24 junho 2005

Guiné 69/71 - LXXVII: O que (não) diziam os nossos aerogramas (1)

1. Extractos do que se dizia nos aerogramas. Só algumas coisas, claro, de alguns que consegui recuperar. Abraço. Marques Lopes

Geba. 3.5.67

" (...) Por cá tenho andado. Tenho andado muito pelo mato. Tem de ser assim, já estive quase um dia inteiro emboscado no mato. A vida aqui é muito dura, pior que tudo é que um indivíduo pode dar em chalado. Agora é que eu vejo como é fácil dar em maluco. Por um lado, o clima já não ajuda muito, por outro há muitos problemas e muitas situações difíceis que nos fazem perder a cabeça. Há dais emq ue quase se anda à porrada (...)".

2. Resposta ao Marques Lopes:

Ora aí está um material que tem sido pouco ou nada explorado… Eu não tenho nem um dos meus… Escrevia pouco, não tinha madrinhas de guerra… E receava estar a ser vigiado pela PIDE/DGS… Escrevi cartas só para o meu diário… Cartas a amigos que nunca cheguei a pôr no correio… Patético!

Em contrapartida tinha acesso, mais tarde, uma colecção de cartas e aerogramas, recebidos pela minha mulher, como madrinha de guerra; e outra, dos recebidos e enviados por um cunhado meu... Há alguns documentos interessantes.

Talvez valesse a pena pedirmos à nossa tertúlia de ex-combatentes da Guiné para recuperar e divulgar alguns dos aerogramas, recebidos ou enviados, com notícias, apontamentos, estados de alma, etc., que traduzissem de certo modo a época, as alegrias e as tristezas dos combatentes, as preocupações da população na rectaguarda, a milhares de quilómetros de distância...

Já escrevi sobre este assunto, em post de 23 de Abril de 2005 > Guiné 69/71 - I: Saudosa(s) madrinha(s) de guerra.

A maioria dos soldados correspondia-se, em média, com uma meia dúzia de madrinhas de guerra, para além dos seus familiares e amigos. Em treze anos de guerra, cerca de um milhão soldados terá escrito perto mais de 500 milhões de cartas e aerogramas erecebido outro tanto.

Lemrbo que, no nosso tempo, o aerograma também era conhecido por corta-capim, já que o correio era, muitas vezes distribuído em cima de uma viatura, e o aerograma lançado por cima das cabeças dos soldados, à maneira de um boomerang. Os aerogramas foram uma criação do Movimento Nacional Feminino, dirigida pela célebre Cecília Supico Pinto desde 1961, e o seu transporte era assegurado pela TAP ("uma oferta da TAP aos soldados de Portugal").

Os aerogramas também foram usados na guerra da propaganda do regime, ostentando carimbos de correio com dizeres como "Povo unido, paz e progresso", "Povo português, povo africano", "Os inimigos da Pátria renunciarão" ou "Muitas raças, uma Nação, Portugal" (vd. Graça, L. - Memória da guerra colonial: querida madrinha. O Jornal. 15 de Maio de 1981).

Luís Graça.

3. Resposta do Marques Lopes:

Esses que vos enviei são alguns que consegui recuperar, tinha-os enviado à minha irmã.

Também não enviei muitos, porque não tinha nada mais que contar a não ser aquela desgraçada vida do nosso dia-a-dia de guerreiros. Enviei mais a uma madrinha de guerra, que acabou por ser minha mulher, mais tarde. Só que, quando nos divorciámos há vinta anos, ela deitou tudo ao lixo. Com muita pena minha, porque é verdade que muita da minha vivência na guerra foi expressa nesses aerogramas, muitos dos meus sentimentos e medos foram neles retratados, muitos desejos de fim para aquilo tudo eu pus naqueles papéis.

De acordo que os nossos tertuliantes vasculhem esse material, documentos importantes para o retrato da nossa vida naquele período.

A Diana Andringa mostrou-se interessada em conhecer o blogue. Já lhe dei as indicações para o fazer.

4. Comentário de L.G.:

Meu caro António: A vida não foi fácil para nós, que fomos apanhados na rede… como um cão (é uma imagem, obsessiva, do meu diário). É uma geração, a nossa, marcada a ferro e fogo, na carne e na alma. Por isso é bom podermos escrever e falar… em voz alta. Já ninguém nos entende, a não ser nós próprios…

Nos aerogramas não dizíamos nada, ou quase nada. Ficava muita coisa por dizer... Ou então escrevíamaos nas entrelinhas... Quando eu escrevia (basicamente è família, aos meus pais, às minhas irmãs…), fazia-o com irregularidade. Nunca lhes transmiti sentimentos negativos. Nunca lhes disse a verdade. E as fotos, que seguiam em anexo, procuravam sobretudo ser tranquilizantes: Estou vivo, estou bem, graças a Deus... Não se preocupem comigo!

Mas, tirando as nossas famílias, quem mais se preocupava connosco ? A guerra era bem lá longe, mesmo para os filhos da puta dos tugas (grndes colonos, grandes comerciantes, administradores, políticos, generais…) que gozavam as delícias do sistema em Bissau, em Luanda, em Lourenço Marques… Um dia destes temos que revisitar (e reler) esses aerogramas. A minha colecção (umas centenas) está no sótão (...).

PS – A Dina será bem vinda à nossa tertúlia…

5. Ao convite e o desafio para recuperar os nossos velhos aerogramas aqui ficam, endereçados a todo o pessoal da tertúlia de ex-combatentes da Guiné.

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