11 maio 2004

Blogantologia(s) - XI: Guerra Colonial: Cancioneiro do Niassa (1)

1. No final dos anos sessenta, no norte de Moçambique, na região do Niassa, os soldados portuguesas entoavam fados e canções que relatavam as alegrias e as tristezas do seu quotidiano de guerra. O registo era, umas vezes, de bravata e paródia, e outras vezes mais triste e intimista... Era uma forma de exorcizar a angústia das emboscadas e das minas, de lidar com o stresse, de manter viva a ligação com a sua terra natal, de reforçar o seu espírito de corpo como combatentes e até de certo modo humanizar uma guerra que não parecia ter uma solução militar à vista. Nas letras dessas músicas podia-se inclusive descortinar sinais de contestação e até de resistência, sinais esses que minavam o moral das tropas e a vontade de combater.



O mesmo se passava, de resto, noutras frentes de guerra, como a Guiné, como eu posso testemunhar pela minha própria experiência pessoal: as longas noites da Guiné eram passadas, muitas vezes, entre muitos copos de uísque, cerveja, intermináveis jogos de lerpa e longas sessões de fados, baladas e outras canções (com o Manuel Freire à cabeça, seguido do Zeca Afonso, do Adriano Correia de Oliveira, dos Beatles, do Bob Dylan, do Donovan e de tantos outros...): "Eles não sabem nem sonham/ Que o sonho comanda a vida...", era uma das nossas preferidas, sendo cantada e acompanhada à viola com um misto de saudades da nossa terra e de rebeldia contra o aparelho político-militar.



Vários poetas e versejadores, de maior ou menor talento, pertencentes aos três ramos das forças armadas, contribuiram anonimamente para aquilo a que depois se veio a chamar o Cancioneiro do Niassa. As letras eram acompanhadas por melodias em voga na época, incluindo tangos e fados, tradicionais ou não, ainda hoje facilmente reconhecíveis (por ex., A Casa da Marquinhas, de Alfredo Marceneiro, ou a Júlia Florista, da Amália). O seu interesse não é literário mas sim documental, socioantropológico.



2. Aqui fica uma selecção de algumas das Canções do Niassa, com parabéns ao J.M.A. Santos pelo seu notável trabalho de recolha, preservação e divulgação desta documentação tão efémera mas tão importante para a sociologia histórica da guerra colonial, incluindo o estudo das representações sociais do turra, o invisível e obíquo inimigo que combatíamos em Moçambique, Angola e Guiné. No total a recolha de J.M. A. Santos ultrapassa as 40 canções, disponíveis no seu site:



Página de J. M. A. Santos > Guerra Colonial Portuguesa > Canções do Niassa (O Jorge Santos fez parte da 4ª Companhia de Fuzileiros e esteve no Niassa entre 1968 e 1970).



3. Há uma edição discográfica das Canções do Niassa, que resultaram da colaboração do actor João Maria Pinto (que no início da década de 1970 fez, com um grupo de amigos, as primeiras gravações do Cancioneiro do Niassa, vendendo depois as 'cassetes piratas' aos soldados recém chegados) e ao produtor Laurent Filipe: Canções proibidas: O Cancioneiro do Niassa. Lisboa: EMI - Valentim de Carvalho, Música, Lda. 1999. CD. 7243 5 20797 2 8.



Foram seleccionadas e gravadas 13 canções, cantadas pelo João Maria Pinto e seus convidados (entre outros, Carlos do Carmo, Rui Veloso, Paulo Carvalho, Janita Salomé, João Afonso): 1. Ventos de Guerra - João Maria Pinto/Rui Veloso; 2. Taberna do Diabo - João Maria Pinto/Gouveia Ferreira; 3. Fado do Checa - Paulo de Carvalho; 4. O Turra das Minas - João Maria Pinto/Rui Veloso; 5. Erva Lá Na Picada - João Maria Pinto/Janita Salomé; 6. Luta p'la Vida - João Maria Pinto; 7. Neutel d'Abreu - João Maria Pinto/Mariana Abrunheiro; 8. Bocas Bocas - Lura, João Maria Pinto/Mingo Rangel; 9. Fado do Miliciano - Janita Salomé; 10. O Fado do desertor - Carlos do Carmo; 11. O fado do Antoninho - Teresa Tapadas; 12. Hino de Vila Cabral - Carlos Macedo/João Maria Pinto; 13. O Hino do Lunho - João Maria Pinto e outros (João Afonso, Ana Picoito, Tetvocal...).



Destas 13 canções, apenas se conhecem os autores de duas: Gouveia Ferreira (Taberna do Diabo) e Carlos Macedo (Hino de Vila Cabral).





4. Antologia de canções do Niassa:



Ei-los que Partem



I

Ei-los que partem, olhos molhados,

Coração triste, mochila às costas,

Adeus aos seus entes amados.

Ei-los que partem, olhos molhados.



II

Virão um dia, ricos ou não,

Contando histórias da sua guerra

Onde a dor se fez em pão.

Virão um dia, ricos ou não.



III

Ei-los que partem, olhos cansados,

Já estão no fim da comissão,

Alguns doentes e aleijados.

Ei-los que partem, pobres soldados,

Ei-los que partem, pobres soldados,

Ei-los que partem, pobres soldados.



Comentário de L.G.: É uma adaptação de uma conhecida balada de Manuel Freire.





Fado do Turra



I

Se de mim nada consegues,

Não sei porque me persegues

Constantemente no mato!

Sabes bem que sou ladino,

Que tenho um andar muito fino,

E me escapo como um rato!



II

Lá porque és branco e pedante,

Pretendes ser arrogante,

Por capricho e altivez!

Eu que tenho sido pobre,

Mas que tenho a alma nobre

Talvez te lixe de vez!



III

Como ando sempre alerta,

Tua arma não me acerta,

Nem me deixa atrapalhado!

E assim, num breve instante,

Por mais que andes vigilante,

Tu serás sempre emboscado!



IV

Por isso toma cuidado!

E não me venhas com o teu fado

Dizer que branco é melhor.

Eu já muito codilhado,

Estou sempre desconfiado,

E irás desta p'ra pior.



Comentário de J.M.A. Santos: "Outro fado de humor, em que o autor põe o turra a falar". Comentário: Julgo reconhecer nesta letra o belíssimo fado do Alfredo Marceneiro, Não venhas tarde.





Poema do Militante



Mãe,

Eu tenho uma espingarda de ferro!

O teu filho,

Aquele a quem um dia viste acorrentarem

E choraste,

Como se as correntes prendessem e ferissem

As tuas mãos e os teus pés,

O teu filho já é livre, Mãe!



O teu filho tem uma espingarda de ferro,

A minha espingarda

Vai quebrar todas as correntes,

Vai abrir todas as prisões,

Vai matar todos os tiranos,

Vai restituir a terra ao nosso povo,

Mãe, é belo lutar pela liberdade!



Há uma mensagem de justiça em cada bala que disparo,

Há sonhos antigos que acordam como pássaros.

Nas horas de combate, na frente de batalha,

A tua imagem próxima desce sobre mim.

É por ti também que eu luto, Mãe!,

Para que não haja lágrimas nos teus olhos.



Comentário de J.M. A. Santos: "Poema encontrado numa base da Frelimo na zona do Lunho".





O Turra das Minas



I

O turra das minas,

Pequeno e traquinas,

Lá vai na picada

E a malta escondida,

Na mata batida

Monta a emboscada.

O turra passou,

A malta esperou,

Já toda estafada,

E a Berliet

Sempre foi estoirada.



II

Ó turra das minas,

A tua vida agora

É pôr as marmitas

Pela estrada fora.

Oh turra das minas,

Tua arma soa

Por léguas e léguas,

Aqui no Niassa,

Onde a Guerra entoa [ecoa].



III

Há mortos e feridos

E os mais comidos

Somos sempre nós,

Vamos pelos ares,

Gritando por todos,

Até pelos avós.

Ó turra bairrista,

Mas pouco fadista,

Já é tradição

Ser paraquedista

Sem tirar o curso,

Ai isso é que não.



Refrão

Oh turra das minas,

A tua vida agora...



Comentário de J.M. A. Santos: Fado de humor em que, como o nome indica, é o turra ou terrorista que põe as marmitas , as minas, nas picadas, os sejam, os caminhos através do mato.



Comentário de L.G.: Música de Joaquim Pimenal, fado "A Júlia Florista", uma das muitas criações de Amália. A Berliet era uma das viaturas mais usadas no transporte de tropas: de origem francesa, eram montadas no Tramagal.





Emboscada



I

Em tempos tive a mania

Que não havia emboscada,

Até que num lindo dia

Toda a minha companhia

Pelos turras foi avisada.



II

A história que vou contar,

Contou-ma certo velhinho

Quando eu vim para o Ultramar,

Disse-me ele a sussurrar:

Checa, toma juizinho.



III

E lá no mato cansado,

De aspecto frio e sério,

Há sempre um soldado

Prestes a ser emboscado

E a ir p'ró cemitério.



IV

P'ró Niassa veio alguém

Com uma ideia aperrada:

Ouve turra, escuta bem,

Que nós não queremos ninguém

Emboscado na picada.



V

Perante a admiração de todos

Acabou-se a emboscada,

Foi o Batalhão dos Rangers

Que deu porrada a rodos,

Temos a guerra acabada.



Comentário de L.G.: Facilmente se conclui que esta canção foi adaptada do célebre fado do Embuçado, letra e música de João Ferreira Rosa; uma das estrofes mais conhecidas diz assim: A história que eu vou contar / Contou-me certa velhinha/Certa vez que eu fui cantar /Ao salão de um Titular/ Lá para o Paço da Rainha.





Ventos da guerra



De quantos sacrifícios, senhores que em mim mandam,

É feita a vida dum soldado,

De quantas noites perdidas no mato

É feita a vida dum guerreiro.



São ventos de guerra,

Não penses, amigo,

Que a hora que passa é de perigo.



Bis



De quantos tiros, senhores que me ordenam,

É feita a vida dum soldado,

De quantas minas, senhores que em mim mandam

É feita a vida dum guerreiro.



Quem limpa, senhores, as manchas de sangue

Que os jovens deixam na picada,

Quem limpa, senhores, lágrimas choradas

Por noivas e mães adoradas.



São ventos de guerra... etc.



De quantas saudades, senhores que em mim mandam,

É feita a vida dum soldado,

E quantas loucuras, senhores que me ordenam,

Contém a vida dum guerreiro.



De quantos desgostos, senhores que em mim mandam,

É feita a vida dum soldado

E quanto vinho senhores que me ordenam

Se deve beber p'ra esquecer.



São ventos de guerra... etc.



E quantas vezes, senhores que em mim mandam,

Se deve expor a vida ao perigo

E quantos gritos se devem soltar

Para se acreditar que está vivo.



Quantas idéias tombadas na luta,

Quantas esperanças perdidas,

Quanto sangue deve um jovem verter

Antes que o chamem de homem.



São ventos de guerra...etc.



Comentário de L.G.: Corrigi a pontuação, como de resto fiz nas outras letras. Julgo que o autor desta letra se inspirou no conhecido poema de Fernando Pessoa, Mar Português, do livro Mensagem: "Ó mar salgado, quanto do sal/são lágrimas de Portugal"...



Comentário de João Maria Pinto (1999): "Fase final do Cancioneiro do Niassa que recolhi entre 69/71 em Moçambique. Muita influenciada pelas baladas de Bob Dylan, fazendo o paralelo com a Guerra do Vietname"...No CD, a música é de Laurent Filipe.





A erva lá na picada



I

A erva lá na picada

Pisam-na os guerrilheiros,

O coração do soldado

Pisam-no os coronéis

E ajudam os machambeiros. (Bis)



II

Que culpa tem o soldado

De ter raiva à sua sorte

Se chega um filho da puta

Que o mete numa farda

E o manda para a morte. (Bis)



III

E o senhor brigadeiro

Vive muito consolado

Até comprou uma balança

Para pesar o dinheiro

Que rouba ao pobre soldado. (Bis)



IV

Quando será, Deus do céu,

Que um dia haverá verba,

Que um dia haverá verba,

Para a malta comer pão

E os chicos erva erva /merda merda. (Bis)



Merda merda!

Merda merda!

Merda merda!



Comentário de J.M. A. Santos: "Música da guerra civil espanhola, cujo tema foi tratado por um grupo de alferes milicianos, e em que se aborda os negócios escuros da guerra e da exploração do soldado, sempre o mais injustiçado. Feita em Nampula em 1970".



Comentário de L.G.: Pelo meu lado, reconheço antes nesta letra a canção do Adriano Correia de Oliveira, o Senhor Morgado: no entanto, esta balada é do álbum Gente de Aqui e de Agora, editado em 1971, em data portanto posterior à indicada por J.M.A. Santos; mas é possível que o Adriano já a cantasse antes em festas de estudantes ou reuniões de amigos.



Comentário de João Maria Pinto (1999): Canção feita em Nampula em 70. Inspira-se numa conhecida canção da guerra civil espanhola: "La hierba de los caminos / la pisan los caminantes / y la mujer de lo obrero / la pisan quatro tonantes / de essos que tienen dinero" (...).





Checas



I

Ó checa, amigo checa,

Cacimbado ando eu,

Já estou farto disto tudo,

Aqui em Nova Viseu.



II

Já estou farto de picar,

De fazer operações,

De rios atravessar

Com água até aos calções.



III

Já estou farto de buracos,

Feitos pelas marmitas,

Já estou farto de ir ao ar

E sem ver os terroristas.



IV

Ó checa, amigo checa,

Na picada, faz favor,

Tu serás paraquedista

Ou piloto aviador.



V

Comes feijão ao almoço,

Comes feijão ao jantar

E quando não é feijão

É punga para variar.



VI

Uma sopa de mosquitos,

E de formas esquisitas,

Dia sim, dia não,

Lá virão os ciclistas.



VII

Ó checa, amigo checa,

Isto aqui é muito chato,

Aturar a chicalhada

Que nunca saem para o mato.



VIII

Esta guerra é dos soldados

E também dos furriéis,

O resto dos graduados

Faz a guerra dos papéis.



IX

Assim é Nova Viseu

E isto ainda aumenta,

Isto é uma charanga

Na trinta e quatro setenta.



Comentário de L.G.: Referência à Companhia 3470, aquartelada em Nova Viseu, na região do Niassa. Desconheço a proveniência do termo checa, o qual designa, se bem entendo, o soldado que acaba de chegar da Metrópole, sem experiência de combate, em suma, o maçarico, o periquito, como nós dizíamos na Guiné em 1969/71: Checa é pior que turra, é o título de uma obra de ficção, publicada em 1996 por Manuel Maria, que esteve em Moçambique entre 1972 e 1974. O romance, edição de autor (Porto, 1996), tem como subtítulo: Caricaturas da guerra colonial.





Quanto ao termo punga, não sei se está está correcto, no contecto em que é usado: segundo o Dicionário Houaiss de Língua Portuguesa, o termo seria de origem suaíli e designaria "uma espécie de samba cantado, marcado por tambor, com versos improvisados e que é dançado em roda"...Mas não me parece que seja nesse sentido que o termo é aqui empregue: Comes feijão ao almoço,/Comes feijão ao jantar / E quando não é feijão / É punga para variar.. Quanto ao termo picar, significava detectar minas utilizando para o efeito um pau tendo na extremidade um ferro aguçado ou um prego com que se picava o chão, a picada, os trilhos suspeitos de esconderem marmitas ou minas anticarro ou antipessoal). Por sua vez, o termo chicalhada era uma forma de se referir, em termos depreciativos, os oficiais e sargentos do quadro das Forças Armadas, o pessoal da carreira militar, os quais eram em geral muito mais velhos do que os soldados do contingente geral, os furriéis milicianos e os alferes milicianos. Meter o chico era um termo depreciativo, designando uma acção desprezível de um furriel ou alferes miliciano que, no final da comissão, optava pela continuação na vida militar: veja-se por exemplo o Fado do Miliciano que o J.M.AS Santos diz ser a versão do Exército do Fado da Marinha).





Fado do Checa





Bem vindo, Checa,

P'ra esta guerra

Que cá te espera;

Não estejas triste,

Que a guerra é linda,

Só fazes cera,

Vais ter saudades

De mulheres brancas;

Ai que tormentos,

Aqui há pretas

Mas tem cuidado

Com seus lamentos



Refrão



Checa danado,

Pela tropa mui lixado,

Não chores, ó desgraçado,

Não vale a pena chorar;

Checa bem vindo,

Chegaste a horas,

Eu já vou indo

E afinal, mal encavado,

Que vieste cá fazer ?

Checa danado,

Vieste p'ra me render;

Vais lerpar muito

Mas com o aumento

Vais ficar rico,

Dá-o às pretas

Pois assim fazes

A tua psico.

Mas tem cuidado,

Checa danado,

Sê pouco anjinho,

Manda-os lixar

E faz a tua guerra sozinho.



Refrão

Checa danado...



Fonte: Letra transcrita do CD, "Canções Proibidas", 1999; música de Raul Ferrão, fado "A Rosa Enjeitada".



Comentário de João Maria Pinto (1999): O checa era "o esperado substituto", "o homem que nos rendia e que assegurava o regresso a casa. Era preciso tratá-lo bem e dar-lhe bons conselhos. Feito na Primavera Marcelista, cheia de falinhas mansas".





Fadinho Serrano



Muito boa noite,senhoras e senhores,

Os homens do Lunho são bons lutadores,

São bons lutadores,são bons guerrilheiros,

Fazem horas extras sem ganhar dinheiro.



Sem ganhar dinheiro, nada se ficam,

Nos dias de folga vão p'rá pá e pica.



Fazemos machambas e nasce o que é bom

No rancho comemos sopa de feijão,

Sopa de feijão, grelos com cristas.

Para variar comemos ciclistas,

Comemos ciclistas com molho e salada,

Fome não passamos, mas fartura nada.



Roupa que não falta

A verdade é uma

Até colchões temos

E de lusospuma.



Para não estragar,

Fazemos um esforço

Ou mandam para o mato

Ou pôr de reforço.



Pôr-nos de reforço,

Já sabem quem são,

Colchões para durar

Outra comissão.



Comentário de J.M. A. Santos: "Machambas [eram as] hortas".



Comentário de L.G.: Letra adaptada do conhecidíssimo fado cantado pela Amália, Fadinho Serrano (Hernâni Correia/Arlindo de Carvalho). Expressões como "ir para o mato" e "pôr de reforço" são tipicamente militares: querem dizer "sair do aquartelamento em missão" e "reforçar a segurança ao aquartelamento", respectivamente. O termo "machambeiros" era aplicado, depreciativamente, aos colonos brancos.





Fado a Metangula



Tens belas ruas, tens avenidas,

Tens tantas coisas que nos são queridas,

Tens aeroporto, tens aviões

Tens bom cinema, tens diversões.



Recentemente já rádio há,

Nem há paisagem como a de cá,

Tens pôr-do-sol visto de graça,

És a mais linda deste Niassa.



Ó Metangula,

És afinal

Grande "cidade" de Portugal,

Tens tantas coisas,

Boas e belas,

Que nós ficamos

Loucos com elas.



Ó Metangula,

Tu tens razão,

Já só te falta

Televisão.

Vais dentro em pouco

Ser das primeiras,

Mas só não tens é

Mulheres solteiras.



Comentário de J.M.A. Santos: "O autor deste fado, com optimismo, vê Metangula por um prisma muito favorável, levado pelo progresso e olhado com muito exagero! Mas no entanto, como se deduz do estribilho, ainda há muita coisa que falta!!!";



Comentário de L.G.: Em Metangula, nas margens do Lago Niassa, havia uma importante base naval, criada pela nossa Marinha de Guerra; não admira por isso que algumas das canções do Niassa sejam atribuídas ao pessoal deste ramo das forças armadas: ver por exemplo a letra do Fado do Buldozer, cuja letra não transcrevo aqui por razões de economia de espaço, e que também foi recolhida por J.M.A. Santos.





Fado das comparações



Que estranha forma de vida!

Que estranha comparação!

Vive-se em Lourenço Marques, (Bis)

Cá arrisca-se o coirão!



Vida boa, vida airada!

Boites, é só festança!

Lá não se fala em matança, (Bis)

Nem turras; há só borgadas.



Niassa, pura olvidança!

Guerra, como és ignorada!

Conversa que é evitada, (Bis)

P'los que vivem n'abastança!



Falar na nossa desdita

Fica mal e aborrece!

E como lembrar irrita, (Bis)

Toda a gente a desconhece!



Ao passar pela cidade,

Com tanta tranquilidade,

Deu-me [pr'a] comparar

Meninas com mini-saias!

Mandai-as p'ras nossas praias

P'ra manobra de atacar!



Hippies com carros GT's,

Mandai-os para as Berliets,

Tirai-lhes as modas finas,

Melenudos efeminados

Eram bem utilizados

P'ra fazer rebentar minas!



Bem como essas tais meninas

Que, apesar de enfezadinhas,

Mas com ar da sua graça

Serviriam muito a jeito

Para aliviar a dor do peito,

Cá da malta do Niassa.



Mas não, só por pirraça,

Hão-de lá continuar!

E nós temos de lerpar,

Invertem-se as posições!

E trocam-se as situações!

Continuamos a aguentar!



Nós, sem sermos desejados,

Ficamos cá apanhados

Aos urros, num desvario!

Eles, os daqui naturais,

Gastando dinheiro aos pais

Vão p'ra p... que os pariu!



Acabe-se com a tradição!

Entre-se em mobilização!

Utilize-se a manada!

Dentro de poucas semanas,

Como quem come bananas,

Estará a Guerra acabada.





Comentário de J.M. A. Santos: "Este é um fado que compara algumas coisas que se passavam. Não é um fado para ofender, e era cantado em ambientes muito particulares e com público esclarecido! De resto, como todo o cancioneiro, sobressai sempre o aspecto humorístico com que todos os

temas são abordados".



Comentário de L.G.: Canção que tudo indica foi inspirado no fado Estranha forma de vida (Letra e música: Afredo Duarte e Amália Rodrigues).



Reconheço nesta canção sarcástica sobre a privilegiada condição dos colonos moçambicanos e dos seus flhos e filhas uma das maiores contradições daquela guerra onde dificilmente se podia convencer um soldado da metrópole que estava a defender o chão sagrado da Pátria...



Noutro registo, era o mesmo tipo de crítica que nós fazíamos na Guiné - nós, os operacionais, a carne para canhão - aos privilegiados da guerra do ar condicionado, instalados no relativo conforto e na precária segurança de Bissau... Recorde-se que na Guiné não havia colonos brancos, a única empresa que se podia chamar colonialista era a Casa Gouveia, ligada à CUF - Companhia União Fabril, mas que ficou praticamente inactiva com o início da guerra).



A palavra lerpar era utilizada pelas nossas tropas, da Guiné a Moçambique, com o mesmo sentido de perda: morrer, ser ferido, perder qualquer coisa, apanhar um castigo, ser escalado, etc.





Fado do Antoninho



I

Foi no domingo passado que eu passei

À casa onde vivia o Antoninho,

Mas está tudo tão mudado

Que não vi em nenhum lado

Os tais agentes da Pide, bonitinhos.



II

Do rés-do-chão ao telhado

Não vi nada,nada, nada, nada, que fizesse

Recordar a tal vidinha;

Já não há vidros pregados, reforçados,

Guardados com tabuinhas.



III

Entrei onde era a casa, agora está

À secretária um sujeito, uma delícia,

Não vi bombas nem espingardas

Nem revólveres nem espadas

Nem espreitadelas furtivas da polícia.



IV

O tempo cravou a garra

Na alma daquela casa

Onde às vezes parecia não ter gente

E onde em noites de segredo, a meter medo,

Lá surgia o Presidente.



V

As janelas tão medonhas que ficavam

Com cortinas a tapar a velharia,

Ganharam de novo a graça

Pois são hoje umas vidraças,

Já livres de toda a porcaria.



VI

E lá p'ra dentro quem passa,

Hoje é para ir ao Marcelo

Entregar ao Presidente um pedidinho

Pois chega a esta desgraça toda a graça

Com a doença do velhinho.



VII

P'ra terem feito da casa o que fizeram

Melhor fora que a mandassem p'rás alminhas,

Pois na casa de Saúde

Provas de amor amiúde

É idéia que não cabe cá nas minhas.



VIII

Recordações do pavor,

D'avareza e do terror,

Vamos procurar esquecer nas cervejinhas

Pois dar de beber à dor é o melhor

Já dizia a Mariquinhas.



Comentário de J.M.A. Santos: "Versos feitos provavelmente por civis que parodiavam a 'Primavera Marcelista', 'evolução na continuidade', 'doença de Salazar' ".



Comentário L.G.: de origem militar ou civil, esta paródia do fado da Casa da Mariquinhas é uma delícia. Recorde-se que a letra original é de Silva Tavares e a música é do grande e imortal Alfredo Duarte, o Marceneiro. É bom também lembrar que a política política, a PIDE (DGS, com Marcelo Caetano), teve um papel muito activo e tenebroso na guerra colonial. Eram os pides que faziam o trabalho mais sujo que a tropa não queria ou não gostava de fazer como a tortura e o interrogatório de prisioneiros da FELIMO, do MPLA e do PAIGC. O Antoninho é o diminuitivo de António de Oliveira Salazar.





Taberna do Diabo



I

Um dia fui dar com Deus

Na taberna do diabo,

Entre cristãos e ateus

Fizeram de mim soldado.



II

E eu sem querer fui embarcado, (Bis)

Levei armas e um galão

Pr'ó outro lado do mar,

Quis levar o coração

Não mo deixaram levar.



E eu sem querer ia matar. (Bis)



III

Deram-me uma Cruz de Guerra

Quando matei meu irmão,

E a gente da minha terra

Promoveu-me a capitão.



E eu sem querer fiquei papão. (Bis)



IV

Todos me chamam herói,

Ninguém me chama Manel,

Quem quer uma Cruz de Guerra

Que eu já não vou pr'ó quartel.



Que eu já não vou pr'ó quartel. (Bis)



Comentário de João Maria Pinto: "Feita em Braga no ano de 66 por Gouveia Ferreira", foi lavada para Moçamboque em Dezembro de 1969, tornando-se "obrigatória nas tertúlias e nos gravadores de dezenas de militares". Esta canção "reflecte os medos de uma geraão face à Guerra Colonial" (....). Muitos desertaram, muitos não e foram sem mais voltar 'a acender no meu o seu cigarro' ".



Comentário de L.G.: Segundo o CD "Canções Proibidas" (EMI, 1999), a letra e a música são de Manuel António Gouveia Ferreira.





Fado a um autor desconhecido



I

Desconhecido autor porreiro,

A ti devemos tod'o nosso Cancioneiro.

Em fado lento, em fado antigo,

O teu talento foi o nosso melhor amigo.



II

Cantaste o fado, cantaste a raça

Disseste em verso da beleza do Niassa,

Disseste até sem uma falha

A vida triste que cá viv'esta maralha.



III

Tempo esquecido

Que ao passar

Só a saudade por castigo faz ficar.

Desconhecido,

Vais-nos deixar,

Ó Metangula, tens razão para chorar.



IV

Virão mais checas, virá mais malta,

Tal como nós hão-de sentir a tua falta.

Serás cantado, tenho a certeza,

A tua ausência lembraremos com tristeza.



V

Já lá vai longe, foi há um ano

Que nos deixaste, grande amigo Adriano.

Vamos voltar, vamos-te ver,

P'ra nosso fado todos juntos reviver.





Comentário de J.M. A. Santos: "Esta composição é dedicada ao Autor Desconhecido a cujo entusiasmo, veia poética e garra fadista se deve a concretização do sentimento que em nós existia e só ele soube cantar. Como testemunho do muito apreço e gratidão da maralha".





Hino do Lunho





No céu cinzento sob o astro mudo,

Batendo os hélices na terra esquentada,

Vêm em bandos com pés de veludo

Chupar o sangue fresco da manada.



Se alguém se engana com o seu sorrir

E lhes franqueia as portas à chegada,

Só mandam, só mandam vir,

Só mandam vir e não fazem nada.



Bis



A toda a parte vai um helicóptero

Poisam nos tandas, poisa nas picadas,

Leva no bojo os cabeças de ouro

Que de guerrilha não percebem nada.



São os reizinhos do Niassa todo,

Senhores por escolha, mandadores sem punho,

Aceitam cunhas e dizem que não,

Fazem as rondas sob o céu do Lunho.



Estou farto deles,

Estou farto deles,

Só mandam vir

E não fazem nada.



Bis



Quantas Mercedes, senhor Capitão,

Até agora foram fornicadas,

Eu bem lhe disse que pusesse os homens

Estourando minas, fazendo emboscadas.



No chão do medo tombam os vencidos,

Ouvem-se os gritos na noite abafada,

Jazem nos fossos vítimas de um credo

E não se esgota o sangue da manada.



Fazendo estradas sobre um chão de greda,

Fazem-se aterros, pontes e pontões,

Ouvem-se os tiros lá na emboscada,

Aqui no Lunho é que há leões.



Estou farto deles,

Estou farto deles,

Só mandam vir

E não fazem nada.



Bis



Tremem paredes de qualquer quartel,

São militares, anda tudo à bulha,

Ri-te, capitão, ri-te coronel,

Com esta moda da minipatrulha.



Encher o peito de metal brilhante

É essa a sua grande aspiração,

Por isso deixa os turras sossegados

Dentro da linha de contenção.



Deixem crescê-los,

Organizá-los,

Depois eu vou

Deitar-lhes a mão.



Bis



Estranha forma de tratar o cancro

Que se propaga p’la nossa nação,

Ele será leigo ou talvez ceifeiro,

Mas nunca médico cirugião.



Por uma ponte sem terminação,

O nosso sangue foi derramado,

Mas, aleluia, não será lembrado

Pelos cabeças d’ar condicionado.



Estou farto deles,

Estou farto deles,

Só mandam vir

E não fazem nada.



Bis



Se alguém se engana com o seu sorrir

E lhes franqueia as portas à chegada,

Só mandam, só mandam vir,

Só mandam vir e não fazem nada.



Bis



Estou farto deles,

Estou farto deles,

Só mandam vir

E não fazem nada.



Bis



Comentário de João Maria Pinto (1999): "Primeira obra forte do cancioneiro do Niassa, feita por um Alferes Miliciano sobre 'os vampiros' do Zeca Afonso. O Lunho foi um dos locais mais duros da guerra no norte de Moçambique. Homenagem sentida ao grande lutador que foi José Afonso e que apoiou a ADFA [Associação dos Deficientes das Forças Armadas, que também apoiou a a edição deste CD].



Comentário de L. G.: Alguns termos do calão da guerra colonial têm de ser descodificados, tais como picada (estrada de terra batida), cabeça de ouro (alta patente militar), fornicar (destruir, dar cabo de), tandas (clareiras na mata, junto às picadas ou estradas), psico (acção piscossocial levada a cabo pelas forças armadas junto das populações locais, sob o controlo das nossas tropas ou sob a influência da guerrilha), minipatrulha (patrulha com um pequeno grupo de homens), mercedes (viaturas militares de transporte de carga), metal brilhante (condecorações), cabeças d'ar condicionado (o mesmo que cabeças de oiro ou, mais genericamente, pessoal de gabinete, pessoal das companhias de serviços).

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