26 fevereiro 2004

Em Lisboa nem sangria má nem purga boa - I : Carta a Sua Excelência, o Ministro da Saúde

Cópia do original.



Para memória futura.

Para os vindouros.

Para os historiadores.

Para os que vierem depois de eu fechar a porta.

Para os guardiões da Torre do Tombo.

Para quem de direito. Para os pagantes. Para os não-pagantes. Para os actores. Para os espectadores.

Para os marginais-secantes.

Para o mercado e a bolsa de Lisboa e a casa forte do Banco de Portugal.

Para o Portugal S.A. Para o Portugal Sociedade Anal.

Para os loucos e os menos loucos.

Para os poetas que têm um pouco de gestores.

Para os gestores que têm um pouco de médicos.

Para os médicos que têm um pouco de loucos.

Para os economistas que gostariam de governar o mundo.

Para os políticos que gostariam de mandar nos economistas, nos gestores, nos médicos e nos doentes.

Para aqueles dos políticos que falam em nome do povo.

E para aqueles que gostariam de mandar no povo.

Para os da lista de espera que desesperam de esperar.

Para os que vão morrer esta noite nos Hospitais S.A.

Para os que foram hoje ao serviço de atendimento permanente do meu centro de saúde e deram com a porta na cara.

Para os doentes agudos. Para os doentes crónicos.

Para os hipocondríacos. Para os doentes da saúde.

Para as vítimas da guerra, dos terramotos, da fome, da peste e do bispo da nossa terra, de que Deus nos livre!

Para os simples, os utentes, os pacientes, os clientes, os beneficiários, as crianças.

Para os meus (con)cidadãos, os remediados e os ricos.

Para os pobres, os tristes, os descrentes, os desempregados, os velhos, os sós, os esquecidos e os desconsolados que frequentem o meu centro de saúde.

Para os apátridas. Para os que perderam a identidade.

Para aqueles de quem um dia se disse que eram os bem-aventurados porque deles seriam o reino dos céus, amen.

Para o meu fornecedor da revista cais no semáforo da esquina da rua da alegria com a avenida da liberdade.

Para a minha-médica-de-família-que-é-a-melhor-médica-do-mundo. Para o médico de família do gabinete ao lado que se enganou no curso que queria tirar.

Para o boticário do meu bairro. Para o meu barbeiro-sangrador. Para mim. Para ti, meu amor.

Para o meu psicanalista. Para o meu psicoterapeuta.

Para o meu médico do trabalho.

Para o meu técnico de higiene e segurança no trabalho.

Para o ergonista que está a desenhar o meu sistema técnico e organizacional de trabalho.

Para os habitantes da minha casa inteligente do futuro.

Para a minha cartomante preferida.

Para os mais distraídos. Para os votantes.

Para as debutantes. Para os amantes.

Para o meu patrão.

Para os meus dinossauros de estimação.

Para os médicos da noite. Para os médicos na noite.

Para a minha querida Médis.

Para o meu rico seguro contra todos os riscos.

Para a coisa (pública) e a sua gestão.

Para os contínuos, porteiros e seguranças do Estado.

Para os cobradores de impostos.

Para os pagadores de promessas.

Para os gestores e administradores dos serviços de saúde.

Para os que passam as noites e os dias a pensar na reforma do serviço nacional de saúde.

Para os reformadores do sistema. Para todos os reformadores.

Para a nossa saúde. Para os vírus que hão-de vir.

Para os codificadores de grupos de dignósticos homogéneos de doença.

Para os marcadores biológicos do Homo Sapiens Sapiens.

Para os arquitectos do genoma humano.

Para o meu antepassado troglodita que era recolector-caçador e que quando almoçava nunca sabia onde e o quê iria jantar.

Para os futuros ministros da saúde. Para os ministros do futuro. Para que Deus ilumine os nossos governantes e os pescadores que andam perdidos no mar alto.

Para conhecimento do Zé Portuga. Para o Zé Manel. Para o Zé, simplesmente.



PS - E para que o Blogador nunca perca de vista o essencial

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Lisboa, 19 de Fevereiro de 2004



Senhor Ministro da Saúde



Excelência,



Os Médicos de Família Carlos Arroz, João Rodrigues, José Luís Gomes e Luís Pisco, reuniram em 9 de Fevereiro de 2004, no Ministério da Saúde, a pedido de V. Exª, para análise da aplicação do DL 60/2003, de 1 de Abril, e modelos alternativos para a gestão dos Centros de Saúde, conforme previsto na Lei de Bases da Saúde. Nessa reunião ficou clara a nossa postura responsável de diálogo, transparência e objectividade nas propostas apresentadas, tendo sido consensualmente aceite o início dum trabalho conjunto conducente à concretização de novos modelos para a gestão dos Centros de Saúde baseados num contrato-programa nacional.



Surpreendentemente, três dias após a nossa reunião, tomamos conhecimento de que V. Exª teria comunicado, aos respectivos directores, a decisão de entregar a gestão dos Centros de Saúde de Vila Real (1 e 2), Santa Marta de Penaguião, Mesão Frio e Régua ao Centro Hospitalar de Vila Real / Peso da Régua, S.A.



Simultaneamente, recebemos a informação de que igual decisão estaria tomada relativamente aos Centros de Saúde englobados na área de influência do Centro Hospitalar da Cova da Beira, S.A.



Estupefactos e incrédulos perante um cenário que, a ser verdade, contraria as mais elementares regras da ética, da transparência e da boa fé nas relações interpessoais e institucionais, e que, obrigatoriamente, devem estar presentes ao nível dum órgão da governação, vimos solicitar junto de V. Exª os devidos e urgentes esclarecimentos formais sobre esta matéria.



Como se compreenderá não podemos esperar nem admitir de V. Exª outra resposta que não seja o imediato e inequívoco desmentido público deste tipo de decisões e linha de conduta.



Se tal não se verificar, os subscritores deste comunicado, não pondo em causa os deveres institucionais e de respeito para com o Governo e o Ministério da Saúde, consideram estar irremediavelmente comprometida a confiança no titular da respectiva pasta, pelo que nenhum trabalho ou negociação poderá desenvolver-se enquanto num dos lados prevalecer uma sistemática cultura de ocultação de factos e propósitos.



Com os nossos melhores cumprimentos



Carlos Arroz

João Rodrigues

José Luís Gomes

Luís Pisco

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