30 maio 2006

Guiné 63/74- DCCCXVIII: Confissões de um pacifista: A minha paixão pela bela Kalash (João Tunes)

Guiné > Canjadude > 1974 > Posto de controlo do PAIGC, vendo-se um grupo de guerrilheiros armados com duas armas míticas e temíveis: a Ak 47 ou Kalash e o LGFog RPG-7.

Fonte: João Carvalho / Wikipédia > Guerra do Ultramar (2006) (com a devida vénia...)

Texto do João Tunes:

Caro Luís e restantes estimados tertulianos,

Reconheço que os meus últimos textos foram veementes e tanto que até pode ter parecido que estava zangado ou sofrendo de um pico do apanhanço. Nada disso.

Mas para não me fixarem pelo mau feitio com que vim ao mundo e o mundo me deu razões para assanhar, sinto-me na obrigação de aliviar agruras e crispações, contribuindo com um texto alegre e bem disposto, a modos que ligeiro e de boa digestão, contribuindo modestamente para a concórdia e fraternal convívio desta estimadíssima tertúlia em que cada qual tem a nobreza de pensar pela sua cabeça sem necessidade de meter tapa-chamas no escape do pensamento, sabendo que a razão se encontra algures entre todas as razões. O que não evita, pelo contrário, a boa disposição neste quartel aprumado já com a caserna a deitar por fora mas sempre com a porta de armas franqueada para que mais um qualquer velho e reformado guerreiro abanque na parada, na messe, no bar, numa guarita de sentinela, no campo de tiro ou onde lhe aprouver na guerreira gana.

Assim, falo-vos hoje de um tema bem disposto e que se prende com a minha última leitura. Que tem a ver com um assunto que, julgo, em todos está a memória bem agarrada - uma espingarda. E julgo que tema mais alegre não haverá no mundo, mesmo que saído de um premiado criativo do humorismo. Por mim, falar em espingardas dá-me vontade de rir (não de atirar!). Fico bem disposto, tornando-me mais sociável e brincalhão ao som do lembrado símbolo tá-tá-tá-tá. Enfim, sou um pacífico e um pacifista, com um gosto discutível, como todos os gostos, pelo tá-tá-tá-tá. Sou não, ERA, mas isso fica mais para o fim.

Certo é que as espingardas matam. E, em certas circunstâncias, até matam muito. Noutras vezes (as mais das vezes?) até matam quem não devem e estão em mãos que deviam estar quietas e não a disparar. Mas, já antes das espingardas, era assim. A guerra e a morte são mais velhas que as espingardas. As espingardas, culpa única, vieram foi ajudar a ganhar ou perder guerras justas ou injustas. E a melhor de todas as espingardas o que acrescenta, às outras não tão boas, às guerras e à morte, é matarem ainda mais e ainda melhor que as outras espingardas, permitindo, infelizmente, mais guerras e mais mortes. Além de terem um tá-tá-tá-tá diferente, um som personalizado e que fica melhor no ouvido, uma marca sonora que a distingue na fidalguia da qualidade. Até podendo ser, caso talvez de perfídia estética, uma coisa bonita de se ver e agradável no mexer. Em caso extremo, se for verdade que a guerra comporta muito de sexualidades reprimidas ao serviço de um grupo, uma espingarda nas mãos até terá o seu toque erótico, um género de sucedâneo prolongado de um pénis mortífero em erecção sempre pronta, uma volúpia na dialéctica entre a vida e a morte, coisa que dizem os entendidos, o acto sexual também será.

Lamento decepcionar os decepcionáveis, mas não falo da nossa querida G3 (bem boa e grata espingarda!), a nossa noiva de comissão fardada, a noiva com que nos casaram á força (tirando o caso dos chicos), a companhia que não nos faltou. Falo, antes, da espingarda automática (a chamada espingarda de assalto), infelizmente rival da nossa querida G3, a espingarda mais apreciada, usada e difundida no mundo - a famosíssima Kalachnikov, por vezes tratada carinhosamente pelo terno diminutivo de Kalach. Ou, respeitando a nomenclatura oficial, pela burocrática designação de AK-47 [em que AK é a abreviatura de Espingarda de Assalto Kalachnikov e 47 refere o ano do início da sua produção na ex-URSS (ainda com o Pai dos Povos em forma quanto a saúde, mando e despotismo)].

O certo é que a Kalach é unanimemente, independentemente de a usar ou ser por ela alvejado, considerada a maravilha máxima, em tecnologia, em concepção, em eficácia e na beleza das linhas, entre as espingardas jamais dadas ao mundo desde que, ao mundo, a Kalach veio parar. Vejam que até Bin Laden, que nas escolhas não parece ser parvo, não dispensa sentar uma Kalach ao colo das saias quando aparece naqueles vídeos para assustar os americanos e o resto do mundo. E não haverá guerreiro ou guerrilheiro, contra-guerrilheiro também, que não gostasse de ter uma Kalach para combater. Ainda é assim e ininterruptamente desde que apareceu a sua primeira versão em 1947 por mor de decreto presidencial do Zé dos Bigodes e génio de um obscuro inventor (até à Perestroika, a sua identidade era secreta por ser considerada segredo de Estado).

Nunca escondi a minha curiosidade, admiração e inveja, uma espécie de fascínio castrado por nunca lhe ter pegado, desde que me foi dado ouvi-la e vê-la do outro lado, o lado dos patriotas guineenses. Porque quanto à Kalach, fotos à parte, só lhe conheci o tá-tá-tá-tá muito próprio. Para acalmar esta minha obsessão, tenho procurado, persistentemente, saber mais e mais sobre o nascimento, vida e obra da Kalach.

Finalmente, um livro encheu-me as medidas, tanto que me esgotou o interesse por tudo quanto seja espingarda (o que já não era sem tempo, bolas, sempre foram 37 anos a pensar no raio de uma espingarda!). Agora sim, livre da obsessão e no sortilégio da Kalach posso, finalmente, sentir-me livre e solto para me dedicar a grandes e boas causas - contra a exclusão social (fazendo corpo de combate com o Presidente Aníbal), a ajuda aos pobres (talvez militando num Confissão com capela aberta), a defesa do ambiente, a luta contra o tabagismo (tentando fumá-los todos para que não sobre um que seja e faça mal ao meu semelhante, activo ou passivo), a homofobia, o racismo e a xenofobia, o fim da violência doméstica mais a pública, a luta contra a gripe das aves e tudo quanto seja a boa conservação e melhoria da saúde pública. Causas assim ou parecidas. Boas causas. Só boas causas. Com o terminar súbito e dorido da paixão para com uma espingarda. O que um livro consegue, deus nosso!

O livro a que me refiro é uma pequena autobiografia do inventor da Kalachnikov (*), recentemente editada em Portugal, o qual, para não destoar, se chamava Kalachnikov também. Isto é, a espingarda chamou-se Kalachnikov porque o seu autor assim se chamava. A vida do sujeito, ainda vivo e activo (contando 83/85 anos), teve uma trajectória interessantíssima, tirando a parte balhelhas como o homem pensa a política e o mundo de hoje, pois ajuda a entender o prodígio e a odisseia de um sargento autodidacta ter concebido aquilo que os sábios, cientistas, engenheiros, ali ou noutra parte do mundo, nunca chegaram - a maravilha da espingarda leve, fiável, segura, resistindo a todas as poluições, bonita, fácil de desmontar e de fabricar, uma espécie de anjo da morte e da guerra (1).

Como disse, vencido o amor enciumado e tortuoso (enquanto traição à nossa querida G3) pela bela Kalach, não quero mais saber de espingardas. Agora sim, serei o pacífico e o pacifista perfeitos. Tentarei, pelo menos.

Toda a paz e harmonia para todos os estimados tertulianos. E nada de guerras ou espingardas, são os meus votos de termo (2).

Um abraço grande para ti, camarada e amigo Luís, nosso ilustre Comandante.
_________

(*) Kalachnikov, autobiografia do inventor da mais famosa metralhadora do mundo, Mikhail Kalachnikov (com Elena Joly), Ed. Terramar.

Notas de L.G.:

(1) Sobre o autor, vd. artigo, em português, na Wikipedia > Mikail Kalshnikov e sobre a própria AK-47

Ver também, o site oficial russo da Ak 47, em inglês.


(2) Sobre este tópico, vd. posts dos nossos tertulianos:

17 de Maio de 2005 > Guiné 69/71 - XX: "Foi você que pediu uma kalash?" (David Guimarães)

(...) "Pois, é verdade, aquele matraquear esquisito das Kalashnikov... Nas emboscadas nunca se sabia onde estavam elas, se à frente se por detrás de nós. Só quando já se tinha experiência de guerra conseguíamos distinguir bem [o som da kalash]...Era um estampido bem diferente das nossas G3... Mas, afinal, quem não sentiu isso?!" (...)

29 de Novembro de 2005 > Guiné 63/74 - CCCXX: A professora de Samba Culo (A. Marques Lopes)

(...) "Está a ficar noite e tenho três horas para chegar a Bissau. Cinc, prépare le jeep, nous en allons tout de suite. Sabes, professora, porque é que o meu condutor se chama Cinco? Nasceu no dia 5 de Maio e é o quinto filho de sua mãe, que decidiu dar-lhe esse nome tão significativo. Não, não te preocupes que ele não percebeu nada da nossa conversa, além do crioulo só sabe francês, pois frequentou apenas uma escola em Dakar. É que, professora, nasceu há 23 anos, muito depois daquele dia em que tive de te abrir o ventre com uma rajada de G3 por te ver empunhar a Kalash que tinhas pendurada no quadro da escola. Ele não estava aqui entre os teus meninos. Se tivesse estado, saberia falar e escrever português, com certeza. Sei que foste uma boa professora. Vi que escrevias no quadro as palavras com o desenho correspondente para os teus alunos identificarem bem em português os objectos do seu dia-a-dia. Vi os livros por onde aprendiam a ler, vi os cadernos de redacção e de cópias. Está descansada, não matei nenhum deles, garanto-te. Devem estar por aí, cidadãos do teu país" (...).

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