03 fevereiro 2005

Portugas que merecem os nossos assobios - VI: O Estado de Portas & Félix

1. Recebi, há dias, com data de Dezembro de 2004, um ofício, em papel timbrado de um obscuro Departamento de Apoio aos Antigos Combatentes, Apartado 24 048, 1250-997 Lisboa, assinado pelo Ministro de Estado e da Defesa Nacional e dos Assuntos do Mar, Paulo Portas, e pelo Ministro das Finanças e da Administração Pública, António Bagão Félix. Passo a transcrever, na totalidade, o seu conteúdo, com comentários meus dentro de parêntesis rectos, e mantendo os negritos do original:

"Dezembro de 2004. Caro Antigo Combatente [que sou eu, membro da Companhia de Caçadores Africanos CCAÇ 12, em serviço na Guiné entre meados de 1969 e o 1º trimestre de 1971]:

"Está concluído o processo respeitante ao requerimento apresentado por V. Exª ao abrigo da Lei 9/2002, de 11 de Fevereiro [ Regime jurídico dos períodos de prestação de serviço militar de ex-combatentes, para efeitos de aposentação e reforma ].

"Este é o primeiro grande esforço do Estado para reconhecer os mais de 400.000 Antigos Combatentes que serviram a Pátria em condições especiais de dificuldade ou perigo.

"É com satisfação [sic] que informo [eu, quem ? O Estado ? O Estado representado por Portas & Félix ? O Ministro Portas ou o Ministro Félix ?] que lhe foi reconhecido, para efeitos de aposentação, o tempo de serviço militar prestado, incluindo o tempo de bonificação, que totaliza 4 anos e 6 meses. Este dado foi já transmitido à Caixa Geral de Aposentações.

"Saiba ainda que, quando se aposentar, tem direito a que lhe seja atribuído, todo os os anos:

" - O Complemento Especial de Pensão, calculado de acordo com a contagem do tempo de bonificação do serviço militar prestado. Este Complemento é transmissível integralmente ao cônjuge sobrevivo, pensionista de sobrevivência;

" - No caso de ter efectuado o pagamenmto de quotizações referente ao tempo de bonificação, receberá, também, um Acréscimo Vitalício de Pensão".

Assinaturas:

Ministro de Estado e da Defesa Nacional e dos Assuntos do Mar, Paulo Portas;
Ministro das Finanças e da Administração Pública, António Bagão Félix.


2. O ofício chegou-me, pelo correio, em vulgar envelope, não timbrado, com taxa paga, e com duas janelas, uma para o remetente (O supracitado Departmento, com o brazão nacional da República Portuguesa) e outra para o destinatário (O meu nome estava correcto, mas a morada apresentava erros, incluindo o código postal).

Fiquei logo com dúvidas sobre a autenticidade do documento. Não fazia a mínima ideia da existência deste Departamento e da respectiva tutela: Ministério da Defesa Nacional ? Ministério das Finanças ? O ofício nada me esclarecia. A única referência era o modelo de impresso que também não me foi de qualquer utilidade.

Acabei por ir à Net e e descobrir, no sítio do Ministério da Defesa Nacional, uma página dedicada ao momentoso problema dos "antigos combatentes".

Em resumo, este Departamento pertence à Direcção-Geral de Pessoal e Recrutamento Militar do Ministério da Defesa Nacional, sita na Av. Ilha da Madeira nº 1, 1400-204 Lisboa.

Por outro lado, também não consegui associar, de imediato, os dois ministérios (não os dois ministros, que esses são publicamente reconhecidos como representando, neste Governo dito de gestão, um determinado partido político).

Recordo-me, isso sim, de ter entregue um requerimento, no último trimestre de 2002, na dita Direcção-Geral de Pessoal e Recrutamento Militar, no Restelo, depois de estar numa enorme bicha que dava à volta à parada. Mas nunca mais pensei no assunto. Nem muito menos estava à espera desta resposta, quiçá tardia (dois anos!) mas sobretudo personalizada.

Devo confessar que, num lapso de segundo, me senti lisonjeado por, tendo sido objectivamente um servidor da Pátria em guerra (apesar da minha contestação da e resistência à dita guerra), ter tido uma espécie de tratamento VIP ou, pelo menos, a honra de receber um ofício com a assinatura de dois altos representantes do Estado Português.

Três micro-segundos depois comecei a ter dúvidas e a juntar as pontas: eu e mais 400 mil antigos camaradas de armas da "guerra do ultramar" estavam a receber um ofício, pelo correio, para nos informar (ou simplesmente reiterar) que o Estado é uma pessoa de bem, de bom nome, de boa fé e de boas contas, o mesmo é dizer que estava a cumprir a lei (o diposto na tal Lei nº 9/2002).

Admitindo que este singelo acto (praticado pelo dito Departamento, sito no Apartado não-sei-quantos) custa ao contribuinte 1 euro, o erário público gastou ou vai gastar, no mínimo, 400 mil euros com esta operação de... serviço público.

Operação de serviço público ? Ou antes de charme ? E por que não de propaganda eleitoral ? Pergunto, questiono, insinuo, mas não respondo de maneira assertiva... Levanto a questão só por que me pareceram desproporcionados os meios utilizados para me dizerem que eu, ex-combatente, tenho direito a um contagem adicional de tempo, de 4 anos e meio, para efeitos de aposentação, sendo eu subscritor da Caixa Geral de Aposentações.

Convenhamos que não é habitual o Estado responder, desta forma tão massiva e onerosa mas ao mesmo tempo tão efusiva e personalizada, aos requerimentos dos seus súbditos ou cidadãos. Direi mais, ideológica. Veja-se que a fraseologia é portiana: "Este é o primeiro grande esforço do Estado para reconhecer os mais de 400.000 Antigos Combatentes que serviram a Pátria (sic) em condições especiais de dificuldade ou perigo"...

Calma aí, senhor ministro: a tutela (a actual e as anteriores) das forças armadas não tem legitimidade, nem histórica nem democrática, para falar em nome dos tais 400 mil combatentes do ultramar... A minha Pátria de hoje não era mesma de 1969/71, ou melhor, não tinham qualquer legimitidade democrática os senhores da elite dirigente que falavam "em nome da Pátria" e "a bem da Nação" e me pediram, a mim e à minha geração, para morrer e para matar na Índia, na Guiné, em Angola ou em Moçambique...

É bom não esquecer que o supracitado diploma legal é da Assembleia da República, aprovado pelo respectivo presidente, António de Almeida Santos em 20/12/2001, promulgado pelo Presidente da República, Jorge Sampaio, em 25/01/2002, e referendado pelo Primeiro Ministro, António Guterres, em 31/01/2002. Se a memória me não falha, na sua origem está uma proposta de lei que foi, em devido tempo, apresentada pela bancada parlamentar de que Paulo Portas era o líder. Mas a partir do momento que a Lei entrou em vigor, deixou de ter "cor partidária", é apenas uma lei da República Portuguesa. O pale do Governo é pô-la em execução.

Não ponho em causa a legitimidade e a autenticidade dos proponentes deste projecto. E faço votos para que a condição socioeconómica de alguns dos meus antigos camaradas de armas, e sobretudo dos que passam hoje por maiores dificuldades, possa melhorar um pouco, na sequência da aplicação desta lei... Se o Estado quer "fazer justiça" aos seus "antigos combatentes", que o faça e que o faça com equidade...

Só estranho é que, na véspera de novas eleições para a Assembleia da República, dois ministros do mesmo partido, venham agora tentar "cobrar dividendos" aos beneficiários de uma lei da República... Voltámos ao tempo do "A bem da Nação" ou até de "L'État c'est Moi" ?

Se assim é, então este Estado, o do Paulo & Félix, não é seguramente o meu, aquele que eu gostaria (e me orgulharia) de ter ao serviço da minha Pátria, o Estado de todos os portugueses e de todas as portuguesas.

Se assim não é, a mim pareceu-me...

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