04 dezembro 2005

Guiné 63/74 - CCCXXXVI: A vingança da PIDE (Manuel Domingues)

Caro Luís Graça.

Obrigado pelas referências ao livro Uma campanha na Guiné, que, como é explicado na Introdução, destinava-se fundamentalmente a antigos combatentes que integraram o BCAÇ 1856 (1).

No entanto acabou por interessar outros segmentos, o que para um trabalho sem qualquer suporte de divulgação ou promoção é sempre motivador.

Confesso que fiquei surpreendido pelo trabalho e abrangência do vosso blogue e, por desafio do Cor. Marques Lopes, junto envio um primeiro texto, baseado numa vivência pesssoal, que adaptei do meu livro recém publicado de Estórias Etnográficas " O Pegureiro e o Lobo - Estórias de Castro Laboreiro".

A finalidade é apenas chamar a atenção para um sistema de controlo das vidas dos jovens de então, mesmo quando não eram "revolucionários " nem comunistas e se limitavam a cumprir as normas estabelecidos pelo regime (RDM). É uma amostra do conflito latente entre os militares,sobretudo os profissionais que temiam, mais do que respeitavam, a influência da PIDE, cujo controlo poderia influenciar as respectivas carreiras profissionais.

Não bastava ser bom militar. Era também necessário estar nas boas graças da PIDE.

A maior parte dos oficiais milicianos, que não aspiravaa ser funcionário público, podia encontrar refúgio na sua condição temporária de militar, mas à saída, a PIDE esperava por ele para acertar contas!

Com os melhores cumprimentos

Manuel Domingues (2)


A Vingança da PIDE



Como oficial de informações todas as manhãs, às 07h00, a primeira tarefa era analisar as actividades operacionais e de informações ocorridas nas últimas 24 horas no Batalhão e na Zona, e elaborar o relatório diário, SITREP, a enviar ao Comando em Bissau, como aliás todas a unidades estacionadas na Guiné. O Comando sintetizava os aspectos considerados mais importantes, e distribuía a todas as unidades, semanalmente, uma síntese dos factos através do PERINTREP.

O SITREP, relatório diário, assentava nas informações recolhidas pelas subunidades do Batalhão no terreno, e no sistema de informações instituído. Era prática, recomendada pelo Comando Chefe de Bissau, a partilha de informação com a subdelegação da PIDE existente em Nova Lamego [Gabu], funcionando na Administração do Concelho, e apenas com um Agente.

Através dos relatórios semanais do Comando Chefe constatei a existência de muitas referências e informações sobre a região Leste, onde o Batalhão actuava, como sendo originárias da PIDE, quando afinal eram de origem militar e que o referido Agente obtinha-as mediante o acesso ao centro nevrálgico do Comando do Batalhão, transmitindo-as como sendo resultantes do seu trabalho, influenciando a actividade do Batalhão, pois era com base em informações que o Comando sugeria ou determinava operações no terreno.

Perante tal abuso, e obtido o acordo do Comandante, transmiti ao Agente que dada a situação do território, sob comando militar, e o facto de ele pertencer a uma instituição civil, não poderia ter acesso directo à referida Sala, sem prejuízo de ser informado dos factos com interesse para a sua actividade. Perante a eminência de ver a sua fonte secar fez várias ameaças, mais ou menos veladas, mas de facto a situação mudou, e a contribuição do referido Agente ficou reduzida ao seu trabalho próprio, quase nulo, dada a realidade existente na região.

Já neste contexto, uma manhã deparei com uma mensagem de uma das companhias, estacionada em Buruntuma, informando ter capturado dois prisioneiros, identificados como estrangeiros, e que iria remeter nessa tarde para o Comando do Batalhão para interrogatório mais detalhado. Assim aconteceu. Ao princípio da tarde e com recurso a um militar nativo, fula, como intérprete, porque dominava bem o português e a língua dos prisioneiros, concluiu-se o interrogatório.

Ainda o Relatório não estava feito quando o agente da PIDE irrompeu pela Sala de Operações reclamando a entrega imediata dos prisioneiros por se tratar de mestrangeiros, cuja competência era exclusivamente dos seus serviços. Calmamente tentei explicar-lhe que, pelo facto de a Província estar sob domínio militar, competia a este, em primeiro lugar, averiguar do interesse dos capturados e só depois decidir o seu destino

No caso concreto já concluíra pela entrega à entidade civil porque não apresentavam grande interesse militar. No entanto e apesar de escassos 50 metros separarem as instalações do Quartel e da Administração Civil, os prisioneiros seriam entregues segundo as normas militares, ou seja com uma Guia de Entrega.

O Homem mandou-se ao ar dizendo nunca tal ter acontecido, passando a constituir um precedente grave de desconfiança num elemento da PIDE, ainda para mais da parte de um oficial miliciano. Nunca receberia os prisioneiros em tais condições e assim iria ter de justificar tal atitude perante o Comando de Bissau, que ele alertaria de imediato através do seu Subdirector.

Mal o Agente abandonou as instalações encarreguei o Sargento de Informações de preencher as Guias de Entrega e levar os prisioneiros para o edifício da Administração, com ordens expressas de só os entregar se o Agente assinasse as respectivas guias. Caso contrário trazia-os de volta. Passados 15 minutos o referido Furriel voltou com a indicação de o Agente se manter intransigente e só aceitar os dois homens sem Guia.

Perante esta situação falei com o Comandante a quem expliquei a relutância em prescindir do formalismo, porque em tempos o referido Agente se gabara de ter feito desaparecer prisioneiros sem deixar rasto. Mais tarde poderíamos ser responsabilizados se eventualmente a PIDE os fizesse desaparecer.

O Comandante mandou chamar o Agente e tentou fazer-lhe compreender a situação e que o meu procedimento estava de acordo com as normas em vigor. O Agente hesitou mas como já tinha enviado um rádio para a Subdirectoria em Bissau, decidiu não voltar atrás na sua decisão.

Embora criando uma situação insólita, sugeri ao Comandante o envio dos prisioneiros por via aérea para Bissau à ordem do Comando Chefe, com a indicação dos motivos, ou seja, a recusa do agente da PIDE em assinar a respectiva Guia de Entrega, que mereceu a sua concordância.

Passadas duas semanas o Agente desapareceu, deixando o recado de que alguém iria pagar caro pela sua saída. Dois meses após o regresso da Guiné, em Julho de 1967, e já desmobilizado, requeri o passaporte no Governo Civil de Lisboa, a fim de regressar a Paris, para continuar a minha vida profissional.

Para grande surpresa foi-me recusado. Ao fim de varias diligências, consegui que me dissessem que o motivo tinha sido a informação negativa da PIDE!

Não queria acreditar! Quatro anos antes, já apurado para todo o serviço militar, tinham-me autorizado a ir estudar no estrangeiro e agora, depois de o ter cumprido, negavam-me esse direito. Era a tal vingança anunciada pelo Agente! Revoltado com a injustiça, um dia resolvi ir à sede da PIDE, na Rua António Maria Cardoso, pedir explicações.

O Agente porteiro depois de me perguntar o que pretendia mirou-me de alto a baixo, foi a uma casota telefonar e mandou-me subir ao andar superior onde outro Agente me encafuou numa pequena sala interior, mandando-me esperar.

Ao fim de mais de trinta longos minutos apareceu um inspector perguntando-me qual a razão da vinda ali. Expliquei que pretendia saber a razão da informação negativa relativamente ao meu pedido de passaporte. O Inspector olhou-me com ar de sobranceria e perguntou-me:
— É a primeira vez que vem aqui?
— É sim.
— Então fique a saber: aqui só vem quem nós chamamos! E foi-se embora.

Meio aparvalhado, desci as escadas e o porteiro, com ar trocista, deu-me as boas tardes. Na rua ia pensando como eram grandes os tentáculos de uma organização, decidindo sobre o futuro das pessoas, mesmo quando se limitavam a cumprir as leis que o próprio sistema criara.

(Adaptado, pelo Autor, do seu livro O Pegureiro e o Lobo – Estórias de Castro Laboreiro - 2005)

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(1) Vd. post de A. Marques Lopes, de 18 de Julho de 2005 > Guiné 63/74 - CXI: Bibliografia de uma guerra (5)


(2) O autor frequentou o Curso de Rangers e fez parte do BCAÇ 1856 (1965/67). Como Alferes Mil foi Comandante do Pelotão de Reconhecimento e Informação, tendo desempenhado as funções de oficial de Informações e, durante alguns meses, a de Oficial de Operações.

O BCAÇ 1856 esteve no Leste, Sector L3, com o Comando e CCS sediados em Nova Lamego [Gabu]; e as companhias operacionais em Madina do Boé (CCAÇ 1416, com um destacamento em Béli; , em Bajocunda (CCAÇ 1417, com um destacamento em Copá); e em Buruntuma (CCAÇ 1418, com um destacamento em Ponte Caiúm).

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