17 setembro 2005

Guiné 63/74 - CXCII: Os nossos (des)encontros: do Niassa ao Pelundo, passando por Bissau

1. Texto do João Tunes em resposta à mensagem de boas-vindas do Humberto Reis:

Ora bem, Humberto, a coisa começa a compor-se (isto é, começo a sentir-me em casa, o que não podia deixar de acontecer mais dia menos dia).

Afirmativo - confirma-se que eu, o Humberto e o Luís (mais uma data de outros), participámos no mesmíssimo cruzeiro do Niassa rumo a Bissau. Antes, estivemos portanto na mesma parada de despedida no cais de Alcântara , a que me refiro num post [meu, publicado no Bota Acima, em 7 de Abril de 2004].

Durante a viagem, confesso que não vi ninguém - comecei a emborcar à partida e só desliguei a torneira do whisky à chegada. E, pelos vistos, separámo-nos logo que metemos os pés em terra. O meu Batalhão só foi para o Pelundo (1) dois meses mais tarde, até lá foi-nos cometida a ocupação do Quartel de Santa Luzia em Bissau (portanto no sentido oposto a Brá) e foi para aí que fomos logo encaminhados.

Guiné > Bissau > Quartel de Transmissões, junto à estrada de Santa Luzia (1972).

© Sousa de Castro (2005).

Foto gentilmente cedidas por Sousa de Castro, ex-1º cabo radiotelegrafista, da CART 3494 (1972/74), aquartelada no Xime (1972/73) e depois em Mansambo (1973/74), pertencente ao BART 3873 (1972/1974), com sede em Bambadinca.

Foi, aliás, um começo de comissão do caraças - na primeira noite, o paiol do quartel explodiu (não se soube se por descuido ou por sabotagem) e imagine-se a sensação de logo na primeira noite de Guiné apanhar-se com um paiol dentro do quartel a ir pelos ares (do género de grito de periquito: "Ai minha nossa senhora que aqui não passo do primeiro dia...").

Talvez ainda pior - no segundo dia, calhou-me estar de oficial de dia e os cozinheiros da CCS estrearem-se nas suas lides; fizeram borrada (por inexperiência porque antes tinham sido de todas as profissões menos de artes em culinária) e salgaram bem a comida, então os veteranos que estavam no quartel à espera do regresso não estiveram pelos ajustes e fizeram-nos logo ali a recepção com um levantamento de rancho.

Como era o oficial de dia a coisa sobrou para mim e, consultado o segundo comandante, este não esteve com meias-medidas, a ajuda que me prestou foi perguntar-me para o que é que eu queria a pistola que tinha pendurada no cinto, lá tirei a pistola e meti-lha nas mãos e recomendei-lhe "vá lá então o meu major e desate a matá-los"; o homem acalmou (com um "vá lá e veja se os convence..." e sem que arredasse um pé para tentar ajudar a resolver o quer que fosse), eu voltei a recolher a pistola e, mais calmo, fui falar com o pessoal, apelei-lhes à solidariedade com os camaradas recém-chegados, o que não foi fácil (uma das piores impressões que trago da Guiné era a forma como à medida que se iam reforçando os laços solidários entre os militares do mesmo quartel se iam perdendo os laços com os outros militares de outras unidades e, com o passar do tempo, desenvolvia-se um rancor sádico crescente dos veteranos para com os periquitos pois a noção do correr do tempo em falta para a hora do regresso era ampliada pela sensação que aos acabados de chegar ainda lhes faltava a eternidade para daquilo se livrarem se se livrassem) e lá consegui o sábio compromisso de a comida salgada ser retirada e improvisarem-se umas salsichas com ovos estrelados e batatas fritas.

No final da minha comissão, já vocês tinham regressado (dado que fiquei mais três meses como recompensa extra), calhou-me, vindo de Catió (esse batalhão também fora rendido), prestar serviço no Quartel de Adidos de Brá e aí apanhei várias tentativas de veteranos (2) quererem gozo com levantamentos de rancho , inventados só para chatearem mas, nessa altura, já eu era veterano, passado dos carretos e estava por tudo (no final, quando todos os meus camaradas dos dois batalhões em que estive já tinham regressado, cheguei à fase de "tanto se me dá ir como ficar e que tudo vá para a puta que os pariu" e que seria uma sublimação extremada do "tirem-me daqui", ou seja, estava tão farto da Guiné que já me faltava a vontade de sair ou de ficar) e tudo era resolvido em duas penadas a desmontar a basófia (a malta no mato comia o que havia, mas quando chegava a Bissau armava-se em fina e esquisita como vingança para com os "gajos que tinham o cú assente em Bissau", esquecendo-se que, muitas vezes, se enganavam no número da porta e estavam a lidar com quem as tinha batido mais que os finaços).

Agora que já estendi o guardanapo, seguem abraços para todos os ilustres tertulianos.

2. Comentário do Humberto Reis:

Porra!

Quem fala assim não é gago. Só tenho pena que tenhas aturado o Capitão Moás da companhia da PM que foi connosco durante o cruzeiro até Bissau.

Estás mais que admitido, falo por mim mas julgo que a maioria concorda. Precisamos de gente nova pois eu sou um miúdo ao pé de ti (sou colheita de 1946).

Mais uma vez um abraço de Boas Vindas e Boas Escritas, pois já vimos que, além da especialidade de Transmissões, também tens jeitinho para deixar a pena correr, ao sabor do imprevisto, sobre o papel.

Humberto

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Notas de L. G.

(1) Vd. post de 11 de Agosto de 2005, um texto de João Tunes, anterior à sua entrada para a nossa tertúlia > Guiné 63/74 - CXLIX: Antologia (15): Lembranças do chão manjaco (Do Pelundo ao Canchungo)

(2) A expressão mais vulgar, no nosso tempo, na Guiné, era velhice, velhinhos, como oposto dos periquitos, os mais novos.

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