Este texto chegou à nossa caixa de correio por mão do Jorge Santos, sempre atento a tudo o que se diz e escreve sobre a guerra colonial.
Foi publicado num jornal semanário, da comunidade luso-americana. Reproduzi-lo aqui, com a devia vénia:
Eduardo Mayone Dias: Carta da Califórnia: Último Combate da Marinha Portuguesa. Portuguese Times, New Bedford, Mass. nº 1706, de 3 de Março de 2004.
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Em 1958 a Guiné-Conakry conseguiu a independência e Sekou Touré tornou-se o seu Presidente, instituindo um governo de nítido carácter esquerdista. A sua política ditatorial levou a uma forte resistência dentro do país.(1) É pois fácil compreender que este governo se oporia a qualquer sistema colonialista e se mostraria favorável a apoiar movimentos autonomistas, como era o PAIGC.
Foi pois nestas circunstâncias que esta nação se tornou a principal base logística e de treino dos guerrilheiros chefiados por Amílcar Cabral. As quatro vedetas do PAIGC, com uma deslocação de 66 toneladas, podiam atingir uma velocidade superior a 40 nós. Estavam armadas com duas peças anti-aéreas e dois tubos lança-torpedos. Dada a sua mobilidade e poder de fogo constituíam evidentemente uma grave ameaça para Portugal. De facto não lhes seria difícil acercar-se durante a noite ao porto de Bissau sem serem detectadas e afundar qualquer navio aí atracado, incluindo um dos paquetes então utilizados como transportes de tropas. Entre estas unidades contava-se
o Niassa (I), o primeiro navio mercante a ser requisitado para esse serviço, com
capacidade para receber mais de 3 000 homens.
Foi por esta altura que o Capitão-Tenente Alpoim Galvão, especializado em operações de mergulhadores-sapadores, concebeu um plano para pôr fora de acção estas vedetas, tanto as da Guiné-Conakry como as do PAIGC. O método consistiria em conduzir equipas de homens-rãs em lanchas, durante a noite, até ao porto de Conakry. Aí os militares portugueses aporiam minas-lapa no costado das vedetas potencialmente inimigas.
Terminada a sua missão, esse contingente regressaria a Bissau, ainda a coberto das trevas. Dentro de poucas horas as minas explodiriam. Uma vez afundadas as vedetas, esperava-se que a autoria da operação não fosse determinada. No fundo era um plano que deveria ser desenvolvido com a maior discrição, já que Portugal não se encontrava em estado de guerra com a Guiné-Conakry e portanto não seria, sob um ponto de vista legal, justificável um ataque às suas forças.
O projecto mereceu o apoio do então Brigadeiro António de Spínola, Governador e Comandante-Chefe das Forças Armadas da Guiné, o que possivelmente contribuiu para que fosse também aprovado pelo Chefe do Estado-Maior da Armada, decerto com a aquiescência de entidades superiores. Com o caminho agora aberto, Alpoim Galvão deslocou-se à Áfrical do Sul na companhia de um inspector da Direcção Geral de Seguraça (DGS), a sucessora da PIDE. Tratava-se de adquirir nesse país as minas necessárias para a execução desta audaciosa empresa. (Recorde-se que a União Sul-Africana foi o único país deste Continente que de forma activa cooperou com Portugal na luta contra os movimentos autonomistas.) Obtido o material desejado, Alpoim Galvão escondeu-o na sua bagagem e assim o levou para Lisboa, de onde depois
seguiu para a Guiné.
A fase seguinte consistia em obter dados sobre as instalações portuárias de Conakry. Nem em Lisboa nem em Bissau se tornou possível encontrar uma planta da cidade, de modo que houve que optar por uma observação in loco. Para isso destinou-se uma lancha que durante a noite entraria no porto, camuflada como pertencendo ao PAIGC. A unidade escolhida, a meados de Setembro de 1969, foi a lancha Sagitário. Para manter a ilusão, determinou-se que no caso de a embarcação ser avistada, apenas tripulantes africanos pudessem ser vistos na coberta. Um cabo de fuzileiros (2), ostentando boné de oficial, aparentaria ser o comandante.
Dando uma volta para simular ter vindo do sul, a lancha entrou no porto de Conakry às duas horas da noite de 17 de Setembro sem qualquer incidente, embora no seu trajecto se houvesse cruzado com alguns barcos de pesca. O seu radar pôde determinar a localização exacta dos cais. Tudo correu bem e preparavam-se para iniciar o regresso quando deixou de funcionar o gerador da lancha, o que obrigou a que fosse fundeada ainda dentro do porto. Criaram-se naturalmente momentos de grande tensão a bordo mas conseguiu-se reparar a avaria sem grande demora e a embarcação pôde atingir Bissau a são e salvo.
O magnífico êxito desta operação incentivou Alpoim Galvão a alargar o escopo da seguinte, a que seria dado o nome de código "Mar Verde" (II). Havia conhecimento da existência em Conakry de 26 prisioneiros de guerra portugueses (3) e o empreendedor oficial propôs a Spínola tentar a sua libertação, proposta com que o Comandante-Chefe entusiasticamente concordou. Mais do que isso, alvitrou também a destruição das instalações do PAIGC no porto.
O plano da "Mar Verde" iria no entanto continuar a ser ampliado. Já desde 1964 as autoridades portuguesas tinham mantido contactos com o FNLG, o Front de Libération National Guinéen, uma organização que fortemente se opunha ao regime de Sekou Touré. Pensava-se mesmo em autorizar o FNLG a criar bases em território da Guiné Portuguesa para daí lançar operações militares.
Encarou-se então a hipótese de usar forças armadas do FNLG para colaborarem na Operação "Mar Verde", o que, esperava-se, poderia levar à deposição de Sekou Touré e à instalação de um governo mais avesso a uma hostilidade a Portugal. De novo Spínola, agora já promovido ao posto de general, alinhou com esta iniciativa. Pouco a pouco a operação ia assumindo um decidido carácter de bola de neve.
A utilização de forças do FLNG neste empreendimento implicava vários problemas. Um deles consistia nas desfavoráveis repercussões internacionaisde um golpe de estado fomentado num país estrangeiro pelo Governo Português.Também os elementos da organização se encontravam dispersos por vários países africanos e tornava-se imperioso reuni-los e trazê-los sob o maior sigilo até ao território da Guiné Portuguesa, onde seriam treinados. Uma vez aí foram levados à ilha de Soga, de onde não lhes era permitido sair, a fim de que se mantivesse absoluto silêncio sobre a sua presença. Embora muitos deles houvessem já servido no exército colonial francês ou no da Guiné-Conakry, foram submetidos a uma intensa preparação, dirigida por
instrutores portugueses, que durou de Janeiro a Novembro de 1970. Conseguido o assentimento do Presidente do Conselho de Ministros, Marcelo Caetano, com a condição de que não fosse deixado em Conakry qualquer indício da intervenção portuguesa, tudo estava preparado para lançar a "Mar Verde", apesar dos graves riscos políticos que poderia desencadear.
Ao fim da tarde de 19 de Novembro zarpou da ilha de Soga (III) uma força naval comandada por Alpoim Galvão e constituída por quatro lanchas de fiscalização e duas de desembarque. A bordo seguiam uns 200 homens do FLNG, fuzileiros guineenses e uma companhia de comandos também africanos.
Apoiadas por um avião da Força Aérea Portuguesa, estas unidades navegaram para o sul e conseguiram atingir as imediações de Conakry, sem a sua presença ter sido observada, pelas vinte horas do dia 21 de Novembro. As lanchas fundearam depois em pontos diferentes, esperando a hora do desembarque, marcada para a uma e trinta da madrugada de domingo, dia 22.
O primeiro passo a ser dado era o da neutralização de todas as vedetas, o que também impediria qualquer resistência séria. Dessa missão encarregou-se uma equipa de catorze fuzileiros africanos, comandados por um jovem oficial europeu. Em absoluto silêncio tomaram lugar em botes de borracha. A um lado de um pontão encontraram as quatro vedetas do PAIGC, amarradas entre si, e do lado oposto as três da Guiné-Conakry. No pontão avistaram uma sentinela, que se lhes afigurou estar adormecida. Um grumete aproximou-se em silêncio e matou a sentinela com uma punhalada. Vieram em seguida os restantes membros da equipa, que através das escotilhas lançaram para o interior das vedetas granadas de mão que liquidaram os tripulantes que aí se encontravam e causaram vários incêndios. Isso alertou um posto instalado no telhado de um armazém da doca, de onde começou a ser feito fogo de metralhadora.
Apesar de ter sofrido alguns feridos, a equipa pôde regressar aos botes, deixando em chamas as vedetas, que pouco mais tarde explodiram. Pela uma e quarenta largaram de outras lanchas dez botes transportando uma equipa destinada a tomar posse de um complexo militar a perto de sete quilómetros da cidade. Alguns dos botes embaraçaram-se em armações de pesca, o que atrasou o desembarque. A equipa dividiu-se então em três grupos. O primeiro encaminhou-se para a prisão La Montaigne, onde se encontravam
detidos os prisioneiros portugueses. Após um breve combate com os guardas, os prisioneiros foram libertados.
O objectivo do segundo grupo era o ataque a instalações do PAIGC, o que foi alcançado com a destruição de cinco edifícios e algumas viaturas. Também foram abatidos alguns militantes do partido.
O terceiro grupo, após um violento combate com os defensores, arrasou um complexo de milícias e uma residência de férias de Sekou Touré. Poderá admitir-se que o ataque ao segundo alvo teria sido concebido com o fim de eliminar o Presidente, o que não aconteceu.
De outra lancha largaram três equipas. A primeira assaltou o quartel da Guarda Republicana e libertou cerca de 400 presos políticos, alguns dos quais pegaram em armas e se juntaram aos atacantes. Essa lancha atracou ao cais do Yacht Club e desembarcou as outras duas equipas. Uma delas ocupou a central eléctrica e cortou a energia para a cidade, com o propósito de desorientar os defensores e facilitar a retirada dos atacantes. O terceiro grupo ocupou sem resistência um campo militar e destroçou uma coluna motorizada que acorrera ao local. Pelas quatro da manhã haviam sido alcançados com êxito e apenas ligeiras baixas os objectivos situados na parte norte da cidade.
Já na parte sul a acção não decorreu com tanto sucesso. Uma equipa vinda para terra à uma da manhã, comandada por um alferes guineense e encarregada de ocupar a estação emissora de rádio, não conseguiu chegar ao seu destino por falta de orientação. Sete outras equipas todavia cumpriram as suas missões no interior da cidade sem grande resistência, com a excepção da encontrada no quartel da Gendarmerie. Neste recontro foi destruída uma coluna de blindados. No palácio presidencial também não foi possível encontrar Sekou Touré.
Ainda outra equipa, a que fora dada ordem de ocupar o aeroporto e destruir os aviões de caça Mig que se deviam aí encontrar fracassou no seu intento. A caminho, um tenente guineense desertou, levando consigo vinte homens.(5) O comandante da equipa, um capitão pára-quedista europeu, prosseguiu no seu trajecto mas teve a surpresa de não encontrar no aeroporto os Migs, que dias antes haviam sido transferidos para outro local.
O propósito inicial de Alpoim Galvão era de permanecer em Conakry até que o governo de Sekou Touré fosse derrubado. Considerando contudo que como os Migs não tinham sido destruídos, o que poderia constituir um grave perigo para as suas embarcações, decidiu-se por uma rápida retirada. Aliás soube-se mais tarde que os aparelhos não estavam operacionais, dada a falta de preparação dos seus pilotos. Desanimou-o também a constatação de que o FLNG não reunia as condições para um eficaz apoio popular na sua tentativa de subir ao poder.
A partida de Conakry teve lugar já depois do nascer do sol e o regresso a Bissau processou-se sem obstáculos de maior, embora tivessem sido feitos quatro tiros de morteiro em direcção a uma das lanchas. A flotilha aportou à ilha de Soga no dia seguinte, a meio da tarde.
A meticulosidade com que a Operação "Mar Verde" foi planeada e executada revelou-se verdadeiramente notável ao nível militar. As vedetas foram postas fora de combate, várias instalações do PAOGC inutilizadas e os prisioneiros portugueses libertados. O custo humano orçou apenas por três mortos e três feridos graves. No plano político resultou no entanto num estrondoso fracasso. Sekou Touré continuou no poder e Amílcar Cabral não foi aprisionado ou abatido, como seria decerto o secreto desejo de muitos.
É contudo curioso notar que "Mar Verde" representou a única acção de envergadura realizada em qualquer das três frentes das campanhas coloniais por forças de combate predominantemente africanas. (5) De todos os modos, no fundo foi um esforço tão inútil como todos os outros levados a efeito durante os longos anos da guerra colonial, rematada pela via política sem se terem obtido os resultados propostos.
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NOTAS
(1) Através da sua obra Poèmes militants (1978), Sekou Touré tornou-se também conhecido como poeta.
(2) Recorde-se que o Corpo de Fuzileiros Navais faz parte da Marinha de Guerra Portuguesa.
(3) O aprisionamento de militares portugueses em África era um segredo rigorosamente imposto pela censura aos meios de comunicação social.
(4) Parece que este oficial foi mais tarde executado por ordem de Sekou Touré.
(5) A deserção do tenente guineense com os seus homens constituiu um incidente que ilustra a continuada relutância portuguesa de empregar forças africanas em missões de combate contra a guerrilha.
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Notas de L.G.
(I) Vd. pot de 23 de Junho de 2005> Guiné 69/71 - LXXVI: (i) A bordo do Niassa; (ii) Chegada a Bissau
(II) Vd. post de 4 de Agosto de 2005 > Guiné 63/74 - CXXXVII: Antologia (12): Op Mar Verde
(III) No arquipélago dos Bijagós: vd. mapa da Guiné-Bissau
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