1. A criação da Faculdade de Medicina de Lisboa data de 1911,e a ela está associada a chamada "geração de ouro" da medicina portuguesa sob a liderança de Celestino da Costa. Quase cem anos depois, surge o projecto do Museu de Medicina, cuja filosofia é apresentada sucintamente no respectivo sítio, nestes termos:
"Os museus de arte e os museus da ciência e da técnica são dois mundos, duas culturas, cada um com o seu património, as suas especificidades, o seu público.
"Muitos programadores destes dois tipos de equipamento cultural interrogam-se frequentemente sobre a possibilidade de uma terceira via, e lançam questões: Como criar pontes que façam a ligação entre estes dois grandes ramos da experiência e do conhecimento humanos, sem prejuízo das suas especificidades? Será possível reunir num mesmo lugar de exposição, sob um denominador comum, objectos testemunhos de um e de outro universo? E, no caso afirmativo, não haverá o risco de reforçar um conhecimento estático ou de suscitar visões maniqueístas pré-existentes, que reenviariam cada um destes objectos, privados dos contextos respectivos, a categorias em que se poderiam opôr de forma redutora o belo e o verdadeiro, o imaginário e o concreto, o racional e o expressivo, a arte e a ciência? Como pensar uma tal iniciativa no contexto da medicina, não em termos de mera demonstração didática, de ilustração, de pretexto, mas de complementaridade (implicando caminhos paralelos, ou até mesmo divergentes) ou de "contaminação" recíproca (criando enriquecimentos mútuos)?
"Desde Hipócrates que a prática da medicina é assumida simultaneamente como uma arte e como uma ciência. A percepção dos fenómenos da saúde e da doença faz-se quase sempre cruzando métodos de avaliação qualitativos e quantitativos, conjugando a subjectividade sintomatológica das pessoas com a objectividade técnica e analítica das máquinas e instrumentos. Por isso faz todo o sentido que um museu de medicina se organize como uma terceira via que que faça a ligação entre arte, ciências humanas, naturais e sociais, procurando tirar partido da interacção dos diferentes ramos do saber.
"O projecto Museu de Medicina da Faculdade de Medicina de Lisboa seguirá esta terceira via. Organizar-se-á como um laboratório, um centro de circulação de informação e geração de conhecimento e ideias, aberto à multiplicidade de cruzamentos que hoje a investigação interdisciplinar permite fazer, a partir da especificidade da arte e da ciência".
2. Visitei ontem a exposição "Passagens - 100 Peças para o Museu de Medicina", a decorrer no Museu Nacional de Arte Antiga, entre 24 de Fevereiro e 30 de Abril de 2005. Estão de parabéns a equipa que lidera este projecto da Faculdade de Medicina de Lisboa mas também o Museu Nacional de Arte Antiga por esta aposta e esta oportunidade de renovação da (e de reflexão sobre a) prática museológica. Trata-se de uma exposição a não perder. No velho museu das Janelas Verdes modelos anatómicos, preparações humanas, mecanismos e imagens médicas, instrumentos de medição e de observação cruzam-se e ligam-se com obras de arte, e passam à categoria de objectos culturais, ligados à nossa memória, à nossa identidade e à produção de um discurso legitimador não só da ciência e da tecnologia como da arte. A exposição tem seis núcleos: (i) Espelhos e refelexões; (ii) Fragmentos e anatomias; (iii) Compôr, cuidar e tratar; (iv) Fluídos, circulação e imagens; (v) Observar, medir, temporizar; (vi) Ver o 'invisível'. Ao domingo de manhã, a visita ao msueu (e a esta exposição temporária) é gratuita.
De entre outras peças raras, vai aqui o meu destaque para um exemplar do De Humani Corporis Fabrica, do belga Andrea Vesalius (a 2ª edição, Pádua, 1555), uma obra-prima bibliográfica da Renascença e também uma obra decisiva para o desenvolvimento da anatomia e da cirurgia. Julgo que faça parte do espólio da antiga Escola Médico-Cirúrgica de Lisboa (1836-1911). Por outro lado, é também notável o quadro que descreve e explica as experiências levadas a cabo por Egas Moniz e a sua equipa, e que contribuiram para o avanço das neurociências. Recorde-se que em 26 de Junho de 1927, foi feito pela primeira vez nuyms er humano vivo um exame radiográfico dos vasos sanguíneos cerebrais. Destaco ainda, e por fim, o tratamento museológico que foi dado uma desconjuntada e carcomida escultura em madeira do Séc. XIV, representando Cristo (Núcleo 3 - Compôr, cuidar, tratar): conforme se diz no guia da exposição, trata-se de "uma escultura 'doente', em fase terminal, submetida a tratamento museológico paliativo (...), que permite reflectir sobre o conceito de humanidade no próprioo acto de cuidar das obras de arte".
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