11 janeiro 2004

Blogantologia(s) - VI: O adeus às armas

A guerra acabou... E depois ?



A guerra acabou e depois

os avós contarão aos netos

tintim por tintim

como foi a última batalha de Bagdade

que não chegou a haver

mas que rimava com liberdade.



Ou não contarão e arrumarão as botas.

Que os netos têm jogos mais divertidos

no último modelo da sua playstation

e já não mais têm pachorra

para aturar os cotas.



De qualquer modo foi,

disse o repórter português,

a primeira das batalhas da história

transmitidas em directo.

Uma batalha anunciada

logo com princípio meio e fim,

como no jogo do xadrez.

Uma história das arábias

onde sobraram as espadas de deus

e dos homens faltaram as palavras sábias.



Lembras-te baby

tínhamos comprado pipocas

como no cinema do nosso bairro

de classe média arruinada.

Sentámo-nos no chão

entre camelos e beduínos

à espera da queda do Saddam.



Lembro-me como se fosse hoje

estavas meio pedrada

e nós éramos coleccionadores de quedas

a última fora a do muro de Berlim

em mil nove oitenta e nove.

Regámos com vodka e coca-cola

o começo do reich dos mil anos.



Depois os soldados regressarão a casa.

E casarão. E terão filhos que vão à escola.

Ou talvez não.

Os soldados proletários

mercenários voluntários patriotas.

Os bisnetos dos escravos

das plantações de algodão do sul.

Os filhos dos imigras

de várias raças credos e nações

do grande melting pot americano.

Na fotografia tinham um ar de idiotas

usavam grandes jeans

e chapéus à texano.



Eles guardarão a espingarda

e o capacete. No sótão.

E o canhão sem recuo no jardim em Miami.

E o cartão do Tio Sam:

I wanto you for U.S. Army!











Alguns morrerão.

Talvez de solidão. Ou de tédio.

Ou de falta de fé em Deus. Ou na Humanidade.

Ou em Deus e na Humanidade ao mesmo tempo.

Ou de stresse pós-traumático de guerra

como dizem hoje os psis.



Cacimbados dirias tu meu guinéu

que no tempo da guerra colonial

estava por inventar a palavra stresse.



Morrerrão simplesmente de solidão

como as carcassas dos tanques

nos jardins suspensos da Babilónia.

Não importa ou que importa

se um dia todos temos de morrer

de uma merda qualquer

de peste sida ébola

insolação raiva insónia

bê-esse-é pneumonia atípica

cancro gás mostarda

trombose ou aperto da aorta.



O repórter de serviço diz na Têvê do Berlusconi

que esta foi a última campanha de caça

ao leão da Mesopotâmia.

Ou da Abissínia tanto faz

que o Berlusconi caga na geografia

agora com as auto-estradas da globalização.

Estranho: eu imaginava-o extinto

na época dos últimos glaciares. ao leão.



Ah! se eu não fosse um sem-abrigo

se eu não fosse um desertor da guerra colonial

se eu fosse poeta proactivo

um repórter reformado da guerra fria

com pensão cama e roupa lavada

um gajo decente com sensibilidade social

eu escreveria um grafito

no meu epitáfio no meu bunker:

Maomé meu profeta meu irmão

Estive em Badgade. Não vi nada.

Não rezei na tua mesquita azul.

Não rezei por ti nem por mim nem por nós.

Apenas tive pena do teu povo do islão

curdos xiitas sunitas árabes

e todos os outros filhos bastardos de Abraão.



Mais te direi por e-mail

que morri com um estilhaço de granada.

A meu lado um capitão dos marines

afogou-se num poço de petróleo

coberto com a bandeira dos Steites.

Era um caixa de óculos como o O’Neil

poeta portuga obscuro

que nem para contínuo serviu

do Ministério dos Negócios Estrangeiros.



Mas hão-de morrer mais.

Conta até mil e lê o jornal.

É a astróloga do ano que tudo viu

na sua bola de cristal.

Italianos dos carabineiros

espanhóis da secreta

espiões do efbiai

judeus errantes da diáspora

portugas de goa damão e diu.



Tudo por causa de um homem-bomba

que foi visto visto a sobrevoar

a Estátua da Liberdade Agrilhoada.



Mas agora és tu private Jessica Lynch

baby-doll em camuflado

a nova namoradinha

dos tele-espectadores globais.

Ou por breves instantes foste

a heroína. a heroinazinha.

Que a fama e a glória são

deusas avaras e cruéis.



Quiçá na próxima guerra te verei

ao serviço da bandeira da CNN

ou doutro xogum qualquer dos mass media

embeded com os bravos da mítica 7ª cavalaria.



No país do show business

das fábricas de sonhos e de fadas

e em que o sucesso é a medida de todas as coisas

está tudo a condizer.

Tu estás a condizer minha jóia

o Carlos Fino está a condizer.

Mais o pobre ministro da propaganda

de seu nome Mohamed Saeed al-Sahaf

que resistiu com um microfone na mão.

A GNR dos portugas em Nassíria está a condizer.

No tempo em que eramos todos telegénicos

Até o Bush my friend George , caraças!,

por deus e pelo diabo ladeado

segurava um perú de plástico

no dia de Acção de Graças.



Tu my darling minha querida

ouvi dizer que és filha

de um condutor de camião.

Uma heroína do povo sem pedigree

escriturária amanuense

anjo da guarda

carinha larocas de teen-ager

de uma qualquer terra saloia estado-unidense.

Ferida em combate por engano

sorry que numa lady americana

não se bate diz o puro sangue árabe.



Baleada mas logo resgatada

que um camarada morto ou ferido

nunca se deixa atrás

das linhas do fogo inimigo.

Muito menos já se vê

num hospital de retaguarda do eixo do mal,

diz o Pentágono.



Li nos jornais que acumulo no WC

que já te ofereceram um milhão

(de dólares entenda-se).

Queriam fazer um filme

com a história da tua vida

de heroína por equívoco.

Tu que só tens 19 anos. Não mais.

E já tanto (ou tão pouco) para contar.



Perdi-te o rasto, meu amor,

nas voltas que o mundo dá.

A guerra acabou.

O problema agora é de polícia

e do homem-bomba

ou da mulher do tchador

Adeus querida

adeus às armas

adeus Iraque.



E depois ?

Bem depois é amanhã

não há azar.

E amanhã há mais

cantemos o hino.

A vida pode parar

a vida pode esperar

a vida pode até perder-se.

O espectáculo é que não, my God!

O espectáculo esse tem de continuar.



Vou ter saudades do Carlos Fino.



Publicado originalmente em 14.4.2003 por L.G. em Fóruns do Publico.pt > Cidadania > Poesia contra a guerra. Nova edição aumentada, revista, melhorada e actualizada.



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