Guiné > Zona Leste > Sector L1 > Algures (Destacamento do Rio Undunduma ?) > 1969 ou 1970 > O 1º Cabo Branco do 2º Gr Comb da CCAÇ 12 experimentado uma granada de fumo.
Arquivo pessoal de Humberto Reis (ex-furriel miliciano de operações especiais, CCAÇ 12, Bambadinca, 1969/71). © Humberto Reis (2006).
Texto do João Tunes
Caro Luís,
O blogue anda numa tal produção frenética que é difícil acompanhá-la. Valha o que isso representa de saudável no despejo e reequilíbrio da memória. Mas que começa a ser difícil acompanhar a pedalada do sprint memorial, lá disso não me resta qualquer dúvida. E falo só por mim?
Entre tanta produção, eu, ás vezes, já baralho as autorias. Que, diga-se, se vão diluindo dando palco à nossa odisseia colectiva, essa mancha viva que a todos nos marcou.
Embora as dores não sejam transmissíveis, cada um sendo marcado pelas suas, como nenhum passou sem uma e outra marca forte a fazer-lhe cócegas na lembrança, nesta riquíssima troca de experiências acabamos por ganhar uma dimensão que antes não teríamos - perceber que, mais coisas menos coisa, pitoresco aqui, pitoresco acolá, passamos por muito aproximado com cada qual metido lá no seu beco frente à bolanha.
E assim vamos perdendo a hipervalorização do que cada um passou, mais a malta do seu pelotão, da sua companhia, do seu batalhão. O isolamento dos aquartelamentos na Guiné criava-nos uma dimensão reduzida dos acontecimentos, dos sofrimentos e das façanhas. Muitos de nós fomos e voltámos da Guiné com uma ideia ego-localizada, quase de natureza concentracionária, do buraco onde nos enfiaram.
A Guiné estava ali, ali começando e ali acabando. Para uns, Guiné era Mansoa, para outros Aldeia Formosa ou Catió ou Farim. E como elas doíam em toda a parte, o natural é que cada um pensasse que tinha passado pelo pior, desvalorizando-se os outros que, comparando-se com o que tínhamos passado, não podia ter sido pior, logo até devia ter sido melhor.
E nunca vos aconteceu darem convosco, perante os sinais longínquos de um ataque a um aquartelamento próximo mas de outra companhia e outro batalhão, a encolherem os ombros e a dizerem "a malta de X... está a enfardar" (...metendo para dentro a frase-chave calada: "foda-se, antes eles que nós!")?
Julgo que não é mérito menor deste blogue dar-nos, à distância de umas dezenas de anos, essa dimensão mais integrada da realidade da Guiné. Que, no fundo, sempre tendo sido um país pobre e pequeno, sobretudo por via do seu tremendo e complexo mosaico étnico, é, pelo menos em termos de paisagem humana, social e cultural, muitos países metido numa estreita faixa de terra. E ainda hoje está para ser, se vier a ser, uma Nação mesmo.
Alguns entre nós, por força das circunstâncias particulares da sua missão e da sua especialização, ou fruto do aleatório, circulámos por espaços mais amplos e diversificados da Guiné. Foi o meu caso, por ter prestado serviço em três batalhões (um com sede em Bissau e depois no Pelundo, outro com sede em Catió, o último com sede em Bissau), no espaço dos vinte e quatro meses que por lá me obrigaram a andar.
Se isso me deu uma visão relativamente alargada dos chãos da Guiné, inibiu-me o espírito de corpo da cristalização e consolidação de laços dos que se mantiveram constantes na mesma unidade e tecendo, estruturando e fortalecendo, os mesmos laços de relacionamento e de camaradagem. Ou seja, mais desprendido relativamente ao corpo da unidade. O que, como tudo, teve vantagens e inconvenientes. Talvez, venha daí a minha experiência e opinião relativamente às praxes.
Um dos tertulianos escreveu: "Nós, tugas, tínhamos também as nossas praxes e rituais para exorcizar o medo, para reforçar a nossa crença da invulnerabilidade do nosso corpo... Ora, nada como evocar e desafiar a morte, invectivar Deus e o Diabo, fazer bravatas, armar-se em fanfarrão, inocular ainda mais medo aos pobres diabos que chegavam ao mato, o mítico mato da Guiné..." e julgo que foi o Luís que assim bem falou.
Concordo com a apreciação mas se me é permitido direi que a componente praxista, se cumpria um papel de descarga e de iniciação, positiva por necessária ou inevitável, não deixava de ser uma pulsão de crueldade sádica e, nesse aspecto, uma negação da camaradagem. Felizmente, as praxes eram breves e não atingiam níveis de violência intolerável. Mas eram uma forma de violência gratuita e acobardada e disso não passavam, como, aliás, acontece com praticamente todas as praxes (incluindo-se a boçalidade degradante e generalizada das praxes académicas).
Pela minha experiência, os momentos em que me senti mais triste, mais infeliz, mais abandonado, mais animal perdido no mundo, foram os insultos sádicos com que fui recebido em Bissau, sentindo-me ainda mais ridículo no verde vivo do camuflado novo em folha, com os escárnios do "periquito vai para o mato..." e outros do mesmo fio dessa meada. E o único aspecto positivo que retenho dessa experiência praxista foi a minha decisão, logo ali tomada e depois cumprida, de não a reproduzir, nem tal permitir a homens sob meu comando, quando me chegasse a vez de aceder à classe dos velhinhos.
Porque pensava, e ainda assim penso, que a violência da praxe era um acrescento inútil e desproporcionado à violência e dores da própria guerra. Pior que tudo, nas praxes, como em qualquer praxe, é que elas são celebradas em postura de autoridade ampliada de cima para baixo ou quando muito para o lado. Implicando sempre uma situação de partida com superioridade garantida do forte para com o fraco. E todos nós tivemos à mão de semear uns oficiais de merda, carregados de riscos dourados nos ombros, cagões e sem capacidade de mando, fazendo carreira e pés de meia nos caminhos daquela inútil guerra.
E eu nunca entendi que valentia era essa de praxar o desgraçado como nós, o amedrontado como nós, os que vinham passar pelo que havíamos passado, e descarregar o gozo de alívio nesses mesmos, nossos iguais e nossos sucessores, e não nos gajos feitos ao regime, comendo sinecuras e promoções, incluindo fascistas e colonialistas por opção ou por manjedoura, que, de uma ou outra forma, nos tinham levado até ali, praxantes e praxados, ao mesmo cú de judas. Enfim, um mero ponto de vista.
As melhores saudações para ti, caro Luís, e para todos os camaradas tertulianos.
João Tunes
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