15 dezembro 2003

Saúde & Segurança do Trabalho – XIV: Medicina do trabalho à peça e ao acto

O modelo do relatório anual da actividade dos serviços de SH&ST, aprovado pela Portaria n.º 1184/2002, de 29 de Agosto de 2002, dedica uma página inteira à discriminação e à contabilidade do número de exames de admissão, periódicos e ocasionais, desagregados por escalão etário.

Pede-se além disso a discriminação dos exames complementares realizados por tipo de exame (sangue, urina, raio X ao tórax, audiograma, etc.), incluindo o número de exames exigidos por legislação específica (por ex., trabalhadores expostos a determinados substâncias perigosas como o chumbo ou o cloreto de vinilo monómero).

É legítimo (e sobretudo é relevante) interrogarmo-nos sobre a utilidade desta informação, aparentemente só de interesse estatístico-administrativo para a tutela (a administração do trabalho e da saúde). Quem vai fazer uso desta informação e para que efeitos ? A Inpecção geral do Trabalho, a Direcção Geral de Saúde, o Departamento de Estudos, Estatísticas e Planeamento (DEEP) do Ministério da Segurança Social e do Trabalho ? Que garantias de validade e fiabilidade são dadas pelas empresas e estabelecimentos em relação a este e outros itens de informação ?

Além disso, há um crescente consenso na literatura científica sobre (i) o alcance e os limites deste tipo de exames médicos periódicos massificados e (ii) as vantagens da realização de exames mais personalizados e selectivos dos trabalhadores, em função não apenas dos riscos profissionais específicos a que estão expostos mas também dos seus estilos de vida e de trabalho (workstyles & lifestyles), história clínica e profissional, estado de saúde, etc.

A hipervalorização dos exames médicos representa uma armadilha para o próprio médico do trabalho e para a equipa de saúde ocupacional, no caso de esta existir. De facto, corre-se o risco de se limitar, entre nós, o exercício da medicina do trabalho à realização dos exames médicos (não confundir com exames de saúde), com todas as consequências perversas que isso implica.

Uma delas é a desvalorização de outras actividades (nobres) do médico do trabalho (por ex., visita aos locais de trabalho, reuniões com os representantes dos empregadores e dos trabalhadores, direcção técnica e/ou gestão do serviço de saúde/medicina do trabalho, envolvimento na concepção, planeamento, implementação e avaliação da política de saúde no trabalho); outra, não menos perversa, é o pagamento ao acto, à peça ou à hora, tendência que de resto se está a impor no mercado, devido à concorrência (desleal) entre muitas das empresas prestadoras de serviços externos de saúde/medicina do trabalho e/ou de segurança e higiene do trabalho...

É a total mercantilização da medicina do trabalho, a que se seguirá (se é que não está já em marcha...) um processo de racionalização técnico-burocrática da prática dos médicos do trabalho.

Uma terceira consequência, talvez ainda mais grave, é o risco de liquidação de toda e qualquer tentativa de organização e funcionamento da equipa de saúde ocupacional, multidisciplinar e multiprofissional, onde devem ter lugar, de pleno direito, o técnico e o técnico superior de segurança e higiene do trabalho, a par de outro profissionais como o enfermeiro do trabalho. É sobretudo a liquidação do futuro (que deveria ser radioso e promissor...) da saúde e segurança no trabalho neste país.

É bom que os profissionais de SH&ST pensem nisto...