01 março 2004

Em Lisboa nem sangria má nem purga boa - II: Os médicos para a machamba, já!

1. À hora do almoço fico sem ideias. E sobretudo com inveja dos almoços de trabalho dos executivos das nossas empresas. Um sandocha e um sumo de fruta são o suficiente para um golden collar (colarinho dourado) que não precisa de gastar muitas calorias ao longo do dia. Contrariamente ao pobre do blue collar (colarinho azul).



Isto diz o meu nutricionista, que é também o meu personal coach em matéria de wellness. Ele trouxe a ideia da América, é uma coisa que está na moda e que vende bem: veja-se o negócio do wellness por esse país fora. Health clubs e fitness centres, é o que está a dar. E ainda bem para as fornadas de jovens que saem licenciados em ciências do desporto e artes correlativas.



Eu sei que ele, o meu personal coach, às escondidas, também é capaz de cometer os seus pecados veniais ou até capitais, como qualquer bom portuga e cristão: arroz de tamboril, cozido à portuguesa, leitão da bairrada, anho assado no forno, carne à alentejana, feijoada transmontana, bacalhau com todos, bife à Trindade e por aí fora. Mas, enfim, faz o que prega o Frei Tomás mas não faças o que ele faz.



Adiante. Para se ter uma carreira (já não há carreiras!), para se ter uma vida (que ironia!), com saúde, com qualidade, mas também repleta de vitórias, êxitos, sucessos, golos e sobretudo muito dinheiro, não precisas de comer muito. Pelo contrário: tens de ser um asceta, um calvinista dos bons...



Um país que come muito não vai longe. E sobretudo se comer acima das suas necessidades e possibilidades. Esta é, pelo menos, a minha teoria e a do meu personal coach (que inveja!, diz a minha vizinha do lado, não por comer pouco, mas por ser uma tia e não ter um personal coach).



2. Passemos a outro tipo de confissões: hoje gostaria de bater palmas aos portugas que o merec(ess)em. E creio que há tantos. Somos uma terra de talentos por descobrir, por revelar. Aliás, é o que nos resta, depois dos impérios achados e perdidos. E é o que nos vale, o que sempre nos valeu, a nossa fábrica de talentos em potência.



Não sei o que me deu, com esta de querer bater palmas a alguém melhor do que eu, mas é capaz de ser a aproximação da primavera. Ou é o espírito de caridade cristã de que tanto se fala quando pela enésima vez se debate em vão o problema da descriminalização do aborto (de que Deus nos livre!). Ou então é o princípio da doença bipolar que ataca o portuga, cuja história de vida pode ser resumida a dois momentos: os de euforia e os de depressão.



Pessoalmente, não acredito nessas estatísticas que nos põem em último lugar, em tudo ou quase tudo, e agora também em matéria de criativos por metro quadrado (poetas, músicos, inventores, artistas, cientistas, etc.). Reajo mal, patrioticamente mal (quem diria!), a esta mania masoquista que deu agora aos portugas, transformados em coleccionadores de estatísticas que os põem sempre na mó de baixo!...



Foram os jornalistas que descobriram o filão: os portugas pagam para ver, ouvir e ler notícias destas, pagam para serem exibidos em público como coitadinhos!



- Que estranho povo, o vosso!, dizem-me os nossos camaradas da Europa setentrional. E na volta traz-me lá o último disco de fado da Mísia... (Mentira: não saio deste rectângulo da península ibérica desde o triunfo do euro sobre o escudo! Veio o euro e foi-se o meu poder de compra, a mobilidade sócio-espacial, a liberdade de circulação pelas auto-estradas da eurolândia...).



Felizmente que a criatividade também é como a economia: há uma, subterrânea, informal, paralela, clandestina... Descubro-a todos os dias na capacidade inventativa dos portugas, no seu sentido secular de desenrascanço, de sobrevivência, de viver à tona de água... Arte de marinheiro, de maçarico, de mouro levado à força para todo o serviço nas naus do mundo a haver...



E depois é mais fácil reparar nela (a dita criatividade) quando os portugas oferecem os seus talentos à estranja ou brilham na estranja: veja-se o caso do mal amado António Lobo Antunes, do mal tratado Zé Saramago, para não falar já da real sereníssima Sophia (de Mello Breyner Andresen), do futuro Prémio Nobel da Medicina António Damásio, do citadíssimo António Coutinho, do grande Figo, da fabulosa Paula Rego, do fantástico Eduardo Serra, da belíssima Mariza, da mozartiana Maria João Pires e de tantos outros, uns mais conhecidos, outros menos, cá dentro.



O nosso cientista mais famoso ou pelo menos mais citado (450 referências nas melhores revistas de genética, imunologia, biologia e outras ciências duras), por exemplo: não sei onde li, talvez no Expresso, o jornal do nosso regime demoliberal. Ele teve uma ideia original para reformar o ensino médico em Portugal: (i) mandar os estudantes de medicina limpar o cu aos doentes, substituindo durante um ano os enfermeiros que delegam estas tarefas menos nobres da prestação de cuidados nos chamados auxiliares de acção médica que, por sua vez, delegam nos familiares dos doentes, na hora das visitas que até vai passar a ser de 24 horas por dia, tal como nos hospitais de Luanda; e, paralelamente, (ii) pôr os professores de medicina a dar aulas de ciências sociais e humanas, de modo a aumentar a taxa de turnover, a mobilidade dos genes e, portanto, melhorar a pool genética da Universidade Portuguesa.



Ele, o nosso cientista mais citado em todo o mundo, está particulamente preocupado com a elevada taxa de consanguinidade (95%) da massa cinzenta que ensina (e alguma, pouca, que investiga) nas universidades dos portugas: os profs são todos filhos, legítimos ou bastardos, uns dos outros! Ora aqui está um ponto (sério) para uma discussão (a sério): a endogamia da universidade e do seu clero, a par dos métodos pedagógicos usados nas faculdades de medicina.



Shortly, precisamos de um verdadeiro método para ensinar medicina aos mancebos: aí estamos de acordo, que a memorização dos manuais de anatomia, fisiologia, bioquímica e genética não chega para fazer um bom médico, um bom clínico. Dir-me-ão que o homem é um biólogo, um fundamentalista, um médico não clínico, e que esta não passa de uma nova versão de um velho conflito de paradigmas. Seja como for, é uma voz autorizada e muito respeitável de um estrangeirado. Tal como Luís Verney ou Sanches Ribeiro no Século das Luzes...



Quanto aos aspirantes a médicos (e os demais estudantes das outras profissões científicas e técnicas, desde os engenheiros aos magistrados) eu também acho que lhes fazia bem pelo menos um dia por ano na machamba. Como em Moçambique no tempo do grande líder Samora Machel. Por uma razão simples: para que as elites portuguesas de amanhã não tenham, como no passado, desprezo pelo trabalho manual. E saibem o que é um campuna (uma espécie em vias de extinção).



3. Confesso que eu hoje queria bater palmas aos portugas. Mas estou sem ideias. Pode ser que amanhã tenha mais algumas (ideias) sobre isso: (i) a razão de não ter hoje ideias nenhumas; ou (ii) o facto de não me ocorrer um portuga a quem bater palmas para além do nosso cientista mais citado em todo o mundo. Falando sério: ele, o António Coutinho, o director do Instituto Gulbenkian de Ciência, é o único a quem me ocorre, hoje, a esta hora, bater palmas. Os portugas deveriam ter orgulho num cientista como ele. Em contapartida, muito poucos, o conhecem.



Foi pena o grande director de fotografia que é o Eduadrdo Serra, não ter ganho o Óscar da Academia. Fiquei decepcionado. Diziam-me que estava quase no papo. Aqueles américas são uns etnocêntricos! Se calhar falhou a nossa empresa de lobbying ou o nosso agente em Hollywood. Ou a máquina de guerra do Ministério dos Negócios Extrangeiros que se devia ocupar mais dos portugas da diáspora e da promoção da portugalidade (ó blogador, até pareces o ministro da defesa Paulo Portas a falar às tropas!).



De qualquer modo, foi importante descobrir-se mais um portuga que é bom no que faz. A nível mundial, repare-se. Refiro-me ao director de fotografia do filme europeu A rapariga com brinco de pérola. Um filme, aliás, que eu, blogador, recomendo aos consumidores do blogue-fora-nada. Por ser europeu. Pela fotografia. Pela época, que eu adoro: a idade de ouro da burguesia mercantil e financeira holandesa (meados do Séc. XVII). E, claro, do Vermeer. A rapariga do brinco de pérola vale bem a Gioconda e o nosso Museu das Janelas Verdes (que enormidade!)...



4. Mas a hora, agora, meus senhores, é dos gestores e dos empresários. São eles que estão sob as luzes da ribalta. São eles as primas donas. São eles de quem se espera a salvação da mãe-mátria. Nunca como agora se ouviu tanto dizer quanto é preciso empresarializar, gerir como uma empresa, gerir tout court: tudo, o país, os portugas, os hospitais, as escolas, a universidade, as empresas públicas, as câmaras municipais, o canil camarário, a junta de freguesia, a recolha do lixo, os sem-abrigo, as prisões, quiçá até as forças armadas, os submarinos, o ministério público e os tribunais. Os clubes de futebol foram os primeiros a dar o exemplo. E não é por acaso que, à falta de melhor, a bola é agora o motor da nossa economia.



A gestão está definitivamente na moda. Meus senhores, passou a época dos revolucionários, dos baladeiros, dos reformadores, dos políticos, dos juristas, dos engenheiros e até dos economistas. Agora o que é preciso é saber criar riqueza. E para isso estão cá os gestores.



A frase que eu tenho mais ouvido, no ano do festivaleiro Euro 2004, é lapidar a este respeito: "é tudo uma questão de organização!"... Cem anos depois, imaginem!, da santíssima trindade Weber, Taylor & Fayol que está na origem do scientific management... Só nunca percebi como é que os portugas descobriram o caminho marítimo para a Índia, chegaram ao Brasil e aportaram ao Japão...

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