mesmo tempo condições para instalação da futura e tão desejada Escola Nacional de Saúde Pública de Angola.



De facto, o desafio agora é “consolidar a capacidade formativa”, sendo desejável para 2005 a realização de um curso de formação pedagógica em Lisboa, que reunisse docentes angolanos e portugueses com vista à preparação do próximo 2º Curso de Especialziação em Gestão em Saúde, a ministrar em Luanda com recursos locais.



Mas a cooperação da ENSP com o MINSA e a FML/UAN não se circunscreve apenas a este curso. A ENSP está também a apoiar o curso pós-graduado em saúde pública e, portanto, a formação dos futuros médicos de saúde pública de Angola em duas áreas disciplinares específicas onde os nossos parceiros angolanos pediram apoio: o ensino da epidemiologia e da administração de saúde. Além disso, tem recebido de braços abertos os profissionais de saúde, oriundos daquele país, que se inscrevem no seus cursos (mestrado de saúde pública e cursos de especialização de administração hospitalar, saúde pública e medicina do trabalho). Mais de metade dos cerca de 30 alunos oriundos de Macau e dos PALOP que frequentaram, nos últimos oito anos, os referidos cursos eram oriundos de Angola.



Todos fazemos votos para que a cooperação com Angola (e os demais países da CPLP – Comunidade dos Países de Língua Portuguesa) se reforce no próximo ano de 2005, muito em particular no domínio da educação, formação e investigação em saúde pública.



(Editorial, Revista Portuguesa de Saúde Pública, 2/2004)



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