23 abril 2004

Guiné 69/71 – I: Saudosa(s) madrinha(s) de guerra

Trinta e cinco anos depois.
No 25 de Abril de 2004 presto a minha homenagem às mulheres portuguesas.
Que se vestiam de luto enquanto os maridos ou noivos andavam no ultramar.
Às que rastejavam no chão de Fátima, implorando à Virgem o regresso dos seus filhos, sãos e salvos.
Às que continuavam, silenciosas e inquietas, ao lado dos homens nos campos, nas fábricas e nos escritórios.
Às que ficavam em casa, rezando o terço à noite.
Às que aguardavam com angústia a hora matinal do correio.
Às que, poucas, subscreviam abaixo-assinados contra o regime e contra a guerra.
Às que, poucas, liam e divulgavam folhetos clandestinos ou sintonizavam altas horas da madrugada as vozes que vinham de longe e que falavam de resistência em tempo de solidão.
Às que, muitas, carinhosamente tiravam do fumeiro (e da barriga) as chouriças e os salpicões que iriam levar até junto dos seus filhos, no outro lado do mundo, um pouco do amor de mãe, das saudades da terra, dos sabores da comida e da alegria da festa.
E sobretudo às, muitas, e em geral adolescentes e jovens solteiras, que se correspondiam com os soldados mobilizados para a guerra colonial, na qualidade de madrinhas de guerra.

A maioria dos soldados correspondia-se, em média, com uma meia dúzia de madrinhas, para além dos seus familiares e amigos. Em treze anos de guerra, cerca de um milhão de soldados terá escrito mais de 500 milhões de cartas e aerogramas. E recebido outros tantos. Como este que aqui se reproduz.
______________

Guiné, 24 de Dezembro de 1969

Exma menina e saudosa madrinha:

Em primeiro de tudo, a sua saúde que eu por cá de momento fico bem, graças a Deus.

Estava um dia em que meditava e lamentava a triste sorte que Deus me deu até que toquei na necessidade de arranjar uma menina que fosse competente e digna de desempenhar tão honroso e delicado cargo de madrinha de guerra. Peço-lhe desculpa pelo atrevimento que tive em lhe dedicar estas simples letras. Mas valeu a pena e é com muita alegria que recebo o seu aero (1).

Vejo que também está triste por mor (2) da mobilização do seu mano mais novo para o Ultramar. Não sei como consolá-la, mas olhe: não desanime, tenha coragem e fé em Deus. Eu sei que custa muito, mas é o destino e, se é que ele existe, a ele ninguém foge. Nós, homens, temos esta difícil e nobre missão a cumprir.

Nós, militares, que suportamos o flagelo desta estadia aqui no Ultramar, não temos outro auxílio, quer material quer espiritual, que não seja o que nos dão os nossos amigos e entes queridos. E sobretudo as nossas saudosas madrinhas de guerra.

Sendo assim para nós o correio é a coisa mais sagrada que há no mundo. Porque nos traz notícias da nossa querida terra e nos faz esquecer, ainda que por pouco tempo, a situação de guerra em que vivemos e os dias que custam tanto a passar.

As notícias aqui são sempre tristes, nestas terras de Cristo, habitadas por povos conhecidos e desconhecidos. Não lhe posso adiantar pormenores, mas como deve imaginar uma pessoa anda triste e desanimanada sempre que há uma baixa de um camarada.

Lá na metrópole há gente que pensa que isto é bonito. Que a África é bonita. Eu digo-lhe que isto é bonito mas é para os bichos. São matas e bolanhas (3) que metem medo, cobertas de capim alto, e onde se escondem esses turras (4) que nos querem acabar com a vida. E mais triste ainda quando se aproxima o dia e a hora em que era pressuposto estarmos todos em família, juntos à mesa na noite da Consoada. Vai ser a primeira noite de Natal que aqui passo. Com a canhota (5) numa mão e uma garrafa de Vat 69 (6) na outra.

São duas horas da noite e vou botar este aero na caixa do correio. Daqui a um pouco saio em missão mais os meus camaradas. Reze por nós todos. Espero voltar são e salvo para poder ler, com alegria, as próximas notícias suas. Queira receber, Exma. Menina e saudosa madrinha, os meus mais respeitosos cumprimentos. Desejo-lhe um Santo e Feliz Natal.

O soldado-atirador da Companhia de Caçadores (...)

_________

Notas (L.G.):

(1) Aerograma. Também conhecido por corta-capim (o correio era, muitas vezes distribuído em cima de uma viatura, e o aerograma lançado por cima das cabeças dos soldados, à maneira de um boomerang). Os aerogramas foram uma criação do Movimento Nacional Feminino, dirigida pela célebre Cecília Supico Pinto desde 1961, e o seu transporte era assegurado pela TAP ("uma oferta da TAP aos soldados de Portugal"). Os aerogramas também foram usados na guerra da propaganda do regime, ostentando carimbos de correio com dizeres como "Povo unido, paz e progresso", "Povo português, povo africano", "Os inimigos da Pátria renunciarão" ou "Muitas raças, uma Nação, Portugal" (vd. Graça, L. - Memória da guerra colonial: querida madrinha. O Jornal. 15 de Maio de 1981).

(2) Por mor de =por causa de (expressão usada no norte).

(3) Terras alagadiças da Guiné onde tradicionalmente se cultivava o arroz (... e se pescava). Durante a guerra colonial, foram praticamente abandonadas como terras de cultivo, devido à deslocação de muitas das populações ribeirinhas e à escalada das operações militares. A Guiné, que chegou a exportar arroz, passou a importá-lo.

(4) Corruptela de terroristas. Termo depreciativo que era usado para referir os combatentes do PAIGC (Partido Africano para a Independência da Guiné e Cabo Verde). Os soldados portugueses eram, por sua vez, conhecidos como tugas (diminuitivo de Portugal, português ou portuga).

(5) Espingarda automática G-3, de calibre 7.62, de origem alemã, que passou a equipar as forças armadas portuguesas no Ultramar. Em 1961 o exército português ainda estava equipado com a velha Mauser (!).

(6) Marca de uísque escocês, muito popular na época entre os militares (Havia uma generosa distribuição de bebidas alcoólicas nas frentes de guerra, com destaque para o uísque, "from Scotland for the exclusive use of the Portuguese Armed Forces"). Na época o salário de um soldado-atirador (cerca de 1500 a 1800 escudos, parte dos quais depositado na metrópole) dava para comprar mais de uma garrafa de uísque (novo) no serviço de aprivisionamento militar (cerca de 40 pesos ou escudos por unidade). No entanto, a bebida mais popular entre os soldados era cerveja. Uma garrafa de cerveja de 0,6 litros chamava-se bazuca.

Guiné 69/71 – I: Saudosa(s) madrinha(s) de guerra

Trinta e cinco anos depois.
No 25 de Abril de 2004 presto a minha homenagem às mulheres portuguesas.
Que se vestiam de luto enquanto os maridos ou noivos andavam no ultramar.
Às que rastejavam no chão de Fátima, implorando à Virgem o regresso dos seus filhos, sãos e salvos.
Às que continuavam, silenciosas e inquietas, ao lado dos homens nos campos, nas fábricas e nos escritórios.
Às que ficavam em casa, rezando o terço à noite.
Às que aguardavam com angústia a hora matinal do correio.
Às que, poucas, subscreviam abaixo-assinados contra o regime e contra a guerra.
Às que, poucas, liam e divulgavam folhetos clandestinos ou sintonizavam altas horas da madrugada as vozes que vinham de longe e que falavam de resistência em tempo de solidão.
Às que, muitas, carinhosamente tiravam do fumeiro (e da barriga) as chouriças e os salpicões que iriam levar até junto dos seus filhos, no outro lado do mundo, um pouco do amor de mãe, das saudades da terra, dos sabores da comida e da alegria da festa.
E sobretudo às, muitas, e em geral adolescentes e jovens solteiras, que se correspondiam com os soldados mobilizados para a guerra colonial, na qualidade de madrinhas de guerra.

A maioria dos soldados correspondia-se, em média, com uma meia dúzia de madrinhas, para além dos seus familiares e amigos. Em treze anos de guerra, cerca de um milhão de soldados terá escrito mais de 500 milhões de cartas e aerogramas. E recebido outros tantos. Como este que aqui se reproduz.
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Guiné, 24 de Dezembro de 1969

Exma menina e saudosa madrinha:

Em primeiro de tudo, a sua saúde que eu por cá de momento fico bem, graças a Deus.

Estava um dia em que meditava e lamentava a triste sorte que Deus me deu até que toquei na necessidade de arranjar uma menina que fosse competente e digna de desempenhar tão honroso e delicado cargo de madrinha de guerra. Peço-lhe desculpa pelo atrevimento que tive em lhe dedicar estas simples letras. Mas valeu a pena e é com muita alegria que recebo o seu aero (1).

Vejo que também está triste por mor (2) da mobilização do seu mano mais novo para o Ultramar. Não sei como consolá-la, mas olhe: não desanime, tenha coragem e fé em Deus. Eu sei que custa muito, mas é o destino e, se é que ele existe, a ele ninguém foge. Nós, homens, temos esta difícil e nobre missão a cumprir.

Nós, militares, que suportamos o flagelo desta estadia aqui no Ultramar, não temos outro auxílio, quer material quer espiritual, que não seja o que nos dão os nossos amigos e entes queridos. E sobretudo as nossas saudosas madrinhas de guerra.

Sendo assim para nós o correio é a coisa mais sagrada que há no mundo. Porque nos traz notícias da nossa querida terra e nos faz esquecer, ainda que por pouco tempo, a situação de guerra em que vivemos e os dias que custam tanto a passar.

As notícias aqui são sempre tristes, nestas terras de Cristo, habitadas por povos conhecidos e desconhecidos. Não lhe posso adiantar pormenores, mas como deve imaginar uma pessoa anda triste e desanimanada sempre que há uma baixa de um camarada.

Lá na metrópole há gente que pensa que isto é bonito. Que a África é bonita. Eu digo-lhe que isto é bonito mas é para os bichos. São matas e bolanhas (3) que metem medo, cobertas de capim alto, e onde se escondem esses turras (4) que nos querem acabar com a vida. E mais triste ainda quando se aproxima o dia e a hora em que era pressuposto estarmos todos em família, juntos à mesa na noite da Consoada. Vai ser a primeira noite de Natal que aqui passo. Com a canhota (5) numa mão e uma garrafa de Vat 69 (6) na outra.

São duas horas da noite e vou botar este aero na caixa do correio. Daqui a um pouco saio em missão mais os meus camaradas. Reze por nós todos. Espero voltar são e salvo para poder ler, com alegria, as próximas notícias suas. Queira receber, Exma. Menina e saudosa madrinha, os meus mais respeitosos cumprimentos. Desejo-lhe um Santo e Feliz Natal.

O soldado-atirador da Companhia de Caçadores (...)

_________

Notas (L.G.):

(1) Aerograma. Também conhecido por corta-capim (o correio era, muitas vezes distribuído em cima de uma viatura, e o aerograma lançado por cima das cabeças dos soldados, à maneira de um boomerang). Os aerogramas foram uma criação do Movimento Nacional Feminino, dirigida pela célebre Cecília Supico Pinto desde 1961, e o seu transporte era assegurado pela TAP ("uma oferta da TAP aos soldados de Portugal"). Os aerogramas também foram usados na guerra da propaganda do regime, ostentando carimbos de correio com dizeres como "Povo unido, paz e progresso", "Povo português, povo africano", "Os inimigos da Pátria renunciarão" ou "Muitas raças, uma Nação, Portugal" (vd. Graça, L. - Memória da guerra colonial: querida madrinha. O Jornal. 15 de Maio de 1981).

(2) Por mor de =por causa de (expressão usada no norte).

(3) Terras alagadiças da Guiné onde tradicionalmente se cultivava o arroz (... e se pescava). Durante a guerra colonial, foram praticamente abandonadas como terras de cultivo, devido à deslocação de muitas das populações ribeirinhas e à escalada das operações militares. A Guiné, que chegou a exportar arroz, passou a importá-lo.

(4) Corruptela de terroristas. Termo depreciativo que era usado para referir os combatentes do PAIGC (Partido Africano para a Independência da Guiné e Cabo Verde). Os soldados portugueses eram, por sua vez, conhecidos como tugas (diminuitivo de Portugal, português ou portuga).

(5) Espingarda automática G-3, de calibre 7.62, de origem alemã, que passou a equipar as forças armadas portuguesas no Ultramar. Em 1961 o exército português ainda estava equipado com a velha Mauser (!).

(6) Marca de uísque escocês, muito popular na época entre os militares (Havia uma generosa distribuição de bebidas alcoólicas nas frentes de guerra, com destaque para o uísque, "from Scotland for the exclusive use of the Portuguese Armed Forces"). Na época o salário de um soldado-atirador (cerca de 1500 a 1800 escudos, parte dos quais depositado na metrópole) dava para comprar mais de uma garrafa de uísque (novo) no serviço de aprivisionamento militar (cerca de 40 pesos ou escudos por unidade). No entanto, a bebida mais popular entre os soldados era cerveja. Uma garrafa de cerveja de 0,6 litros chamava-se bazuca.

21 abril 2004

Portugas que merecem as nossas palmas - VII: O pessoal dos centros de saúde do Baixo Alentejo

1. Às vezes este país parece-me quase perfeito e sem mácula. Em certos dias. A uma certa hora. Em certos sítios. Visto de um determinado ângulo. Num dia qualquer, tirado à sorte do calendário. Por exemplo, no mês de Abril, em pleno Baixo Alentejo. Ao pôr do sol. Experimenta ver este país sentado no banco da frente do piso superior do autocarro. Ao sul. A 250 km ao sul de Lisboa. Ao fim da tarde. Ao pôr do sol.



2. Tu podes achar este país quase perfeito e sem mácula, numa viagem de regresso a casa, de Beja a Lisboa. Viaja sobre as planícies de Beja. Podes ver as cegonhas que não já trazem os bebés de França. Num certo troço da estrada não-sei-quantos que vai desembocar na A2. A tal, que é mais conhecida como a autoestrada do Sul, a que te leva para o Algarve. Visão panorâmica. A dois metros e meio acima do solo. Em voo raso de cegonha. Toma nota que a hora é importante para veres o teu país. Tal como o sítio e o ângulo de visão. Ao fim da tarde, no conforto relativo do autocarro da Rede Expresso. Nada como deixares o teu carro em Lisboa e viajares na Rede Expresso. Toma a viatura nº 95, de preferência o lugar nº 1. Podias ter reservado o bilhete pela Internet ou enviado um SMS. Mas não vais estragar este momento único contaminando os teus pensamentos poéticos com as coisas prosaicas das novas tecnologias.



3. Nada como um perfeito pôr do sol no Alentejo. Nada como um montado de sobro e um bando de cegonhas em formação de voo. De regresso a casa, também elas. Nada como um horizonte quase perfeito e sem mácula. Tão pouco como isto. Tu podes achar este país quase perfeito e sem mácula. Por nove euros e meio. Viajando na Rede Expresso. Em certos dias, a uma certa hora, em certos sítios. Saíndo de Beja, a caminho de Lisboa.



4. Tanto e tão pouco, afinal, para te reconciliares com o teu país. Noutra hora e noutro lugar, eu acrescentaria: Nada como um pedaço de pão alentejano, umas azeitonas com o gosto dos orégãos, um bocado de requeijão, uma roda de amigos. Na Festa de Nossa Senhora das Pazes, entre ficalheiros e azinheiras centenárias. Todos os anos no domingo seguinte à Páscoa. Este ano veio muito menos gente. Que a morte bateu, com mão pesada, a muitas portas de Vila Verde de Ficalho. Vinte e cinco mortes, dizem-me desde Janeiro. A festa e o luto não combinam. Mas veio gente de outras partes do mundo, do Montijo, do Seixal, do Barreiro, de Lisboa, da diáspora alentejana. E a alegria e a festa do reencontro são universais. Todos os anos na primeira semana a seguir à Páscoa. Quer faça chuva, quer faça sol. E mesmo que os homens não se incorporem na procissão da santa que dá três voltas à capelinha. A um tiro de distância da raia espanhola. Nossa Senhora das Pazes. Lembrando, pelo caminho, os ódios e os amores antigos que atraem e repelem os vizinhos separados pelas extremas de dois países do Al-Andaluz. Desde 1232 quando o lusitano e cristão D. Sancho II reconquista aos mouros a margem esquerda do Guadiana. Mesmo que haja quem queira desistir da vida. Ou dela se despedir com dignidade. Doutor, em passando a festa, eu dou um rumo à minha vida. E aí tu percebes a diferença entre ter e não ter um médico de família, um equipa de saúde, um centro de saúde, ao alcance do teu braço.



5. Para trás deixas o verde das searas de trigo, do Alentejo que ainda dá pão. Para trás deixas gente fantástica. No mínimo, gente competente, boa e generosa. Que trabalha nos centros de saúde e suas extensões do Baixo Alentejo. Para trás deixas amigos. Em Vila Verde de Ficalho. Em Serpa. Na Cuba. Na Vidigueira. Em Aljustrel. Em Almodôvar e no Alvito. Em Barrancos. Em Beja. De Castro Verde a Ferreira do Alentejo. Em Mértola e em Moura. Em Odemira ou em Ourique. Médicos de família, enfermeiros, administrativos. Em condições muitas vezes difíceis, sem o conforto do teu gabinete de Lisboa. Sem o ar condicionado da Sony. Com 37 graus à sombra. Com um frio de rachar. Com falta de equipamentos sociais. Dando consultas em insólitos lugares, como o Sporting Clube de A do Pinto. Ou fazendo SAP em velhos conventos transformados em hospitais. Remando contra a maré do individualismo, do cinismo, da arrogância, da gestão mercantilista da saúde, da descrença, da desmotivação. Remando contra os doentes da saúde, as vítimas da aculturação médica, os tiques, os taques, as contas, os ajustes de contas do Portugal Sociedade Anónima dos Hospitais, da indústria farmacêutica, dos lóbis, do poder, da política politiqueira... Gente que cuida dos outros e que se cuida pouco. Que cuida pouco de si própria. E que pode estar trinta anos numa carreira administrativa como terceiríssimos oficiais. Ou que continua a fazer urgências mesmo para além do limite legal de idade. Que trabalha sem rede. E que às vezes é até agredida ou maltratada.



6. Um dia quiseram trabalhar em equipa. Para prestar melhores cuidados de saúde. Para trabalhar com outra motivação e satisfação. Um dia pensaram na utopia igualitária. Nos idos anos de setenta. Que nenhum deles era perfeito mas que juntos podiam sê-lo. Que podiam organizar o trabalho nos cuidados de saúde primários numa base cooperativa e, sobretudo, igualitária. Fora da tradicional relação hierárquica chefe / subordinado ou especialista / leigo. Pondo também na equipa o utente. Subvertendo a organização burocrática que o prussiano Max Weber considerava o tipo-ideal da racionalidade legal.



Hoje a utopia não morreu. Mas está mais velha e cansada. A utopia também envelhece mas não morre. Há muito que as equipas nucleares de saúde perderam o seu vigor ou se desfizeram. Mas contaminaram a cultura organizacional da Sub-Região de Saúde de Beja. O bichinho está lá e não morreu. Sempre discordei dos que pensam a utopia sem tempo nem lugar. A utopia também pode ter um tempo e um lugar. Porque na sua dupla etimologia, utopia tanto quer dizer "nenhum lugar" (ou + topia) como "lugar perfeito" (eu + topia).



Eles não são heróis nem levam nenhum existência heróica. São portugas como os outros. Profissionais de saúde como os outros. Apenas fazem alguma diferença. Eu diria que é um certo modo de ser e de estar. Algo que não se ensina em escola nenhuma. Que não se aprende nos cursos de formação do Fundo Social Europeu. Para os quais não há receitas de cozinha. Pequenos detalhes que fazem a diferença. Por isso, por tudo isso, gostei de os ver, gostei de voltar a encontrá-los. Eles são portugas que merecem as minhas palmas. As nossas palmas.

Portugas que merecem as nossas palmas - VII: O pessoal dos centros de saúde do Baixo Alentejo

1. Às vezes este país parece-me quase perfeito e sem mácula. Em certos dias. A uma certa hora. Em certos sítios. Visto de um determinado ângulo. Num dia qualquer, tirado à sorte do calendário. Por exemplo, no mês de Abril, em pleno Baixo Alentejo. Ao pôr do sol. Experimenta ver este país sentado no banco da frente do piso superior do autocarro. Ao sul. A 250 km ao sul de Lisboa. Ao fim da tarde. Ao pôr do sol.

2. Tu podes achar este país quase perfeito e sem mácula, numa viagem de regresso a casa, de Beja a Lisboa. Viaja sobre as planícies de Beja. Podes ver as cegonhas que não já trazem os bebés de França. Num certo troço da estrada não-sei-quantos que vai desembocar na A2. A tal, que é mais conhecida como a autoestrada do Sul, a que te leva para o Algarve. Visão panorâmica. A dois metros e meio acima do solo. Em voo raso de cegonha. Toma nota que a hora é importante para veres o teu país. Tal como o sítio e o ângulo de visão. Ao fim da tarde, no conforto relativo do autocarro da Rede Expresso. Nada como deixares o teu carro em Lisboa e viajares na Rede Expresso. Toma a viatura nº 95, de preferência o lugar nº 1. Podias ter reservado o bilhete pela Internet ou enviado um SMS. Mas não vais estragar este momento único contaminando os teus pensamentos poéticos com as coisas prosaicas das novas tecnologias.

3. Nada como um perfeito pôr do sol no Alentejo. Nada como um montado de sobro e um bando de cegonhas em formação de voo. De regresso a casa, também elas. Nada como um horizonte quase perfeito e sem mácula. Tão pouco como isto. Tu podes achar este país quase perfeito e sem mácula. Por nove euros e meio. Viajando na Rede Expresso. Em certos dias, a uma certa hora, em certos sítios. Saíndo de Beja, a caminho de Lisboa.

4. Tanto e tão pouco, afinal, para te reconciliares com o teu país. Noutra hora e noutro lugar, eu acrescentaria: Nada como um pedaço de pão alentejano, umas azeitonas com o gosto dos orégãos, um bocado de requeijão, uma roda de amigos. Na Festa de Nossa Senhora das Pazes, entre ficalheiros e azinheiras centenárias. Todos os anos no domingo seguinte à Páscoa. Este ano veio muito menos gente. Que a morte bateu, com mão pesada, a muitas portas de Vila Verde de Ficalho. Vinte e cinco mortes, dizem-me desde Janeiro. A festa e o luto não combinam. Mas veio gente de outras partes do mundo, do Montijo, do Seixal, do Barreiro, de Lisboa, da diáspora alentejana. E a alegria e a festa do reencontro são universais. Todos os anos na primeira semana a seguir à Páscoa. Quer faça chuva, quer faça sol. E mesmo que os homens não se incorporem na procissão da santa que dá três voltas à capelinha. A um tiro de distância da raia espanhola. Nossa Senhora das Pazes. Lembrando, pelo caminho, os ódios e os amores antigos que atraem e repelem os vizinhos separados pelas extremas de dois países do Al-Andaluz. Desde 1232 quando o lusitano e cristão D. Sancho II reconquista aos mouros a margem esquerda do Guadiana. Mesmo que haja quem queira desistir da vida. Ou dela se despedir com dignidade. Doutor, em passando a festa, eu dou um rumo à minha vida. E aí tu percebes a diferença entre ter e não ter um médico de família, um equipa de saúde, um centro de saúde, ao alcance do teu braço.

5. Para trás deixas o verde das searas de trigo, do Alentejo que ainda dá pão. Para trás deixas gente fantástica. No mínimo, gente competente, boa e generosa. Que trabalha nos centros de saúde e suas extensões do Baixo Alentejo. Para trás deixas amigos. Em Vila Verde de Ficalho. Em Serpa. Na Cuba. Na Vidigueira. Em Aljustrel. Em Almodôvar e no Alvito. Em Barrancos. Em Beja. De Castro Verde a Ferreira do Alentejo. Em Mértola e em Moura. Em Odemira ou em Ourique. Médicos de família, enfermeiros, administrativos. Em condições muitas vezes difíceis, sem o conforto do teu gabinete de Lisboa. Sem o ar condicionado da Sony. Com 37 graus à sombra. Com um frio de rachar. Com falta de equipamentos sociais. Dando consultas em insólitos lugares, como o Sporting Clube de A do Pinto. Ou fazendo SAP em velhos conventos transformados em hospitais. Remando contra a maré do individualismo, do cinismo, da arrogância, da gestão mercantilista da saúde, da descrença, da desmotivação. Remando contra os doentes da saúde, as vítimas da aculturação médica, os tiques, os taques, as contas, os ajustes de contas do Portugal Sociedade Anónima dos Hospitais, da indústria farmacêutica, dos lóbis, do poder, da política politiqueira... Gente que cuida dos outros e que se cuida pouco. Que cuida pouco de si própria. E que pode estar trinta anos numa carreira administrativa como terceiríssimos oficiais. Ou que continua a fazer urgências mesmo para além do limite legal de idade. Que trabalha sem rede. E que às vezes é até agredida ou maltratada.

6. Um dia quiseram trabalhar em equipa. Para prestar melhores cuidados de saúde. Para trabalhar com outra motivação e satisfação. Um dia pensaram na utopia igualitária. Nos idos anos de setenta. Que nenhum deles era perfeito mas que juntos podiam sê-lo. Que podiam organizar o trabalho nos cuidados de saúde primários numa base cooperativa e, sobretudo, igualitária. Fora da tradicional relação hierárquica chefe / subordinado ou especialista / leigo. Pondo também na equipa o utente. Subvertendo a organização burocrática que o prussiano Max Weber considerava o tipo-ideal da racionalidade legal.

Hoje a utopia não morreu. Mas está mais velha e cansada. A utopia também envelhece mas não morre. Há muito que as equipas nucleares de saúde perderam o seu vigor ou se desfizeram. Mas contaminaram a cultura organizacional da Sub-Região de Saúde de Beja. O bichinho está lá e não morreu. Sempre discordei dos que pensam a utopia sem tempo nem lugar. A utopia também pode ter um tempo e um lugar. Porque na sua dupla etimologia, utopia tanto quer dizer "nenhum lugar" (ou + topia) como "lugar perfeito" (eu + topia).

Eles não são heróis nem levam nenhum existência heróica. São portugas como os outros. Profissionais de saúde como os outros. Apenas fazem alguma diferença. Eu diria que é um certo modo de ser e de estar. Algo que não se ensina em escola nenhuma. Que não se aprende nos cursos de formação do Fundo Social Europeu. Para os quais não há receitas de cozinha. Pequenos detalhes que fazem a diferença. Por isso, por tudo isso, gostei de os ver, gostei de voltar a encontrá-los. Eles são portugas que merecem as minhas palmas. As nossas palmas.