03 novembro 2004

Portugal sacro-profano - XX: O bravo enfermeiro desconhecido do Hospital Amadora-Sintra

1. Um dia destes, o Portugal Sacro-Profano há-de ser lembrado pelos seus divertidíssimos faits-divers, pelas suas estafadas anedotas de alentejanos, pelo seu pitoresco obituário, pelos anúncios pessoalíssimos do Correio da Manhã, pelo seu saudoso Pregador de Domingo, pelo grande Espesso e outras veneráveis instituições como a Pia Causa, os Tribunais, o Ministério Público, a Polícia Judiciária, o Estado travestido de toga, pompa e circunstância... Mas também pelos seus heróis façanhudos, como este bravo enfermeiro do Hospital Amadora-Sintra que, qual soldado desconhecido, pôs o seu entranhado amor da pátria, a sua extremada dedicação à coisa pública e a sua incomparável defesa da vida acima dos triviais princípios da ética e da deontologia da sua corporação de ofício. Bravo, bravíssimo!... Admito, em todo o caso, que há razões de consciência que a razão (e a corporação) desconhecem.

O problema aqui, se bem entendo, é um profissional de saúde (médico, enfermeiro, assistente social...)esquecer a especificidade da sua função, quebrar a confiança que nele deposita quem o procura e tornar-se, voluntária ou involuntarimente, um delator, logo uma peça do braço armado do Estado.

2. Entretanto, das pobres Sofias até o cronista esquecerá, rapidamente, o nome. E os sórdidos detalhes da sua história. Triste. Como a tristeza do bairro cinzento do Cacém onde a Sofia da história aprendeu a dura condição de ser mulher e pertencer a uma minoria étnica. Mas os tugas não são racistas, meu!

Só estranho o silêncio (público) da Ordem dos Enfermeiros sobre este caso: de facto, não encontrei, no seu site oficial, qualquer tomada de posição pública, oficial ou oficiosa, sobre (ou uma simples referência a) uma eventual quebra das regras de conduta nestas situações. Em contrapartida, dá-se notícia de mais um (o quinto) seminário sobre ética em enfermagem, realizado pela dita Ordem no passado mês de Outubro... Esta omissão, voluntária ou não, não prestigia a Ordem dos Enfermeiros.

3. Aqui fica, entretanto, um recorte de imprensa sobre o caso da Sofia (nome fictício), extraído do Público, na sua versão 'on line', de 3 de Novembro de 2004. Secção : Sociedade > Crime e Castigo, perdão, Crime e Justiça.

_____________


Juíza alega que não ficou provada a prática do crime
Jovem acusada da prática de aborto foi absolvida


Lusa

A juíza Conceição Oliveira absolveu hoje a jovem de 21 anos de idade acusada da prática de aborto, porque que não ficou provada a prática do crime.

A decisão da juíza foi anunciada menos de uma hora depois de ter começado o julgamento, nos Tribunais Correccionais de Lisboa.

Vários populares concentraram-se em frente ao tribunal durante o julgamento e no final congratularam-se com a decisão da juíza.

Sofia (nome fictício) - nascida em Lisboa, nacionalidade caboverdiana - tem hoje 21 anos, é operária numa fábrica de automóveis, ganha 416 euros por mês, continua a viver com a mãe e com a irmã mais nova num bairro do Cacém (Sintra).

Quando decidiu abortar, Sofia tinha 17 anos e era estudante. Vivia com a mãe - que soube do ocorrido quando a filha começou com dores e hemorragias e viu-se obrigada a chamar uma ambulância - e com a irmã, de 10 anos. Foi a ela que, em Janeiro de 2000, pediu que fosse pôr ao lixo um saco dos supermercados Feira Nova onde tinha colocado o feto.

A menina de dez anos, quando inquirida pela Polícia Judiciária (PJ), dois meses depois do ocorrido, disse nada saber: "Foi pôr o lixo, como sempre acontecia", lê-se no "auto de inquirição da testemunha" que consta do processo do 4º juízo (3º secção).

Sofia confessou ter tomado cinco comprimidos orais e três vaginais de Citotec (cuja substância activa é o misoprostol) para abortar. Cada um foi-lhe vendido a "cinco mil escudos" por uma amiga que entretanto voltou a Angola; o fármaco é vendido mediante receita médica e custa cerca de dez euros.

O namorado de nada soube, também pouco podia ajudar - "estava desempregado" e o namoro era "de circunstância, tanto que acabou pouco tempo depois", disse à PJ. À mãe, que poucos meios tinha, também nada disse. Abortou porque "não tinha condições para dar à criança", contou também. Sofia está a ser defendida por uma advogada oficiosa, nomeada porque a ré não tem meios económicos.

Termo de identidade e residência

Decorridas as investigações, em 2002, o Ministério Público decidiu acusar a jovem do crime de aborto por "ter agido deliberadamente, livre e conscientemente, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei". A pena por crime de aborto pode ser de prisão até três anos (é permitido apenas por perigo de vida ou saúde da mulher, malformação do feto ou violação).

O Ministério Público impôs "à arguida", em Janeiro do ano passado, a medida de coacção de termo de identidade e residência, que consta da obrigação de não mudar de residência nem dela se ausentar por mais de cinco dias sem comunicar a nova residência ou o lugar onde possa ser encontrada.

Tudo partiu da denúncia de um enfermeiro de serviço no hospital. Sabendo da razão que levou a jovem às urgências do hospital Amadora-Sintra: "aborto por ingestão de misoprostol", disso deu conta ao posto da Polícia de Segurança Pública (PSP) mais perto que, por sua vez, informou a esquadra da área de residência da jovem.

Está a decorrer um processo de averiguações na Ordem dos Enfermeiros para concluir se o enfermeiro em causa incorreu em infracção disciplinar por quebra do sigilo profissional. Ao mesmo tempo, está em causa a sua obrigação de, como funcionário público, ter de denunciar infracções à lei.

Agindo perante a denúncia, o agente da PSP tentou encontrar "o corpo de delito" no contentor de lixo onde foi depositado. Descobrindo que a recolha já tinha sido feita, tentou a "localização do feto" contactando por telefone a incineradora de resíduos sólidos de São João da Talha; responderam-lhe que a busca em cinco mil toneladas de lixo seria impossível.

Sofia teve alta depois de dois dias de internamento no Amadora-Sintra, "após indicação para ir a uma consulta de planeamento familiar do centro de saúde da sua zona". A jovem nunca foi acompanhada por um médico e quando abortou pensava estar grávida de três semanas. "Ficou surpreendida quando alguém no hospital a informou que estava grávida de quase cinco meses", reconheceu ao agente da Polícia Judiciária que a interrogou.
___________________

Sem comentários: