© José Martins (2006)
Caros camaradas
Com o aproximar das celebrações Marianas, envio um texto, de REFREGA (livro meu de memórias, não publicado) que relembra uma procissão em Canjadude (1) em 1969, ou seja, há 37 anos.
Um Abraço
José Martins
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PROCISSÃO EM CANJADUDE
Todas as unidades a nível de batalhão ou escalão superior incluíam no seu quadro de pessoal um sacerdote católico romano que, depois de uma breve instrução militar na Academia Militar e graduado no posto de Alferes, acompanhava as unidades combatentes para África, para as apoiar moral e religiosamente durante a sua comissão de serviço (2).
Na zona onde se encontrava a minha companhia, Nova Lamego, o capelão do batalhão ali estacionado e que dirigia a actividade daquele sector, era o padre Libório, natural dos Açores, que, na sua missão de visitas de rotina a todos os destacamentos da área do Batalhão, se encontrava a passar uns tempos em Canjadude.
Na manhã de 12 de Maio de 1969, logo ao pequeno almoço, confidenciou que gostaria de fazer uma cerimónia especial nesse dia, já que se celebrava o 51º aniversário da primeira aparição, em Fátima, de Nossa Senhora aos pastorinhos.
Não seria necessário repetir. Com a amizade e respeito que todos nutriam por ele e, ainda na sua qualidade de hóspede, os seus desejos eram ordens para qualquer um dos militares, independentemente do posto e mesmo posicionamento perante a religião. O que se iria realizar, e cujos planos e preparativos ali mesmo começaram a ser traçados, iria exceder a expectativa, não só do capelão, mas de todos os que assistiram.
Um pequeno barril de vinho foi serrado ao meio para, com a ajuda de duas varas, servir de base ao andor. Esta base foi revestida de verduras, já que não havia flores para ornamentar o andor. Para servir de base à imagem, e para a fazer sobressair sobre o rebordo da meia pipa, foi colocada uma pilha de um emissor/receptor AN-PRC/10 que com as medidas de 25x25x6 centímetros, mais ou menos, e que também serviu para alimentar um pequeno projector com que a imagem foi iluminada.
Este projector eram restos de um bombardeiro T-6 que se tinha despenhado numa zona próxima do destacamento e que a companhia tinha ajudado os mecânicos da Força Aérea a retirar do local e que por ali ficou, com outros destroços irrecuperáveis.
Se nos outros dias se notava uma necessidade louca que o tempo voasse para riscar mais um dia do calendário, aquele dia parecia que nunca mais passava. Notava-se alguma agitação em todos os rostos.
Ao jantar, e ainda que o dia ainda fosse bastante claro, já os militares se apresentavam com fardas lavadas, antecipando o momento de se incorporarem na procissão.
Quando a noite caiu, o padre Libório paramentou-se e deu início à cerimónia. Depois de uma breve alocução que serviu não só como preparação para os católicos, mas fundamentalmente como explicação para os muçulmanos que estivessem presentes, deu início à procissão.
Na frente, a abrir, seguiam as flâmulas dos pelotões da companhia. Seguiam-se os fiéis, com as suas velas acesas, o andor iluminado de Nossa Senhora, logo seguido do sacerdote que ia dirigindo as orações e cânticos.
A procissão saiu do edifício onde estava instalado o Comando e outros serviços, e iria percorrer uma área interna do destacamento, onde não houvesse o perigo de queda na rede de valas que ligavam os vários abrigos.
Calmamente e sem que tal estivesse previsto, os elementos que abriam o cortejo digiram-se para o cavalo de frisa que separava a parte militar da parte civil, entrando na tabanca pelo caminho que a atravessava.
Rezando e cantando, a procissão percorreu o caminho que levava à porta sul, tantas vezes percorrido pelas patrulhas quando se dirigiam para efectuarem operações para aqueles lados. Chegando ao fim do caminho, circundou uma árvore enorme, à sombra da qual se davam reuniam os homens grandes, regressando pelo mesmo caminho até ao aquartelamento.
Se no percurso de ida o caminho estava ladeado pela população que tinha acorrido, não só atraído pelas ladainhas e cânticos, mas também pelo cortejo de luz que as velas proporcionavam, no regresso pouca gente se via. Poucas pessoas estavam a ladear o caminho.
Feitas as orações finais e quando o padre Libório se voltou para os militares para proferir a despedida, ficou surpreso, direi mesmo espantado. Na sua frente estavam quase todos os habitantes civis que, tendo à frente os seus sacerdotes, com os seus terços, rezando a Alá, se foram integrando no cortejo, fazendo daquela procissão, um acto ecuménico espontâneo.
Terminada a cerimónia, os homens grandes dirigiram-se ao padre e ao comandante para partir mantanha (cumprimentar), dizendo que tinha sido um grande ronco (festa).
Quando todos começaram a dispersar, a foco de luz que iluminava a imagem da Santa apagou-se subitamente, como que a lembrar-nos que naquele local, em pleno mato africano, a par da devoção, que tínhamos acabado de demonstrar, havia a obrigação, ou seja, teríamos que voltar a vestir a pele de soldados e regressar às nossas tarefas.
José Martins
Ex-Furriel Miliciano de Transmissões
CCAÇ 5, Canjadude (1968/70)
26 de Agosto de 2002
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Notas de L.G.
(1) Canjadude: ficava entre Nova Lamego (Gabu Sara) e Cheche, no Rio Corubal.
(2) A experiência de capelania nem sempre correu bem, do ponto de vista do Exéricto e da Igreja Católica...
Já aqui citámos dois casos de capelões, expulsos do exército:
(i) O Padre Poím (Bambadinca, BART 2917, 1970/72)
(ii) e o Padre Mário (mais tarde conhecido como Padre Mário da Xira) (Mansoa, BCAÇ 1912, 1967/1968): vd post de 27 de Junho de 2005 > Guiné 60/71 - LXXXV: Antologia (5): Capelão Militar em Mansoa (Padre Mário da Lixa)
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