1.Correia de Campos despediu-se dos seus leitores do Público no dia em que tomou posse do XVII Governo Constitucional, como ministro da saúde. À sua última crónica (quinzenal) deu-lhe um título sucinto mas programático: "Quatro anos" (Público, 11 de Março de 2005).
Começa por dizer-nos que quatro anos é muito tempo e pouco tempo, dependendo do balanço final que vier a ser feito da sua acção à frente da tutela da saúde. Será muito tempo ou tempo perdido, diz Correia de Campos, se daqui a quatro anos continuarmos a ter (itálicos meus):
(i) "as mulheres condenadas pela procriação não desejada ou desiludidas pela não assistida";
(ii) "os doentes de cancro tardiamente diagnosticados e mediocremente tratados";
(iii) "os doentes mortalmente infectados nos hospitais que os deveriam recuperar";
(iv) "os imigrantes que não entendem os labirintos da burocracia sanitária";
(v) "os doentes terminais";
(vi) "os portadores de deficiência mal assistida";
(vii) os sem-abrigo ("os que dormem nas arcadas ou nos vãos de escada");
(viii) "os velhos sós que mendigam conversa e se plantam, de madrugada, à porta do centro de saúde";
e, por fim, (ix) os velhos doentes e os doentes crónicos ("cada vez mais velhos e cada vez mais doentes, a cargo de famílias desesperadas, sem meios nem apoios, empurrados do hospital para um domicílio inexistente, um divã numa marquise suburbana").
2. Estes quatro anos que os cidadãos eleitores portugueses deram ao Partido Socialista e ao seu líder José Sócrates e à sua equipa governativa, não foram um cheque em branco mas serão tempo perdido, segundo o novo ministro da saúde, se:
(i) "o conhecimento, a inovação e a adequada tecnologia para a saúde continuarem a ser mal copiados, descuidados sem ambição ou meramente comprados ao estrangeiro";
(ii) "os interesses profissionais dos assistentes sobrelevarem o interesse dos assistidos";
(iii) "a estratégia do crescimento em mais um mercado vencer a estratégia da equidade;
(iv) "a desejável lógica de mercado em tudo o que o mercado faça melhor que o Estado deixar perverter a concorrência pela dominação";
(v) "não se contiver a hemorragia da despesa desnecessária";
(vi) "não se conseguirem introduzir novos parceiros locais na relação de proximidade entre serviços de saúde e cidadãos-utentes";
e, last but not the least, (vii) "não se conseguir (...) passar a mensagem do nº 1 do artigo 64º da Constituição de que todos têm direito à protecção da saúde, [mas todos têm] o dever de a defender e promover".
3. É um desafio, não direi temerário, mas antes lúcido, assertivo e corajoso, este que compromete mais o homem e o cidadão do que o político (ver-se-á o seu programa daqui a dias). Que compromete mas também honra o professor e o intelectual. Em contrapartida, quatro anos serão pouco tempo, "tempo bem utilizado", se:
(i) "os cuidados primários florescerem paulatinamente, com profissionais suficientes, bem treinados e bem apoiados, tratamento urbano dos assistidos";
(ii) "idosos e suas famílias encontrarem uma solução adequada a cada caso, sem descarte egoísta nem fardo insuportável";
(iii) "os toxicodependentes forem agarrados pelo sistema de saúde em vez de pelo sistema de distribuição da droga";
(iv) "os portadores de VIH e outras doenças transmissíveis souberem onde se tratar e como parar a cadeia de contágio";
(v) "hospitais e centros de saúde estiverem ligados entre si sem hegemonias nem recriminações";
(vi) "todos os hospitais souberem e puderem tratar bem o cancro, deixando para os mais especializados os casos mais complexos";
(vii) "todas as escolas disseminarem conhecimentos de saúde e sobretudo de vida saudável pelos seus alunos, criando nos adolescentes a noção de que o desporto sadio é tão cool como a 24 de Julho ou a Ribeira, que a entreajuda e a alegria de viver e o ar livre são pelo menos tão saborosos como a cervejada semanal e o maço diário, que beber com moderação em ocasiões festivas, designando um condutor rotativamente abstémio, é a melhor forma de não perder dolorosamente amigos e amigas na flor da vida";
(viii) "os nossos velhos vierem a ser mais bem acompanhados";
(ix) "os nossos doentes crónicos, nomeadamente de cancro e outras doenças de alta severidade, vierem a ser mais bem assistidos";
(x) e, por fim, "em cada ano, os ainda mais de mil mortos de acidentes de viação, os quase 500 de acidentes de trabalho, os quase mil de sida, as dezenas de milhares de mortos prematuros devido a doença cárdio e cérebro-vascular, a patologias respiratórias e digestivas evitáveis com exercício regular e redução do tabaco e álcool, os quase 80 mil atingidos por infecção hospitalar, dez por cento dos quais morrem, puderem deixar de contar nessa epidemia silenciosa".
3. Meu caro António, senhor ministro da saúde: sob a tua liderança, não tenho dúvidas de que na saúde nada será como dantes, mesmo que não tenhas, felizmente, prometido o céu. Os teus amigos conhecem-te as qualidades (e os defeitos), com destaque para as tuas reconhecidas capacidades de liderança, determinação, organização, competência, empenhamento e relacionamento, a par da tua cultura, inteligência e sentido de missão. E, no final, embora seguramente mais velho e cansado, terás achado que valeu a pena, que valeram a pena os sacrifícios pessoais, familiares e profissionais, que a análise de custo/benefício foi positiva, que todos ganhámos, os portugueses e as portuguesas, os novos, os adultos, os velhos e os doentes, a saúde pública, a universidade, as empresas, a economia, a economia da saúde e as demais ciências da saúde pública, os utentes mas também os profissionais de saúde, todos nós, afinal, os verdadeiros e legítimos stakeholders da saúde...
PS- Só posso desejar-te boa sorte. Até daqui a quatro anos, António!.
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