22 fevereiro 2004

Estórias com mural ao fundo - XXIII: Quem mente vai para o Inferno

1. Uma conhecida gestora de sucesso, Directora de Recursos Humanos de uma grande empresa ex-portuguesa, morreu de enfarte do miocárdio. Em plena for da idade (o que não é estranho, já que elas querem em tudo competir com os machos).

2. No outro mundo, dá de caras com São Pedro, ele próprio, em carne e osso. O Gestor do Paraíso!

- Sejas bem-vinda ao Paraíso, diz o São Pedro. Mas deixa-me desde já prevenir-te de uma coisa: não sei muito bem o que fazer contigo. Estive a ver o teu currículo e tens qualificações a mais: um bacharelato, uma licenciatura, um MBA, um doutoramento, um pós-doutoramento... Sabes, minha filha, os negócios celestiais são coisa fácil de gerir: nós somos o Estado, não há mercado, não há inovação, não há horizontes temporais, temos todo o tempo do mundo... E depois nós pagamos mal, não temos fringe benefits, não há comparticipação nos lucros nem no capital (profit-sharing e share ownership, como vocês dizem lá na terra)...
- Não há problema, patrãozinho, deixe-me só dar uma espreitadela para ver o clima organizacional, respondeu a doutora. Sabe como as mulheres são curiosas!
- Espera, tenho outra sugestão a fazer-te: vais passar um dia no Inferno e outro no Paraíso; e depois escolhes onde ficar para o resto da eternidade.

3. Chegada ao Inferno, a gestora viu abrir-se de par em par as portas de acesso a um luxuriante campo de golfe. Mais adiante, havia um esplêndido clube de vela. E logo a seguir outro, ainda mais luxuoso, de caça. E, lá longe, uma magnífica estação de esqui... Havia tudo do bom e do melhor: hotéis, jardins, condomínios fechados, lojas de perfumes, carros e homens bonitos, passagens de modelos, bailes de gala, chás de caridade, e por aí fora.

Depressa ela encontrou os gestores executivos com quem tinha trabalhado na terra, mais os seus gurus, os seus mestres e os seus professores... Todos aparentavam estar em grande forma, transparecendo saúde, felicidade, riqueza e glamour. As emoções do dia culminaram num dos melhores restaurantes do inferno, a que não faltaram o melhor champanhe francês, o melhor Porto Vintage e o melhor humor da corporação do management.

Contrariamente aos preconceitos que ela tinha sobre ele, o dono da casa mostrou-se um anfitrião de cinco estrelas, elegante, charmoso, educado, afável e até divertido, exprimindo-se num razoável inglês. A nossa executiva estava a sentir-se nas suas sete quintas quando recebeu ordens, pelo secretário particular do Diabo, para se preparar para partir para o céu.

4. Aqui o ambiente era outro: literalmente celestial ("Chato p'ra burro", pensou ela para com os seus botões). Nas 24 horas do programa, a mulher andou num monotóno carrossel, de nuvem para nuvem, ouvindo os anjinhos a tocar harpa e cantar melodias infantis... Até lhe fez lembrar o ambiente do seu departmento, nos últimos tempos das suas funções como gestora, quando teve que aplicar um programa de emagrecimento radical à sua empresa que depois viria a ser vendida aos espanhóis...

- Então, minha filha, qual é a tua impressão ?, perguntou o São Pedro no final da visita.
- Senhor São Pedro, não há dúvida que o Paraíso é maravilhoso, é a melhor empresa que eu já conheci: sem conflitos, sem problemas com o pessoal, os clientes, os bancos ou os fornecedores, sem um ai, sem um ui... Tudo rola sobre esferas de algodão! Mas, para lhe falar verdade (que foi coisa que eu nunca consegui fazer lá na terra), senti-me bem melhor no Inferno, com os meus antigos patrões e colegas de trabalho... Sabe, sinto falta de toda aquela intensa vida social que faz as delícias da gestão de recursos humanos...

5. O São Pedro, cavalheiresco mas já velho e cansado, acompanhou-a na descida até ao Inferno... Quando as portas do elevador se abriram, ela deparou-se com um lugar frio, inóspito, desolador, lunar... Viu todos os seus antigos amigos com os fatos dos melhores costureiros reduzidos a trapos, trabalhando como escravos, acorrentados e assediados por mil e um diabos e diabretes. Teve um arrepio: aquilo fez-lhe lembrar a sua primeira experiência profissional como agente de organização e métodos numa fábrica de metalomecânica da Amadora nos já idos anos de 1960!

O Diabo pegou na mulher por um braço e arrastou-a com brutalidade, enquanto o São Pedro voltava para o seu posto de trabalho, cabisbaixo...
- Não entendo, gritou ela. Ontem eu estava aqui e havia imensos espaços verdes, um campo de golfe, um restaurante francês... Comemos lagosta, bebemos champanhe, contámos anedotas, divertimo-nos. Prometeram-me um lugar em grande na eternidade!

O diabo olhou para ela e soltou uma gargalhada:
- Pois é, minha filha, nós utilizamos as mesmas técnicas de selecção e recrutamento de pessoal... Ontem a nossa empresa estava a seduzir-te e a contratar-te... Hoje já fazes parte da equipa do Inferno.

Moral da história:

(i) As políticas de gestão de recursos humanos e os seus gestores vão parar ao Inferno porque mentem...

(ii) Não há mais políticas de gestão de recursos humanos. Previsíveis e consistentes.

(iii) Não há mais recursos humanos...