Guiné > Região Leste > Bambadinca > s/d (1972, 1973 ou 1974): O Manuel Ferreira, soldado condutor auto, dos "Fantasmas do Xime" (CART 3494 do BART 3873, 1972/74), junto ao monumento aos mortos do Sector L1, erigido pelo BART 2917 (1970/72).
© Manuel Ferreira (2005)
1. Texto de Luís Graça:
Podem ver-se na fotografia em cima, quando ampliada, os nomes dos oito mortos do Batalhão de Artilharia, BART 2917, incluindo o Fur Mil Cunha e mais quatros combatentes da sua secção, mortos em 26 de Novembro de 1970, na região do Xime (Op Abencerragem Candente) (1).
Os restantes sãos mais 3 furriéis milicianos (ou 1 alferes e 2 furriéis: a imagem não é nítida).
Das unidades adidas ao BART 2917 (1970/72), vem em primeiro lugar a CCAÇ 12, com três mortos:
(i) o Sold Ieró Jaló, morto em 7 de Setembro de 1969, na Op Pato Rufia (2);
(ii) o Sold Cond Auto Soares, morto em Nhabijões, na sequência do rebentamento de uma mina anticarro, em 13 de Janeiro de 1970 (3);
e (iii) o Sold Sissé, este último já em data posterior ao fim da comissão dos quadros metropolitanos, originários da CCAÇ 2590, e que formaram a CCAÇ 12 (1969/71).
Outra unidade adida era o PEL CAÇ NAT 52, com 1 morto, seguido do PEL CAÇ NAT 54 (que esteve muito tempo em Missirá), com 6 mortos. Ainda se consegue ver o PEL NAT 63, com um morto. No caso da última unidade adida ao BART 2917, que teve 3 mortos, só se consegue ler, os dois últimos números: 01.
No total, contabilizo 22 mortos (não se incluem aqui as baixas mortais sofridas pelos vários pelotões de milícias que estavam integrados no Sector L1 da Zona Leste). Falta-nos ainda os feridos graves, evacuados para o Hospitalar Militar (Bissau e Lisboa) bem como os feridos ligeiros, e todos os outros que, sem marcas visíveis no corpo, vieram com a morte na alma... cacimbados !
2. O David Guimarães (ex- Fur Mil da CART 2716 do BART 2917, Xitole, 1970/72), depois de analisar a fotografia, não tem dúvidas:
"o Furriel abaixo do Cunha - até me arrepiei agora - é exactamente o Quaresma, o furriel Quaresma que está ao meu lado na inagem em que eu apareço a tocar viola... Em cima não distingo bem o nome mas é o Alferes Ranger, do Xime (CART 2715).
"Todas as Companhias tinham um Alferes Ranger. É ele mesmo, o do Xime. Quando ia para sair para a última operação, teve uma exclamação:
- É hoje, é a última vez! - E foi foi mesmo. Dois tiros mataram-no quando estava sentado.... Evacuado, acabou por morrer no Hospital Militar.
"O outro, sim, é o Cunha. Coloca isto no blogue, é importante, Luís. Eles estão vivos e são bloguistas como nós...
"Pensar em quem morreu também é importante. Os momentos de guerra foram todos e esses também, aliás, foram os que nos marcaram mais.
"O Luís Moreira não sei se ainda lá estava em Bambadinca quando isso aconteceu. Mas ele que se lembre do Alferes Ranger do Xime. É ele, não há dúvida, que está a encabeçar essa negra lista que, tudo indica, estava organizada por posto hierárquico... Estava, porque hoje esse monumento já não existe em Bambadinca. Já não existia quando lá voltei em 2001".
3. Texto de L.G. :
Guiné > Zona Leste > Sector L1 > Bambadinca > 1972:
Aquartelamento de Bambadinca, sede do BART 3873 (e anteriormente, entre 1970 e 1972, do BART 2917 e, antes deste, do BCAÇ 2852, entre 1968 e 1970).
Monumento aos camaradas mortos em combate e à presença das NT em Bambadinca entre 1970 e 1972, incluindo o BART 2917 + Adidos: CCAÇ12, PEL CAC NAT 52, 53 e 54 e outros (a parte de debaixo do monumento é ilegível).
Presume-se que este singelo monumento tenha sido destruído a seguir à independência. Em Novembro de 2000, Bambadinca era sede de um batalhão do exército da Guiné-Bissau, de acordo com uma reportagem em vídeo feita por ex-combatentes portugueses que voltaram à Guiné-Bissau nessa altura, vídeo esse que visionei, graças às cópias em DVD que o Sousa de Castro magnanimamente me fez chegar pelo correio...
O mesmo monumento mostrado na foto do Manuel Ferreira, mas mostrando, ao fundo, as instalações dos oficiais portugueses (Comando + CCS + Alferes milicianos). Em frente destas ficavam a dos sargentos.
Este aquartelamento, novinho em folha, foi alvo de uma forte ataque do PAIGC em 31 de Março de 1969, como resposta à Op Lança Afiada, que envolveu cerca de milhar e meio de homens das NT (4). As instalações dos sargentos foram, por exemplo, atingidas.
© Sousa de Castro (2005)
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(1) Vd. post de 25 de Abril 2005 > Guiné 69/71 - VII: Memórias do inferno do Xime (Novembro de 1970)
(2) Vd. post de 8 de Agosto 2005 > Guiné 63/74 - CXLVI: Setembro/69 (Parte I) - Op Pato Rufia ou o primeiro golpe de mão da CCAÇ 12
(3) Vd. post de 23 Setembro 2005 > Guiné 63/74 - CCV: 1 morto e 6 feridos graves aos 20 meses (CCAÇ 12, Janeiro de 1971)
(4) Vd. post de 31 de Julho 2005 > Guiné 63/74 - CXXXI: As grandes operações de limpeza (Op Lança Afiada, Março de 1969)
blogue-fora-nada. homo socius ergo blogus [sum]. homem social logo blogador. em sociobloguês nos entendemos. o port(ug)al dos (por)tugas. a prova dos blogue-fora-nada. a guerra colonial. a guiné. do chacheu ao boe. de bissau a bambadinca. os cacimbados. o geba. o corubal. os rios. o macaréu da nossa revolta. o humor nosso de cada dia nos dai hoje.lá vamos blogando e rindo. e venham mais cinco (camaradas). e vieram tantos que isto se transformou numa caserna. a maior caserna virtual da Net!
07 outubro 2005
Guiné 63/74 - CCXXXIII: BART 2917 (Bambadinca, 1970/72): Monumento aos mortos em combate
Guiné > Região Leste > Bambadinca > s/d (1972, 1973 ou 1974): O Manuel Ferreira, soldado condutor auto, dos "Fantasmas do Xime" (CART 3494 do BART 3873, 1972/74), junto ao monumento aos mortos do Sector L1, erigido pelo BART 2917 (1970/72).
© Manuel Ferreira (2005)
1. Texto de Luís Graça:
Podem ver-se na fotografia em cima, quando ampliada, os nomes dos oito mortos do Batalhão de Artilharia, BART 2917, incluindo o Fur Mil Cunha e mais quatros combatentes da sua secção, mortos em 26 de Novembro de 1970, na região do Xime (Op Abencerragem Candente) (1).
Os restantes sãos mais 3 furriéis milicianos (ou 1 alferes e 2 furriéis: a imagem não é nítida).
Das unidades adidas ao BART 2917 (1970/72), vem em primeiro lugar a CCAÇ 12, com três mortos:
(i) o Sold Ieró Jaló, morto em 7 de Setembro de 1969, na Op Pato Rufia (2);
(ii) o Sold Cond Auto Soares, morto em Nhabijões, na sequência do rebentamento de uma mina anticarro, em 13 de Janeiro de 1970 (3);
e (iii) o Sold Sissé, este último já em data posterior ao fim da comissão dos quadros metropolitanos, originários da CCAÇ 2590, e que formaram a CCAÇ 12 (1969/71).
Outra unidade adida era o PEL CAÇ NAT 52, com 1 morto, seguido do PEL CAÇ NAT 54 (que esteve muito tempo em Missirá), com 6 mortos. Ainda se consegue ver o PEL NAT 63, com um morto. No caso da última unidade adida ao BART 2917, que teve 3 mortos, só se consegue ler, os dois últimos números: 01.
No total, contabilizo 22 mortos (não se incluem aqui as baixas mortais sofridas pelos vários pelotões de milícias que estavam integrados no Sector L1 da Zona Leste). Falta-nos ainda os feridos graves, evacuados para o Hospitalar Militar (Bissau e Lisboa) bem como os feridos ligeiros, e todos os outros que, sem marcas visíveis no corpo, vieram com a morte na alma... cacimbados !
2. O David Guimarães (ex- Fur Mil da CART 2716 do BART 2917, Xitole, 1970/72), depois de analisar a fotografia, não tem dúvidas:
"o Furriel abaixo do Cunha - até me arrepiei agora - é exactamente o Quaresma, o furriel Quaresma que está ao meu lado na inagem em que eu apareço a tocar viola... Em cima não distingo bem o nome mas é o Alferes Ranger, do Xime (CART 2715).
"Todas as Companhias tinham um Alferes Ranger. É ele mesmo, o do Xime. Quando ia para sair para a última operação, teve uma exclamação:
- É hoje, é a última vez! - E foi foi mesmo. Dois tiros mataram-no quando estava sentado.... Evacuado, acabou por morrer no Hospital Militar.
"O outro, sim, é o Cunha. Coloca isto no blogue, é importante, Luís. Eles estão vivos e são bloguistas como nós...
"Pensar em quem morreu também é importante. Os momentos de guerra foram todos e esses também, aliás, foram os que nos marcaram mais.
"O Luís Moreira não sei se ainda lá estava em Bambadinca quando isso aconteceu. Mas ele que se lembre do Alferes Ranger do Xime. É ele, não há dúvida, que está a encabeçar essa negra lista que, tudo indica, estava organizada por posto hierárquico... Estava, porque hoje esse monumento já não existe em Bambadinca. Já não existia quando lá voltei em 2001".
3. Texto de L.G. :
Guiné > Zona Leste > Sector L1 > Bambadinca > 1972:
Aquartelamento de Bambadinca, sede do BART 3873 (e anteriormente, entre 1970 e 1972, do BART 2917 e, antes deste, do BCAÇ 2852, entre 1968 e 1970).
Monumento aos camaradas mortos em combate e à presença das NT em Bambadinca entre 1970 e 1972, incluindo o BART 2917 + Adidos: CCAÇ12, PEL CAC NAT 52, 53 e 54 e outros (a parte de debaixo do monumento é ilegível).
Presume-se que este singelo monumento tenha sido destruído a seguir à independência. Em Novembro de 2000, Bambadinca era sede de um batalhão do exército da Guiné-Bissau, de acordo com uma reportagem em vídeo feita por ex-combatentes portugueses que voltaram à Guiné-Bissau nessa altura, vídeo esse que visionei, graças às cópias em DVD que o Sousa de Castro magnanimamente me fez chegar pelo correio...
O mesmo monumento mostrado na foto do Manuel Ferreira, mas mostrando, ao fundo, as instalações dos oficiais portugueses (Comando + CCS + Alferes milicianos). Em frente destas ficavam a dos sargentos.
Este aquartelamento, novinho em folha, foi alvo de uma forte ataque do PAIGC em 31 de Março de 1969, como resposta à Op Lança Afiada, que envolveu cerca de milhar e meio de homens das NT (4). As instalações dos sargentos foram, por exemplo, atingidas.
© Sousa de Castro (2005)
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(1) Vd. post de 25 de Abril 2005 > Guiné 69/71 - VII: Memórias do inferno do Xime (Novembro de 1970)
(2) Vd. post de 8 de Agosto 2005 > Guiné 63/74 - CXLVI: Setembro/69 (Parte I) - Op Pato Rufia ou o primeiro golpe de mão da CCAÇ 12
(3) Vd. post de 23 Setembro 2005 > Guiné 63/74 - CCV: 1 morto e 6 feridos graves aos 20 meses (CCAÇ 12, Janeiro de 1971)
(4) Vd. post de 31 de Julho 2005 > Guiné 63/74 - CXXXI: As grandes operações de limpeza (Op Lança Afiada, Março de 1969)
© Manuel Ferreira (2005)
1. Texto de Luís Graça:
Podem ver-se na fotografia em cima, quando ampliada, os nomes dos oito mortos do Batalhão de Artilharia, BART 2917, incluindo o Fur Mil Cunha e mais quatros combatentes da sua secção, mortos em 26 de Novembro de 1970, na região do Xime (Op Abencerragem Candente) (1).
Os restantes sãos mais 3 furriéis milicianos (ou 1 alferes e 2 furriéis: a imagem não é nítida).
Das unidades adidas ao BART 2917 (1970/72), vem em primeiro lugar a CCAÇ 12, com três mortos:
(i) o Sold Ieró Jaló, morto em 7 de Setembro de 1969, na Op Pato Rufia (2);
(ii) o Sold Cond Auto Soares, morto em Nhabijões, na sequência do rebentamento de uma mina anticarro, em 13 de Janeiro de 1970 (3);
e (iii) o Sold Sissé, este último já em data posterior ao fim da comissão dos quadros metropolitanos, originários da CCAÇ 2590, e que formaram a CCAÇ 12 (1969/71).
Outra unidade adida era o PEL CAÇ NAT 52, com 1 morto, seguido do PEL CAÇ NAT 54 (que esteve muito tempo em Missirá), com 6 mortos. Ainda se consegue ver o PEL NAT 63, com um morto. No caso da última unidade adida ao BART 2917, que teve 3 mortos, só se consegue ler, os dois últimos números: 01.
No total, contabilizo 22 mortos (não se incluem aqui as baixas mortais sofridas pelos vários pelotões de milícias que estavam integrados no Sector L1 da Zona Leste). Falta-nos ainda os feridos graves, evacuados para o Hospitalar Militar (Bissau e Lisboa) bem como os feridos ligeiros, e todos os outros que, sem marcas visíveis no corpo, vieram com a morte na alma... cacimbados !
2. O David Guimarães (ex- Fur Mil da CART 2716 do BART 2917, Xitole, 1970/72), depois de analisar a fotografia, não tem dúvidas:
"o Furriel abaixo do Cunha - até me arrepiei agora - é exactamente o Quaresma, o furriel Quaresma que está ao meu lado na inagem em que eu apareço a tocar viola... Em cima não distingo bem o nome mas é o Alferes Ranger, do Xime (CART 2715).
"Todas as Companhias tinham um Alferes Ranger. É ele mesmo, o do Xime. Quando ia para sair para a última operação, teve uma exclamação:
- É hoje, é a última vez! - E foi foi mesmo. Dois tiros mataram-no quando estava sentado.... Evacuado, acabou por morrer no Hospital Militar.
"O outro, sim, é o Cunha. Coloca isto no blogue, é importante, Luís. Eles estão vivos e são bloguistas como nós...
"Pensar em quem morreu também é importante. Os momentos de guerra foram todos e esses também, aliás, foram os que nos marcaram mais.
"O Luís Moreira não sei se ainda lá estava em Bambadinca quando isso aconteceu. Mas ele que se lembre do Alferes Ranger do Xime. É ele, não há dúvida, que está a encabeçar essa negra lista que, tudo indica, estava organizada por posto hierárquico... Estava, porque hoje esse monumento já não existe em Bambadinca. Já não existia quando lá voltei em 2001".
3. Texto de L.G. :
Guiné > Zona Leste > Sector L1 > Bambadinca > 1972:
Aquartelamento de Bambadinca, sede do BART 3873 (e anteriormente, entre 1970 e 1972, do BART 2917 e, antes deste, do BCAÇ 2852, entre 1968 e 1970).
Monumento aos camaradas mortos em combate e à presença das NT em Bambadinca entre 1970 e 1972, incluindo o BART 2917 + Adidos: CCAÇ12, PEL CAC NAT 52, 53 e 54 e outros (a parte de debaixo do monumento é ilegível).
Presume-se que este singelo monumento tenha sido destruído a seguir à independência. Em Novembro de 2000, Bambadinca era sede de um batalhão do exército da Guiné-Bissau, de acordo com uma reportagem em vídeo feita por ex-combatentes portugueses que voltaram à Guiné-Bissau nessa altura, vídeo esse que visionei, graças às cópias em DVD que o Sousa de Castro magnanimamente me fez chegar pelo correio...
O mesmo monumento mostrado na foto do Manuel Ferreira, mas mostrando, ao fundo, as instalações dos oficiais portugueses (Comando + CCS + Alferes milicianos). Em frente destas ficavam a dos sargentos.
Este aquartelamento, novinho em folha, foi alvo de uma forte ataque do PAIGC em 31 de Março de 1969, como resposta à Op Lança Afiada, que envolveu cerca de milhar e meio de homens das NT (4). As instalações dos sargentos foram, por exemplo, atingidas.
© Sousa de Castro (2005)
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(1) Vd. post de 25 de Abril 2005 > Guiné 69/71 - VII: Memórias do inferno do Xime (Novembro de 1970)
(2) Vd. post de 8 de Agosto 2005 > Guiné 63/74 - CXLVI: Setembro/69 (Parte I) - Op Pato Rufia ou o primeiro golpe de mão da CCAÇ 12
(3) Vd. post de 23 Setembro 2005 > Guiné 63/74 - CCV: 1 morto e 6 feridos graves aos 20 meses (CCAÇ 12, Janeiro de 1971)
(4) Vd. post de 31 de Julho 2005 > Guiné 63/74 - CXXXI: As grandes operações de limpeza (Op Lança Afiada, Março de 1969)
06 outubro 2005
Guiné 63/74 - CCXXXII: Os sitiados de Guileje
João António Tunes, Alferes Miliciano de Transmissões. Andou, de 1969 a 1971, por vários sítios da Guiné (não diz com quem...): Pelundo, Teixeira Pinto, Catió, Guileje, Bissau...
© João Tunes (2005)
Texto do João Tunes:
Obrigado, Jorge (1), pela informação. Vivi uma pequena parte (mas marcante e bem) da odisseia de Guiledje (2). Como o quartel estava sob a jurisdição do batalhão sedeado em Catió (assim como Gadamael e Cacine), eu tinha de lá ir uma vez por mês (ficando lá,uma semana) para ver como estavam as transmissões e mudar as cifras das mensagens e esperar por transporte de regresso a Catió. Porque, é claro que só lá chegava e de lá vinha por via aérea. E enquanto lá estava era "sempre a assoar". E julgo que em nenhum outro lugar da Guiné se sofreu tanto a intensidade e a impotência da guerra.
Excelente ideia a deste projecto a que, julgo, devemos dar todo o apoio. E bem me parece merecido que, pelo que se passou em Guiledje, se concentre neste projecto o apoio de todos os que combateram na Guiné (independentemente da localização que lhes calhou em sorte), construindo aí um memorial aos que de um e outro lado se pegaram com armas na mão. Melhor será que uns andarem às voltas com Mansoa, outros com Bula, outros com Pelundo, outros com...
Em tempos, Abril de 2004, coloquei um post em que recordo algumas sensações sobre Guiledje e que me permito transcrever.
Abraços para todos.
João Tunes
Guiné-Bissau > Foto aérea do antigo aquartelamento de Guileje (c. 1973)
© AD - Acção para o Desenvolvimento (2005)
Um voo com muita valentia, por João Tunes (Blogue Bota Acima, 7 de Abril de 2004)
O Tenente Aviador Aparício, lenço azul ao pescoço e ar de quem está meio cá meio lá, entre a terra e o céu, aterra a Dornier (3) na pista de terra batida de Catió. Quando encontra o primeiro militar que o foi receber, diz-lhe, rindo-se:
- Então, aqui come-se e bebe-se? - Claro que havia. Havia sempre para o Tenente Aparício.
O aviador é levado, de jipe, ao bar de oficiais e são-lhe servidas as melhores iguarias disponíveis, acompanhadas de cervejas bem geladas. Sabia-se do voo que já era, aliás, aguardado ansiosamente há vários dias. Os aviadores eram sempre recebidos como VIPs na messe de oficiais do batalhão de Catió, lugar que, na maior parte do ano, só tinha ligações com o exterior pelo ar. O aterrar de um avião ou de um heli era sempre motivo especial e que comportava a emoção de confirmar que Catió existia no mapa.
Entre todos os aviadores em serviço na Guiné, o marado do Tenente Aparício era o mais festejado e o mais bem-vindo. Não por ser marado mas por ser o mais marado de todos, tanto que era o único que se dispunha a aterrar de Dornier em Guileje. E Guileje era a posição mais martirizada e mais isolada da área de intervenção do batalhão e em toda a Guiné. Por causa disso, a tropa encaixava bem as risadas sem motivo e uma ou outra frase desconexa que ia largando, pelo valor único que ele representava para o batalhão e para o pessoal de Guileje.
Após meia hora a descansar, a comer e a beber, o Tenente Aparício ajeitou o lenço azul e levantou-se:
- Vamos a isto -, disse com os olhos a brilharem. Se era o único que aterrava em Guileje, aquele era o sítio onde ele mais gostava de ir. Cada viagem era uma aventura. E o Aparício adorava aventuras.
Carregado o correio, medicamentos, algumas peças e acessórios, tudo em quantidade limitada por causa do pouco peso que a aeronave podia transportar, o Tenente Aparício despediu-se. E mandou-me subir. Naquele dia eu ia ser seu companheiro de viagem até Guileje.
- Vamos a isto -, repetiu, repetindo também uma nova risada.
João Tunes, "sempre fardado": ontem de verde-rubro, hoje de vemelho, de águia ao peito...
© João Tunes (2005)
Ia para passar uma semana em Guileje, como fazia quase todos os meses, para tratar de problemas com as transmissões e trocar os códigos das cifras da criptografia. E, daquela vez, seria companheiro de viagem do Tenente Aparício. E uma ida a Guileje era sempre uma emoção, pelo risco e por rever os camaradas martirizados e isolados bem junto da fronteira com a Guiné-Conacri. Para mais, com o aviador mais marado da Guiné.
O aviador conduziu a aeronave com os jeitos e o ar de condutor habituado a uma estrada de todos os dias. E ia sempre a rir. De repente, a janela da Dornier do meu lado salta e desaparece. O ar entra em turbilhão e faz esvoaçar toda a papelada solta. O aviador riu-se ainda mais. Como tendo achado que aquele incidente só ia tornar mais insólita e mais típica aquela viagem e ainda dava para gozar com a cara azulada da preocupação do seu companheiro inquieto e que duvidava que, sem janela, aquela geringonça se pudesse aguentar no ar. O aviador comentou, contendo o riso:
- Eu bem disse na Base que essa merda estava mal apertada, mas não faz mal, o avião não cai, ficamos é com as ideias mais frescas.
A viagem decorreu, num regalo de vista sobre as matas luxuriantes de verde intenso como era típico do sul da Guiné, permanentemente atravessadas por enormes e serpenteantes cursos de água. Sempre a sobrevoar uma zona controlada pelo PAIGC. É que, no sul, tirando os quartéis isolados e sitiados de Catió, Guileje, Gadamael e Cacine, todos sob o comando militar de Catió, a zona era inteiramente controlada por guerrilheiros. Estes, só eram contrariados no seu domínio pelo exército português através de bombardeamentos aéreos, fogo de artilharia e surtidas temporárias das forças especiais. E isto durou até o PAIGC receber os mísseis dos soviéticos, porque, a partir daí, todos os aviadores se recusaram a voar no sul. Mas isso foi mais tarde (4), já o Aparício de lá tinha saído. Voar, naquela zona, era um desafio permanente às clássicas antiaéreas e havia que confiar na divina providência ou coisa do género. Naquela viagem, o risco era o costume, a beleza da paisagem idem, só a ventania dentro da cabine estava fora da rotina.
As palmeiras da periferia do quartel de Guileje perfilaram-se na frente da Dornier. À frente delas, distinguia-se o que parecia ser um quartel em estado degradado e meio despedaçado com uma bandeira portuguesa comida pelo sol e rota nos cantos, içada no meio dos casinhotos. O avião fez uma rápida volta de reconhecimento, rasou as copas das palmeiras, baixou repentinamente de altitude na clareira entre o palmeiral e o quartel, apontou o nariz direito a uma espécie de campo de futebol em terra batida, aterrou num movimento brusco e parou a poucos metros de uma carcaça de outra antiga Dornier que, antes, não tinha conseguido parar a tempo e se espatifara contra o muro do quartel. Era este risco permanente de as aeronaves imitarem a sua irmã espatifada que levava a que todos os camaradas do Aparício se recusassem a aterrar em Guileje. Mas ele preferia aquela viagem sobre todas as coisas na vida. Há homens para tudo, é o que vale aos abandonados pela sorte.
Indolentemente, alguns soldados montaram segurança à Dornier. Sem dirigirem palavra aos recém-chegados. Rostos fechados, olhares distantes e desinteresse ostensivo. O Tenente Aparício não queria sair do avião pois tinha de regressar a Bissau enquanto era dia. Só deu tempo para descer e tirar a carga destinada a Guileje. A guarda estava montada, G3 carregadas ao ombro, nada mais. Nenhum oficial ou graduado apareceu e os soldados da guarda não falavam. Disse alto e com bom som:
- Então não descarregam as vossas coisas? Porra, pelo menos, tirem o vosso correio.- Nada de reacção. Tivemos de ser, eu e o Aparício, que resolvemos o impasse mandando com os embrulhos e o saco do correio para o chão da pista, para que a Dornier pudesse regressar vazia.
Os militares em Guileje queriam lá saber das peças e dos acessórios. Inclusive, não mostravam qualquer interesse em ler as cartas dos familiares. Queriam lá saber da família. Ali, naquele sítio, nada interessava. Se calhar, já nem estavam interessados em sair dali. Talvez porque achassem que já não eram pessoas mas ratos metidos dentro de uma ratoeira, destinados a apanhar porrada, só apanhar porrada.
O Tenente Aviador Aparício regressou a Bissau sem a janela do lado direito. Que se lixasse o raio da janela.
- Talvez tenha acertado na cabeça do Nino -, disse com voz sumida. E levantou voo rumo a Bissau. Sem se rir. Talvez porque achasse que tinha visto, não uma companhia de militares portugueses, mas sim um bando de humanóides sem vontade de viver.
Enclausurados dentro do quartel, morteirada todos os dias em cima, com baixas quando iam buscar água a um quilómetro, comendo com uma perna fora da mesa para se atirarem para uma vala quando a primeira granada caísse, os militares de Guileje sentiam-se mais perto de outra vida que da vida vivida.
Os que não estavam malucos por lá andavam perto. Saudável, mesmo saudável, não havia quem servisse de amostra. O único divertimento era juntarem-se à volta de um bidão cheio de água do pântano que trazia meia dúzia de peixes minúsculos, dobrarem alfinetes, amarrá-los a uma linha, meterem uma côdea de pão em cada alfinete e tentarem pescar os ínfimos peixes. Cada um que apanhava um peixito, contava alto o seu score de pescador e voltava a deitar o peixe para dentro do bidão antes que morresse e o jogo tivesse de acabar por falta de motivo. E ali estavam horas naquilo, só se ouvindo, uma vez por outra, uma voz dizer oito, ou cinco, ou dez. No fim, nem o campeão se interessava por dizer que tinha sido ele a ganhar o concurso de pescaria. Em Guileje, ninguém se atrevia a dizer que ganhava o quer que fosse. Ali, a sensação era que só se perdia.
Perguntei pelo Alferes Médico Gouveia, pândego como poucos e meu companheiro inseparável na viagem de vinda no Niassa.
- Já cá não mora-, foi a resposta seca que obtive.
Só muito mais tarde me explicaram a sorte do meu amigo médico. O Alferes Médico Gouveia, quando foi destacado para Guileje, declarou toda a companhia em baixa psiquiátrica e requereu a sua substituição imediata.
- Está tudo maluco -, afirmou com a sua autoridade de médico. Ninguém lhe passou cartão. Ao fim de estar três meses em Guileje, o Alferes Médico teve autorização para ir passar férias a Portugal. Quando chegou a Bissau, exigiu que uma auto-metralhadora fosse disponibilizada para o levar à pista para embarcar no avião da TAP. Oficiais amigos conseguiram arranjar maneira de lhe fazer a vontade. E foi dentro de um blindado ligeiro que o Alferes Médico Gouveia se aproximou da escada de acesso ao avião pousado na pista civil de Bissau. Saiu do blindado, subiu a escada do avião, no cimo voltou-se, fez uma continência para a linha do horizonte e embarcou. Não regressou. Durante as férias, foi visto por uma junta médica e considerado inapto para o serviço militar. E safou-se de mais Guileje e de mais Guiné. Estava mais maluco que os malucos que ele não conseguira evacuar.
Muitas vezes mais haveria de fazer companhia ao Tenente Aviador Aparício, nos seus voos aventureiros pelos céus da Guiné. Mas a sensação de voar sem janela, essa nunca se repetiu. Repetia-se, isso sim, o resto: o aviador ria-se, sem jeito nem propósito, até chegar a Guileje, voltava sempre calado e de rosto fechado. Mas, continuava a ser o único que aterrava uma Dornier na pista de Guileje. Enquanto esteve na Guiné, ninguém quis disputar o título de aviador mais marado que pertencia, com todo o direito, ao Tenente Aviador Aparício.
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Notas de L.G.
(1) Jorge Neto. vd. post anterior, com a data de hoje > Guiné 63/74 - CCXXXI: Projecto Guileje... ou o triunfo da vida sobre a morte
(2) Dornier DO-27. Segundo a página do João Gil, dedicada a "algumas aeronaves militares usadas na Guerra Colonial em Moçambique" (T-6, Do-27, Fiat g-91, Noratlas, etc.), a Dornier DO-27 "foi o primeiro avião feito na Alemanha (Oeste) depois da Grande Guerra, seguindo o mesmo conceito do Fieseller Storch. Foram manufacturados 628, e tanto teve uso civil como militar". Citando como fonte a FAP, o autor diz que "os aviões Do 27, de que a Força Aérea teve 133 exemplares nas versões A3 e A4, começaram a ser recebidos em 1961", tendo sido "adquiridos para operação no Ultramar, em missões de transporte ligeiro, evacuação sanitária e reconhecimento armado, para o que eram equipados com lança foguetes".
Ainda segundo a mesma fonte, eis algumas das especificações do Dornier DO-27:
Motor: 270 hp;Envergadura: 12,00 m; Comprimento; 9,54 m; Altura: 3,28 m; Superfície Alar: 19,40 m2; Peso vazio: 983 Kg; Peso equipado: 1570 Kg; Velocidade máxima: 250 km/h; Raio de acção; 870 km; Razão de subida: 198 m/min; Tecto de serviço: 5500 m; Tripulação: 1 + 5. Ver ainda página, em inglês, dedicada ao DO27
(3) Guiledje ou Guileje ? Perguntei ao Ciberdúvidas da Língua Portuguesa qual é a grafia correcta. No tempo dos tugas, escrevia-se Guileje. Hoje, os guineenses e os cooperantes portugueses na Guiné-Bissau tendem a escrever Guiledje (ou até Guiledge). Em que é que ficamos ? Aguardo a resposta.
(4) Abril de 1973
© João Tunes (2005)
Texto do João Tunes:
Obrigado, Jorge (1), pela informação. Vivi uma pequena parte (mas marcante e bem) da odisseia de Guiledje (2). Como o quartel estava sob a jurisdição do batalhão sedeado em Catió (assim como Gadamael e Cacine), eu tinha de lá ir uma vez por mês (ficando lá,uma semana) para ver como estavam as transmissões e mudar as cifras das mensagens e esperar por transporte de regresso a Catió. Porque, é claro que só lá chegava e de lá vinha por via aérea. E enquanto lá estava era "sempre a assoar". E julgo que em nenhum outro lugar da Guiné se sofreu tanto a intensidade e a impotência da guerra.
Excelente ideia a deste projecto a que, julgo, devemos dar todo o apoio. E bem me parece merecido que, pelo que se passou em Guiledje, se concentre neste projecto o apoio de todos os que combateram na Guiné (independentemente da localização que lhes calhou em sorte), construindo aí um memorial aos que de um e outro lado se pegaram com armas na mão. Melhor será que uns andarem às voltas com Mansoa, outros com Bula, outros com Pelundo, outros com...
Em tempos, Abril de 2004, coloquei um post em que recordo algumas sensações sobre Guiledje e que me permito transcrever.
Abraços para todos.
João Tunes
Guiné-Bissau > Foto aérea do antigo aquartelamento de Guileje (c. 1973)
© AD - Acção para o Desenvolvimento (2005)
Um voo com muita valentia, por João Tunes (Blogue Bota Acima, 7 de Abril de 2004)
O Tenente Aviador Aparício, lenço azul ao pescoço e ar de quem está meio cá meio lá, entre a terra e o céu, aterra a Dornier (3) na pista de terra batida de Catió. Quando encontra o primeiro militar que o foi receber, diz-lhe, rindo-se:
- Então, aqui come-se e bebe-se? - Claro que havia. Havia sempre para o Tenente Aparício.
O aviador é levado, de jipe, ao bar de oficiais e são-lhe servidas as melhores iguarias disponíveis, acompanhadas de cervejas bem geladas. Sabia-se do voo que já era, aliás, aguardado ansiosamente há vários dias. Os aviadores eram sempre recebidos como VIPs na messe de oficiais do batalhão de Catió, lugar que, na maior parte do ano, só tinha ligações com o exterior pelo ar. O aterrar de um avião ou de um heli era sempre motivo especial e que comportava a emoção de confirmar que Catió existia no mapa.
Entre todos os aviadores em serviço na Guiné, o marado do Tenente Aparício era o mais festejado e o mais bem-vindo. Não por ser marado mas por ser o mais marado de todos, tanto que era o único que se dispunha a aterrar de Dornier em Guileje. E Guileje era a posição mais martirizada e mais isolada da área de intervenção do batalhão e em toda a Guiné. Por causa disso, a tropa encaixava bem as risadas sem motivo e uma ou outra frase desconexa que ia largando, pelo valor único que ele representava para o batalhão e para o pessoal de Guileje.
Após meia hora a descansar, a comer e a beber, o Tenente Aparício ajeitou o lenço azul e levantou-se:
- Vamos a isto -, disse com os olhos a brilharem. Se era o único que aterrava em Guileje, aquele era o sítio onde ele mais gostava de ir. Cada viagem era uma aventura. E o Aparício adorava aventuras.
Carregado o correio, medicamentos, algumas peças e acessórios, tudo em quantidade limitada por causa do pouco peso que a aeronave podia transportar, o Tenente Aparício despediu-se. E mandou-me subir. Naquele dia eu ia ser seu companheiro de viagem até Guileje.
- Vamos a isto -, repetiu, repetindo também uma nova risada.
João Tunes, "sempre fardado": ontem de verde-rubro, hoje de vemelho, de águia ao peito...
© João Tunes (2005)
Ia para passar uma semana em Guileje, como fazia quase todos os meses, para tratar de problemas com as transmissões e trocar os códigos das cifras da criptografia. E, daquela vez, seria companheiro de viagem do Tenente Aparício. E uma ida a Guileje era sempre uma emoção, pelo risco e por rever os camaradas martirizados e isolados bem junto da fronteira com a Guiné-Conacri. Para mais, com o aviador mais marado da Guiné.
O aviador conduziu a aeronave com os jeitos e o ar de condutor habituado a uma estrada de todos os dias. E ia sempre a rir. De repente, a janela da Dornier do meu lado salta e desaparece. O ar entra em turbilhão e faz esvoaçar toda a papelada solta. O aviador riu-se ainda mais. Como tendo achado que aquele incidente só ia tornar mais insólita e mais típica aquela viagem e ainda dava para gozar com a cara azulada da preocupação do seu companheiro inquieto e que duvidava que, sem janela, aquela geringonça se pudesse aguentar no ar. O aviador comentou, contendo o riso:
- Eu bem disse na Base que essa merda estava mal apertada, mas não faz mal, o avião não cai, ficamos é com as ideias mais frescas.
A viagem decorreu, num regalo de vista sobre as matas luxuriantes de verde intenso como era típico do sul da Guiné, permanentemente atravessadas por enormes e serpenteantes cursos de água. Sempre a sobrevoar uma zona controlada pelo PAIGC. É que, no sul, tirando os quartéis isolados e sitiados de Catió, Guileje, Gadamael e Cacine, todos sob o comando militar de Catió, a zona era inteiramente controlada por guerrilheiros. Estes, só eram contrariados no seu domínio pelo exército português através de bombardeamentos aéreos, fogo de artilharia e surtidas temporárias das forças especiais. E isto durou até o PAIGC receber os mísseis dos soviéticos, porque, a partir daí, todos os aviadores se recusaram a voar no sul. Mas isso foi mais tarde (4), já o Aparício de lá tinha saído. Voar, naquela zona, era um desafio permanente às clássicas antiaéreas e havia que confiar na divina providência ou coisa do género. Naquela viagem, o risco era o costume, a beleza da paisagem idem, só a ventania dentro da cabine estava fora da rotina.
As palmeiras da periferia do quartel de Guileje perfilaram-se na frente da Dornier. À frente delas, distinguia-se o que parecia ser um quartel em estado degradado e meio despedaçado com uma bandeira portuguesa comida pelo sol e rota nos cantos, içada no meio dos casinhotos. O avião fez uma rápida volta de reconhecimento, rasou as copas das palmeiras, baixou repentinamente de altitude na clareira entre o palmeiral e o quartel, apontou o nariz direito a uma espécie de campo de futebol em terra batida, aterrou num movimento brusco e parou a poucos metros de uma carcaça de outra antiga Dornier que, antes, não tinha conseguido parar a tempo e se espatifara contra o muro do quartel. Era este risco permanente de as aeronaves imitarem a sua irmã espatifada que levava a que todos os camaradas do Aparício se recusassem a aterrar em Guileje. Mas ele preferia aquela viagem sobre todas as coisas na vida. Há homens para tudo, é o que vale aos abandonados pela sorte.
Indolentemente, alguns soldados montaram segurança à Dornier. Sem dirigirem palavra aos recém-chegados. Rostos fechados, olhares distantes e desinteresse ostensivo. O Tenente Aparício não queria sair do avião pois tinha de regressar a Bissau enquanto era dia. Só deu tempo para descer e tirar a carga destinada a Guileje. A guarda estava montada, G3 carregadas ao ombro, nada mais. Nenhum oficial ou graduado apareceu e os soldados da guarda não falavam. Disse alto e com bom som:
- Então não descarregam as vossas coisas? Porra, pelo menos, tirem o vosso correio.- Nada de reacção. Tivemos de ser, eu e o Aparício, que resolvemos o impasse mandando com os embrulhos e o saco do correio para o chão da pista, para que a Dornier pudesse regressar vazia.
Os militares em Guileje queriam lá saber das peças e dos acessórios. Inclusive, não mostravam qualquer interesse em ler as cartas dos familiares. Queriam lá saber da família. Ali, naquele sítio, nada interessava. Se calhar, já nem estavam interessados em sair dali. Talvez porque achassem que já não eram pessoas mas ratos metidos dentro de uma ratoeira, destinados a apanhar porrada, só apanhar porrada.
O Tenente Aviador Aparício regressou a Bissau sem a janela do lado direito. Que se lixasse o raio da janela.
- Talvez tenha acertado na cabeça do Nino -, disse com voz sumida. E levantou voo rumo a Bissau. Sem se rir. Talvez porque achasse que tinha visto, não uma companhia de militares portugueses, mas sim um bando de humanóides sem vontade de viver.
Enclausurados dentro do quartel, morteirada todos os dias em cima, com baixas quando iam buscar água a um quilómetro, comendo com uma perna fora da mesa para se atirarem para uma vala quando a primeira granada caísse, os militares de Guileje sentiam-se mais perto de outra vida que da vida vivida.
Os que não estavam malucos por lá andavam perto. Saudável, mesmo saudável, não havia quem servisse de amostra. O único divertimento era juntarem-se à volta de um bidão cheio de água do pântano que trazia meia dúzia de peixes minúsculos, dobrarem alfinetes, amarrá-los a uma linha, meterem uma côdea de pão em cada alfinete e tentarem pescar os ínfimos peixes. Cada um que apanhava um peixito, contava alto o seu score de pescador e voltava a deitar o peixe para dentro do bidão antes que morresse e o jogo tivesse de acabar por falta de motivo. E ali estavam horas naquilo, só se ouvindo, uma vez por outra, uma voz dizer oito, ou cinco, ou dez. No fim, nem o campeão se interessava por dizer que tinha sido ele a ganhar o concurso de pescaria. Em Guileje, ninguém se atrevia a dizer que ganhava o quer que fosse. Ali, a sensação era que só se perdia.
Perguntei pelo Alferes Médico Gouveia, pândego como poucos e meu companheiro inseparável na viagem de vinda no Niassa.
- Já cá não mora-, foi a resposta seca que obtive.
Só muito mais tarde me explicaram a sorte do meu amigo médico. O Alferes Médico Gouveia, quando foi destacado para Guileje, declarou toda a companhia em baixa psiquiátrica e requereu a sua substituição imediata.
- Está tudo maluco -, afirmou com a sua autoridade de médico. Ninguém lhe passou cartão. Ao fim de estar três meses em Guileje, o Alferes Médico teve autorização para ir passar férias a Portugal. Quando chegou a Bissau, exigiu que uma auto-metralhadora fosse disponibilizada para o levar à pista para embarcar no avião da TAP. Oficiais amigos conseguiram arranjar maneira de lhe fazer a vontade. E foi dentro de um blindado ligeiro que o Alferes Médico Gouveia se aproximou da escada de acesso ao avião pousado na pista civil de Bissau. Saiu do blindado, subiu a escada do avião, no cimo voltou-se, fez uma continência para a linha do horizonte e embarcou. Não regressou. Durante as férias, foi visto por uma junta médica e considerado inapto para o serviço militar. E safou-se de mais Guileje e de mais Guiné. Estava mais maluco que os malucos que ele não conseguira evacuar.
Muitas vezes mais haveria de fazer companhia ao Tenente Aviador Aparício, nos seus voos aventureiros pelos céus da Guiné. Mas a sensação de voar sem janela, essa nunca se repetiu. Repetia-se, isso sim, o resto: o aviador ria-se, sem jeito nem propósito, até chegar a Guileje, voltava sempre calado e de rosto fechado. Mas, continuava a ser o único que aterrava uma Dornier na pista de Guileje. Enquanto esteve na Guiné, ninguém quis disputar o título de aviador mais marado que pertencia, com todo o direito, ao Tenente Aviador Aparício.
____________
Notas de L.G.
(1) Jorge Neto. vd. post anterior, com a data de hoje > Guiné 63/74 - CCXXXI: Projecto Guileje... ou o triunfo da vida sobre a morte
(2) Dornier DO-27. Segundo a página do João Gil, dedicada a "algumas aeronaves militares usadas na Guerra Colonial em Moçambique" (T-6, Do-27, Fiat g-91, Noratlas, etc.), a Dornier DO-27 "foi o primeiro avião feito na Alemanha (Oeste) depois da Grande Guerra, seguindo o mesmo conceito do Fieseller Storch. Foram manufacturados 628, e tanto teve uso civil como militar". Citando como fonte a FAP, o autor diz que "os aviões Do 27, de que a Força Aérea teve 133 exemplares nas versões A3 e A4, começaram a ser recebidos em 1961", tendo sido "adquiridos para operação no Ultramar, em missões de transporte ligeiro, evacuação sanitária e reconhecimento armado, para o que eram equipados com lança foguetes".
Ainda segundo a mesma fonte, eis algumas das especificações do Dornier DO-27:
Motor: 270 hp;Envergadura: 12,00 m; Comprimento; 9,54 m; Altura: 3,28 m; Superfície Alar: 19,40 m2; Peso vazio: 983 Kg; Peso equipado: 1570 Kg; Velocidade máxima: 250 km/h; Raio de acção; 870 km; Razão de subida: 198 m/min; Tecto de serviço: 5500 m; Tripulação: 1 + 5. Ver ainda página, em inglês, dedicada ao DO27
(3) Guiledje ou Guileje ? Perguntei ao Ciberdúvidas da Língua Portuguesa qual é a grafia correcta. No tempo dos tugas, escrevia-se Guileje. Hoje, os guineenses e os cooperantes portugueses na Guiné-Bissau tendem a escrever Guiledje (ou até Guiledge). Em que é que ficamos ? Aguardo a resposta.
(4) Abril de 1973
Guiné 63/74 - CCXXXII: Os sitiados de Guileje
João António Tunes, Alferes Miliciano de Transmissões. Andou, de 1969 a 1971, por vários sítios da Guiné (não diz com quem...): Pelundo, Teixeira Pinto, Catió, Guileje, Bissau...
© João Tunes (2005)
Texto do João Tunes:
Obrigado, Jorge (1), pela informação. Vivi uma pequena parte (mas marcante e bem) da odisseia de Guiledje (2). Como o quartel estava sob a jurisdição do batalhão sedeado em Catió (assim como Gadamael e Cacine), eu tinha de lá ir uma vez por mês (ficando lá,uma semana) para ver como estavam as transmissões e mudar as cifras das mensagens e esperar por transporte de regresso a Catió. Porque, é claro que só lá chegava e de lá vinha por via aérea. E enquanto lá estava era "sempre a assoar". E julgo que em nenhum outro lugar da Guiné se sofreu tanto a intensidade e a impotência da guerra.
Excelente ideia a deste projecto a que, julgo, devemos dar todo o apoio. E bem me parece merecido que, pelo que se passou em Guiledje, se concentre neste projecto o apoio de todos os que combateram na Guiné (independentemente da localização que lhes calhou em sorte), construindo aí um memorial aos que de um e outro lado se pegaram com armas na mão. Melhor será que uns andarem às voltas com Mansoa, outros com Bula, outros com Pelundo, outros com...
Em tempos, Abril de 2004, coloquei um post em que recordo algumas sensações sobre Guiledje e que me permito transcrever.
Abraços para todos.
João Tunes
Guiné-Bissau > Foto aérea do antigo aquartelamento de Guileje (c. 1973)
© AD - Acção para o Desenvolvimento (2005)
Um voo com muita valentia, por João Tunes (Blogue Bota Acima, 7 de Abril de 2004)
O Tenente Aviador Aparício, lenço azul ao pescoço e ar de quem está meio cá meio lá, entre a terra e o céu, aterra a Dornier (3) na pista de terra batida de Catió. Quando encontra o primeiro militar que o foi receber, diz-lhe, rindo-se:
- Então, aqui come-se e bebe-se? - Claro que havia. Havia sempre para o Tenente Aparício.
O aviador é levado, de jipe, ao bar de oficiais e são-lhe servidas as melhores iguarias disponíveis, acompanhadas de cervejas bem geladas. Sabia-se do voo que já era, aliás, aguardado ansiosamente há vários dias. Os aviadores eram sempre recebidos como VIPs na messe de oficiais do batalhão de Catió, lugar que, na maior parte do ano, só tinha ligações com o exterior pelo ar. O aterrar de um avião ou de um heli era sempre motivo especial e que comportava a emoção de confirmar que Catió existia no mapa.
Entre todos os aviadores em serviço na Guiné, o marado do Tenente Aparício era o mais festejado e o mais bem-vindo. Não por ser marado mas por ser o mais marado de todos, tanto que era o único que se dispunha a aterrar de Dornier em Guileje. E Guileje era a posição mais martirizada e mais isolada da área de intervenção do batalhão e em toda a Guiné. Por causa disso, a tropa encaixava bem as risadas sem motivo e uma ou outra frase desconexa que ia largando, pelo valor único que ele representava para o batalhão e para o pessoal de Guileje.
Após meia hora a descansar, a comer e a beber, o Tenente Aparício ajeitou o lenço azul e levantou-se:
- Vamos a isto -, disse com os olhos a brilharem. Se era o único que aterrava em Guileje, aquele era o sítio onde ele mais gostava de ir. Cada viagem era uma aventura. E o Aparício adorava aventuras.
Carregado o correio, medicamentos, algumas peças e acessórios, tudo em quantidade limitada por causa do pouco peso que a aeronave podia transportar, o Tenente Aparício despediu-se. E mandou-me subir. Naquele dia eu ia ser seu companheiro de viagem até Guileje.
- Vamos a isto -, repetiu, repetindo também uma nova risada.
João Tunes, "sempre fardado": ontem de verde-rubro, hoje de vemelho, de águia ao peito...
© João Tunes (2005)
Ia para passar uma semana em Guileje, como fazia quase todos os meses, para tratar de problemas com as transmissões e trocar os códigos das cifras da criptografia. E, daquela vez, seria companheiro de viagem do Tenente Aparício. E uma ida a Guileje era sempre uma emoção, pelo risco e por rever os camaradas martirizados e isolados bem junto da fronteira com a Guiné-Conacri. Para mais, com o aviador mais marado da Guiné.
O aviador conduziu a aeronave com os jeitos e o ar de condutor habituado a uma estrada de todos os dias. E ia sempre a rir. De repente, a janela da Dornier do meu lado salta e desaparece. O ar entra em turbilhão e faz esvoaçar toda a papelada solta. O aviador riu-se ainda mais. Como tendo achado que aquele incidente só ia tornar mais insólita e mais típica aquela viagem e ainda dava para gozar com a cara azulada da preocupação do seu companheiro inquieto e que duvidava que, sem janela, aquela geringonça se pudesse aguentar no ar. O aviador comentou, contendo o riso:
- Eu bem disse na Base que essa merda estava mal apertada, mas não faz mal, o avião não cai, ficamos é com as ideias mais frescas.
A viagem decorreu, num regalo de vista sobre as matas luxuriantes de verde intenso como era típico do sul da Guiné, permanentemente atravessadas por enormes e serpenteantes cursos de água. Sempre a sobrevoar uma zona controlada pelo PAIGC. É que, no sul, tirando os quartéis isolados e sitiados de Catió, Guileje, Gadamael e Cacine, todos sob o comando militar de Catió, a zona era inteiramente controlada por guerrilheiros. Estes, só eram contrariados no seu domínio pelo exército português através de bombardeamentos aéreos, fogo de artilharia e surtidas temporárias das forças especiais. E isto durou até o PAIGC receber os mísseis dos soviéticos, porque, a partir daí, todos os aviadores se recusaram a voar no sul. Mas isso foi mais tarde (4), já o Aparício de lá tinha saído. Voar, naquela zona, era um desafio permanente às clássicas antiaéreas e havia que confiar na divina providência ou coisa do género. Naquela viagem, o risco era o costume, a beleza da paisagem idem, só a ventania dentro da cabine estava fora da rotina.
As palmeiras da periferia do quartel de Guileje perfilaram-se na frente da Dornier. À frente delas, distinguia-se o que parecia ser um quartel em estado degradado e meio despedaçado com uma bandeira portuguesa comida pelo sol e rota nos cantos, içada no meio dos casinhotos. O avião fez uma rápida volta de reconhecimento, rasou as copas das palmeiras, baixou repentinamente de altitude na clareira entre o palmeiral e o quartel, apontou o nariz direito a uma espécie de campo de futebol em terra batida, aterrou num movimento brusco e parou a poucos metros de uma carcaça de outra antiga Dornier que, antes, não tinha conseguido parar a tempo e se espatifara contra o muro do quartel. Era este risco permanente de as aeronaves imitarem a sua irmã espatifada que levava a que todos os camaradas do Aparício se recusassem a aterrar em Guileje. Mas ele preferia aquela viagem sobre todas as coisas na vida. Há homens para tudo, é o que vale aos abandonados pela sorte.
Indolentemente, alguns soldados montaram segurança à Dornier. Sem dirigirem palavra aos recém-chegados. Rostos fechados, olhares distantes e desinteresse ostensivo. O Tenente Aparício não queria sair do avião pois tinha de regressar a Bissau enquanto era dia. Só deu tempo para descer e tirar a carga destinada a Guileje. A guarda estava montada, G3 carregadas ao ombro, nada mais. Nenhum oficial ou graduado apareceu e os soldados da guarda não falavam. Disse alto e com bom som:
- Então não descarregam as vossas coisas? Porra, pelo menos, tirem o vosso correio.- Nada de reacção. Tivemos de ser, eu e o Aparício, que resolvemos o impasse mandando com os embrulhos e o saco do correio para o chão da pista, para que a Dornier pudesse regressar vazia.
Os militares em Guileje queriam lá saber das peças e dos acessórios. Inclusive, não mostravam qualquer interesse em ler as cartas dos familiares. Queriam lá saber da família. Ali, naquele sítio, nada interessava. Se calhar, já nem estavam interessados em sair dali. Talvez porque achassem que já não eram pessoas mas ratos metidos dentro de uma ratoeira, destinados a apanhar porrada, só apanhar porrada.
O Tenente Aviador Aparício regressou a Bissau sem a janela do lado direito. Que se lixasse o raio da janela.
- Talvez tenha acertado na cabeça do Nino -, disse com voz sumida. E levantou voo rumo a Bissau. Sem se rir. Talvez porque achasse que tinha visto, não uma companhia de militares portugueses, mas sim um bando de humanóides sem vontade de viver.
Enclausurados dentro do quartel, morteirada todos os dias em cima, com baixas quando iam buscar água a um quilómetro, comendo com uma perna fora da mesa para se atirarem para uma vala quando a primeira granada caísse, os militares de Guileje sentiam-se mais perto de outra vida que da vida vivida.
Os que não estavam malucos por lá andavam perto. Saudável, mesmo saudável, não havia quem servisse de amostra. O único divertimento era juntarem-se à volta de um bidão cheio de água do pântano que trazia meia dúzia de peixes minúsculos, dobrarem alfinetes, amarrá-los a uma linha, meterem uma côdea de pão em cada alfinete e tentarem pescar os ínfimos peixes. Cada um que apanhava um peixito, contava alto o seu score de pescador e voltava a deitar o peixe para dentro do bidão antes que morresse e o jogo tivesse de acabar por falta de motivo. E ali estavam horas naquilo, só se ouvindo, uma vez por outra, uma voz dizer oito, ou cinco, ou dez. No fim, nem o campeão se interessava por dizer que tinha sido ele a ganhar o concurso de pescaria. Em Guileje, ninguém se atrevia a dizer que ganhava o quer que fosse. Ali, a sensação era que só se perdia.
Perguntei pelo Alferes Médico Gouveia, pândego como poucos e meu companheiro inseparável na viagem de vinda no Niassa.
- Já cá não mora-, foi a resposta seca que obtive.
Só muito mais tarde me explicaram a sorte do meu amigo médico. O Alferes Médico Gouveia, quando foi destacado para Guileje, declarou toda a companhia em baixa psiquiátrica e requereu a sua substituição imediata.
- Está tudo maluco -, afirmou com a sua autoridade de médico. Ninguém lhe passou cartão. Ao fim de estar três meses em Guileje, o Alferes Médico teve autorização para ir passar férias a Portugal. Quando chegou a Bissau, exigiu que uma auto-metralhadora fosse disponibilizada para o levar à pista para embarcar no avião da TAP. Oficiais amigos conseguiram arranjar maneira de lhe fazer a vontade. E foi dentro de um blindado ligeiro que o Alferes Médico Gouveia se aproximou da escada de acesso ao avião pousado na pista civil de Bissau. Saiu do blindado, subiu a escada do avião, no cimo voltou-se, fez uma continência para a linha do horizonte e embarcou. Não regressou. Durante as férias, foi visto por uma junta médica e considerado inapto para o serviço militar. E safou-se de mais Guileje e de mais Guiné. Estava mais maluco que os malucos que ele não conseguira evacuar.
Muitas vezes mais haveria de fazer companhia ao Tenente Aviador Aparício, nos seus voos aventureiros pelos céus da Guiné. Mas a sensação de voar sem janela, essa nunca se repetiu. Repetia-se, isso sim, o resto: o aviador ria-se, sem jeito nem propósito, até chegar a Guileje, voltava sempre calado e de rosto fechado. Mas, continuava a ser o único que aterrava uma Dornier na pista de Guileje. Enquanto esteve na Guiné, ninguém quis disputar o título de aviador mais marado que pertencia, com todo o direito, ao Tenente Aviador Aparício.
____________
Notas de L.G.
(1) Jorge Neto. vd. post anterior, com a data de hoje > Guiné 63/74 - CCXXXI: Projecto Guileje... ou o triunfo da vida sobre a morte
(2) Dornier DO-27. Segundo a página do João Gil, dedicada a "algumas aeronaves militares usadas na Guerra Colonial em Moçambique" (T-6, Do-27, Fiat g-91, Noratlas, etc.), a Dornier DO-27 "foi o primeiro avião feito na Alemanha (Oeste) depois da Grande Guerra, seguindo o mesmo conceito do Fieseller Storch. Foram manufacturados 628, e tanto teve uso civil como militar". Citando como fonte a FAP, o autor diz que "os aviões Do 27, de que a Força Aérea teve 133 exemplares nas versões A3 e A4, começaram a ser recebidos em 1961", tendo sido "adquiridos para operação no Ultramar, em missões de transporte ligeiro, evacuação sanitária e reconhecimento armado, para o que eram equipados com lança foguetes".
Ainda segundo a mesma fonte, eis algumas das especificações do Dornier DO-27:
Motor: 270 hp;Envergadura: 12,00 m; Comprimento; 9,54 m; Altura: 3,28 m; Superfície Alar: 19,40 m2; Peso vazio: 983 Kg; Peso equipado: 1570 Kg; Velocidade máxima: 250 km/h; Raio de acção; 870 km; Razão de subida: 198 m/min; Tecto de serviço: 5500 m; Tripulação: 1 + 5. Ver ainda página, em inglês, dedicada ao DO27
(3) Guiledje ou Guileje ? Perguntei ao Ciberdúvidas da Língua Portuguesa qual é a grafia correcta. No tempo dos tugas, escrevia-se Guileje. Hoje, os guineenses e os cooperantes portugueses na Guiné-Bissau tendem a escrever Guiledje (ou até Guiledge). Em que é que ficamos ? Aguardo a resposta.
(4) Abril de 1973
© João Tunes (2005)
Texto do João Tunes:
Obrigado, Jorge (1), pela informação. Vivi uma pequena parte (mas marcante e bem) da odisseia de Guiledje (2). Como o quartel estava sob a jurisdição do batalhão sedeado em Catió (assim como Gadamael e Cacine), eu tinha de lá ir uma vez por mês (ficando lá,uma semana) para ver como estavam as transmissões e mudar as cifras das mensagens e esperar por transporte de regresso a Catió. Porque, é claro que só lá chegava e de lá vinha por via aérea. E enquanto lá estava era "sempre a assoar". E julgo que em nenhum outro lugar da Guiné se sofreu tanto a intensidade e a impotência da guerra.
Excelente ideia a deste projecto a que, julgo, devemos dar todo o apoio. E bem me parece merecido que, pelo que se passou em Guiledje, se concentre neste projecto o apoio de todos os que combateram na Guiné (independentemente da localização que lhes calhou em sorte), construindo aí um memorial aos que de um e outro lado se pegaram com armas na mão. Melhor será que uns andarem às voltas com Mansoa, outros com Bula, outros com Pelundo, outros com...
Em tempos, Abril de 2004, coloquei um post em que recordo algumas sensações sobre Guiledje e que me permito transcrever.
Abraços para todos.
João Tunes
Guiné-Bissau > Foto aérea do antigo aquartelamento de Guileje (c. 1973)
© AD - Acção para o Desenvolvimento (2005)
Um voo com muita valentia, por João Tunes (Blogue Bota Acima, 7 de Abril de 2004)
O Tenente Aviador Aparício, lenço azul ao pescoço e ar de quem está meio cá meio lá, entre a terra e o céu, aterra a Dornier (3) na pista de terra batida de Catió. Quando encontra o primeiro militar que o foi receber, diz-lhe, rindo-se:
- Então, aqui come-se e bebe-se? - Claro que havia. Havia sempre para o Tenente Aparício.
O aviador é levado, de jipe, ao bar de oficiais e são-lhe servidas as melhores iguarias disponíveis, acompanhadas de cervejas bem geladas. Sabia-se do voo que já era, aliás, aguardado ansiosamente há vários dias. Os aviadores eram sempre recebidos como VIPs na messe de oficiais do batalhão de Catió, lugar que, na maior parte do ano, só tinha ligações com o exterior pelo ar. O aterrar de um avião ou de um heli era sempre motivo especial e que comportava a emoção de confirmar que Catió existia no mapa.
Entre todos os aviadores em serviço na Guiné, o marado do Tenente Aparício era o mais festejado e o mais bem-vindo. Não por ser marado mas por ser o mais marado de todos, tanto que era o único que se dispunha a aterrar de Dornier em Guileje. E Guileje era a posição mais martirizada e mais isolada da área de intervenção do batalhão e em toda a Guiné. Por causa disso, a tropa encaixava bem as risadas sem motivo e uma ou outra frase desconexa que ia largando, pelo valor único que ele representava para o batalhão e para o pessoal de Guileje.
Após meia hora a descansar, a comer e a beber, o Tenente Aparício ajeitou o lenço azul e levantou-se:
- Vamos a isto -, disse com os olhos a brilharem. Se era o único que aterrava em Guileje, aquele era o sítio onde ele mais gostava de ir. Cada viagem era uma aventura. E o Aparício adorava aventuras.
Carregado o correio, medicamentos, algumas peças e acessórios, tudo em quantidade limitada por causa do pouco peso que a aeronave podia transportar, o Tenente Aparício despediu-se. E mandou-me subir. Naquele dia eu ia ser seu companheiro de viagem até Guileje.
- Vamos a isto -, repetiu, repetindo também uma nova risada.
João Tunes, "sempre fardado": ontem de verde-rubro, hoje de vemelho, de águia ao peito...
© João Tunes (2005)
Ia para passar uma semana em Guileje, como fazia quase todos os meses, para tratar de problemas com as transmissões e trocar os códigos das cifras da criptografia. E, daquela vez, seria companheiro de viagem do Tenente Aparício. E uma ida a Guileje era sempre uma emoção, pelo risco e por rever os camaradas martirizados e isolados bem junto da fronteira com a Guiné-Conacri. Para mais, com o aviador mais marado da Guiné.
O aviador conduziu a aeronave com os jeitos e o ar de condutor habituado a uma estrada de todos os dias. E ia sempre a rir. De repente, a janela da Dornier do meu lado salta e desaparece. O ar entra em turbilhão e faz esvoaçar toda a papelada solta. O aviador riu-se ainda mais. Como tendo achado que aquele incidente só ia tornar mais insólita e mais típica aquela viagem e ainda dava para gozar com a cara azulada da preocupação do seu companheiro inquieto e que duvidava que, sem janela, aquela geringonça se pudesse aguentar no ar. O aviador comentou, contendo o riso:
- Eu bem disse na Base que essa merda estava mal apertada, mas não faz mal, o avião não cai, ficamos é com as ideias mais frescas.
A viagem decorreu, num regalo de vista sobre as matas luxuriantes de verde intenso como era típico do sul da Guiné, permanentemente atravessadas por enormes e serpenteantes cursos de água. Sempre a sobrevoar uma zona controlada pelo PAIGC. É que, no sul, tirando os quartéis isolados e sitiados de Catió, Guileje, Gadamael e Cacine, todos sob o comando militar de Catió, a zona era inteiramente controlada por guerrilheiros. Estes, só eram contrariados no seu domínio pelo exército português através de bombardeamentos aéreos, fogo de artilharia e surtidas temporárias das forças especiais. E isto durou até o PAIGC receber os mísseis dos soviéticos, porque, a partir daí, todos os aviadores se recusaram a voar no sul. Mas isso foi mais tarde (4), já o Aparício de lá tinha saído. Voar, naquela zona, era um desafio permanente às clássicas antiaéreas e havia que confiar na divina providência ou coisa do género. Naquela viagem, o risco era o costume, a beleza da paisagem idem, só a ventania dentro da cabine estava fora da rotina.
As palmeiras da periferia do quartel de Guileje perfilaram-se na frente da Dornier. À frente delas, distinguia-se o que parecia ser um quartel em estado degradado e meio despedaçado com uma bandeira portuguesa comida pelo sol e rota nos cantos, içada no meio dos casinhotos. O avião fez uma rápida volta de reconhecimento, rasou as copas das palmeiras, baixou repentinamente de altitude na clareira entre o palmeiral e o quartel, apontou o nariz direito a uma espécie de campo de futebol em terra batida, aterrou num movimento brusco e parou a poucos metros de uma carcaça de outra antiga Dornier que, antes, não tinha conseguido parar a tempo e se espatifara contra o muro do quartel. Era este risco permanente de as aeronaves imitarem a sua irmã espatifada que levava a que todos os camaradas do Aparício se recusassem a aterrar em Guileje. Mas ele preferia aquela viagem sobre todas as coisas na vida. Há homens para tudo, é o que vale aos abandonados pela sorte.
Indolentemente, alguns soldados montaram segurança à Dornier. Sem dirigirem palavra aos recém-chegados. Rostos fechados, olhares distantes e desinteresse ostensivo. O Tenente Aparício não queria sair do avião pois tinha de regressar a Bissau enquanto era dia. Só deu tempo para descer e tirar a carga destinada a Guileje. A guarda estava montada, G3 carregadas ao ombro, nada mais. Nenhum oficial ou graduado apareceu e os soldados da guarda não falavam. Disse alto e com bom som:
- Então não descarregam as vossas coisas? Porra, pelo menos, tirem o vosso correio.- Nada de reacção. Tivemos de ser, eu e o Aparício, que resolvemos o impasse mandando com os embrulhos e o saco do correio para o chão da pista, para que a Dornier pudesse regressar vazia.
Os militares em Guileje queriam lá saber das peças e dos acessórios. Inclusive, não mostravam qualquer interesse em ler as cartas dos familiares. Queriam lá saber da família. Ali, naquele sítio, nada interessava. Se calhar, já nem estavam interessados em sair dali. Talvez porque achassem que já não eram pessoas mas ratos metidos dentro de uma ratoeira, destinados a apanhar porrada, só apanhar porrada.
O Tenente Aviador Aparício regressou a Bissau sem a janela do lado direito. Que se lixasse o raio da janela.
- Talvez tenha acertado na cabeça do Nino -, disse com voz sumida. E levantou voo rumo a Bissau. Sem se rir. Talvez porque achasse que tinha visto, não uma companhia de militares portugueses, mas sim um bando de humanóides sem vontade de viver.
Enclausurados dentro do quartel, morteirada todos os dias em cima, com baixas quando iam buscar água a um quilómetro, comendo com uma perna fora da mesa para se atirarem para uma vala quando a primeira granada caísse, os militares de Guileje sentiam-se mais perto de outra vida que da vida vivida.
Os que não estavam malucos por lá andavam perto. Saudável, mesmo saudável, não havia quem servisse de amostra. O único divertimento era juntarem-se à volta de um bidão cheio de água do pântano que trazia meia dúzia de peixes minúsculos, dobrarem alfinetes, amarrá-los a uma linha, meterem uma côdea de pão em cada alfinete e tentarem pescar os ínfimos peixes. Cada um que apanhava um peixito, contava alto o seu score de pescador e voltava a deitar o peixe para dentro do bidão antes que morresse e o jogo tivesse de acabar por falta de motivo. E ali estavam horas naquilo, só se ouvindo, uma vez por outra, uma voz dizer oito, ou cinco, ou dez. No fim, nem o campeão se interessava por dizer que tinha sido ele a ganhar o concurso de pescaria. Em Guileje, ninguém se atrevia a dizer que ganhava o quer que fosse. Ali, a sensação era que só se perdia.
Perguntei pelo Alferes Médico Gouveia, pândego como poucos e meu companheiro inseparável na viagem de vinda no Niassa.
- Já cá não mora-, foi a resposta seca que obtive.
Só muito mais tarde me explicaram a sorte do meu amigo médico. O Alferes Médico Gouveia, quando foi destacado para Guileje, declarou toda a companhia em baixa psiquiátrica e requereu a sua substituição imediata.
- Está tudo maluco -, afirmou com a sua autoridade de médico. Ninguém lhe passou cartão. Ao fim de estar três meses em Guileje, o Alferes Médico teve autorização para ir passar férias a Portugal. Quando chegou a Bissau, exigiu que uma auto-metralhadora fosse disponibilizada para o levar à pista para embarcar no avião da TAP. Oficiais amigos conseguiram arranjar maneira de lhe fazer a vontade. E foi dentro de um blindado ligeiro que o Alferes Médico Gouveia se aproximou da escada de acesso ao avião pousado na pista civil de Bissau. Saiu do blindado, subiu a escada do avião, no cimo voltou-se, fez uma continência para a linha do horizonte e embarcou. Não regressou. Durante as férias, foi visto por uma junta médica e considerado inapto para o serviço militar. E safou-se de mais Guileje e de mais Guiné. Estava mais maluco que os malucos que ele não conseguira evacuar.
Muitas vezes mais haveria de fazer companhia ao Tenente Aviador Aparício, nos seus voos aventureiros pelos céus da Guiné. Mas a sensação de voar sem janela, essa nunca se repetiu. Repetia-se, isso sim, o resto: o aviador ria-se, sem jeito nem propósito, até chegar a Guileje, voltava sempre calado e de rosto fechado. Mas, continuava a ser o único que aterrava uma Dornier na pista de Guileje. Enquanto esteve na Guiné, ninguém quis disputar o título de aviador mais marado que pertencia, com todo o direito, ao Tenente Aviador Aparício.
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Notas de L.G.
(1) Jorge Neto. vd. post anterior, com a data de hoje > Guiné 63/74 - CCXXXI: Projecto Guileje... ou o triunfo da vida sobre a morte
(2) Dornier DO-27. Segundo a página do João Gil, dedicada a "algumas aeronaves militares usadas na Guerra Colonial em Moçambique" (T-6, Do-27, Fiat g-91, Noratlas, etc.), a Dornier DO-27 "foi o primeiro avião feito na Alemanha (Oeste) depois da Grande Guerra, seguindo o mesmo conceito do Fieseller Storch. Foram manufacturados 628, e tanto teve uso civil como militar". Citando como fonte a FAP, o autor diz que "os aviões Do 27, de que a Força Aérea teve 133 exemplares nas versões A3 e A4, começaram a ser recebidos em 1961", tendo sido "adquiridos para operação no Ultramar, em missões de transporte ligeiro, evacuação sanitária e reconhecimento armado, para o que eram equipados com lança foguetes".
Ainda segundo a mesma fonte, eis algumas das especificações do Dornier DO-27:
Motor: 270 hp;Envergadura: 12,00 m; Comprimento; 9,54 m; Altura: 3,28 m; Superfície Alar: 19,40 m2; Peso vazio: 983 Kg; Peso equipado: 1570 Kg; Velocidade máxima: 250 km/h; Raio de acção; 870 km; Razão de subida: 198 m/min; Tecto de serviço: 5500 m; Tripulação: 1 + 5. Ver ainda página, em inglês, dedicada ao DO27
(3) Guiledje ou Guileje ? Perguntei ao Ciberdúvidas da Língua Portuguesa qual é a grafia correcta. No tempo dos tugas, escrevia-se Guileje. Hoje, os guineenses e os cooperantes portugueses na Guiné-Bissau tendem a escrever Guiledje (ou até Guiledge). Em que é que ficamos ? Aguardo a resposta.
(4) Abril de 1973
Guiné 63/74 - CCXXXI: Projecto Guileje (1): o triunfo da vida sobre a morte
Guiné- Bissau > Antigo aquartelamento de Guiledje (2005). Na foto, vêm-se dois guineenses, de nome Abubacar Serra e José Filipe Fonseca, que são a ssociados da AD e os grandes dinamizadores do Projecto Guileje.
© AD - Acção para o Desenvolvimento (2005)
Notícias do nosso amigo Jorge Neto (um tertuliano de fresca data, e que trabalha, vive e sobrevive em Bissau).
Boa tarde a todos,
Recebi na caixa de correio informação sobre uma ONG [Organização Não-Governamental]guineense que tem um projecto de reabilitação/restauro do histórico quartel de Guiledje [na região de Tombali, no sudoeste, na fronteira com a Guiné-Conacri].
Se alguém tiver interesse em conhecer o projecto bem como ver algumas fotos do que era e do que é, aqui fica o link.
http://www.adbissau.org/projectoguiledje.php
Para as fotos:
http://www.adbissau.org/fotos_guiledje.php
Cumprimentos
Jorge Neto
2. Comentário de Luís Graça:
Acabei de ler o documento, em formato.pdf, de seis páginas, intitulado "Guiledje, ideias para um projecto de reabilitação". Gostei, desde logo da citação: "Salvaguardar a memória é a única forma da vida triunfar sobre a morte". Mais do que uma citação, é um programa de acção!
Li e fiquei entusiasmado com as ideias apresentadas, a sua fundamentação, a sua metodologia de acção. E disse logo cá para mim mesmo: Ora aqui está um projecto à nossa medida, à medida destes ex-combatentes da guerra colonial da Guiné e dos demais amigos desta tertúlia.
Sinto que podemos fazer alguma coisa de concreto para viabilizar este projecto. Para já, podemos divulgá-lo e dá-lo a conhecer em Portugal. Penso que é um projecto, de grande interesse (histórico, cultural, económico, social e ambiental) para os guineenses, mas também para nós. Daqui uns anos os nossos netos e bisnetos irão aprender, na escola, onde ficava Guileje e discutir a sua importância para dois países que hoje se tratam como irmãos: Portugal e a Guiné-Bissau...
Guileje vai figurar, seguramente, nos manuais de história tal como Alcácer Quibir, ou outras batalhas que ficaram no nosso imaginário e marcaram o nosso destino. E o mesmo se passará com os netos e os bisnetos dos homens e das mulheres que lutaram pela independência da Guiné-Bissau, de armas na mão, e que cercaram o quartel de Guileje, de 18 a 22 de Maio de 1973 (Op Amilcar Cabral), até ao seu abandono pelos portugueses (1).
Guileje foi, a par de Madina do Boé (Fevereiro de 1969), um dos poucos aquartelamentos (não falo de destacamentos...) que os portugueses tiveram que abandonar, devido à pressão militar do PAIGC (que desde Março de 1973 já dispunha de mísseis terra-ar).
Guine > Guileje > Dois militares portugueses, junto ao Obus 140, em 1970 e 1971. Segundo informação do Carlos Schwarz, fundador e director executivo da AD, "a fotografia junto do Obus 140 foi-me dada por um militar português que lá esteve entre 70 e 71, na CCAÇ 2617, de nome Abílio Alberto Pimentel da Assunção, que é um dos 2 militares". A esta companhia deve-se ter seguido a CCAV 8350 (1972/73), uma unidade constituída essencialmente por soldados açorianos.
© AD - Acção para o Desenvolvimento (2005)
As consequências político-militares desta vitória da guerrilha foram enormes: (i) a partir de Agosto de 1973, está em marcha, em Bissau, o movimento que levará os militares ao poder, em Lisboa, a 25 de Abril de 1974; (ii) a 24 de Setembro é proclamada unilateralmente pelo PAIGC, nas colinas do Boé, a independência da Guiné e Cabo Verde, imediatamente reconhecida por mais de sete dezenas de países de todo o mundo.
Hoje há um projecto de desenvolvimento integrado para a região, incluindo a recuperação e a reabilitação do antigo quartel do Guiledje e da sua envolvente, a criação de um museu e de um centro de documentação, a par da criação do Parque Transfronteiriço do Cantanhez.
A iniciativa é de uma ONG, com sede em Bissau, que acaba de celebrar os seus 14 anos de trabalho em prol do "desenvolvimento justo e solidário". Trata-se da de AD-Acção para o Desenvolvimento, associação sobre a qual se pode saber mais, consultando o seu sítio.
Aqui fica, para já, o registo do meu apreço por este projecto que pode vir a não passar do papel, mas que à partida nos toca e sensibiliza a todos... O entusiasmo, a mobilização, o lobbying e a capacidade de realização ficam para outra fase. Para já deixem-nos sonhar, fazer flashback, voltar a ver o filme de trás para a frente e de frente para trás... Deixem-nos salvaguardar a memória dos portugueses e dos guineenses que viveram momentos dramáticos em Guileje... para que a vida saia vitoriosa, triunfando desta vez sobre a morte. Lá como cá.
Reproduzo, com a devida vénia, duas das fotos que ilustram o sítio do Projecto Guiledje, com conhecimento ao webmaster da página da AD a quem, desde já, agradeço.
Numa das fotos há dois guineenses (que tanto podem ser os autores deste projecto, como os antigos combatentes do PAIGC que participaram na batalha de Guileje: Braima Djassi e Roberto Quessangue, nomes referidos no site, sendo o último o presidente da Assembleia Geral da própria ONG), junto aos restos do brasão da Companhia de Cavalaria que defendia Guileje: a CCAV 8350, (19)72/74, Piratas de Guileje (as inscrições são perfeitamente legíveis na foto inserida na página da supracitada ONG)...
Na outra foto há dois militares portugueses, em 1970 ou 1971, junto ao obuz 140 mm, que equipava o aquartelamento.
______
(1) Sobre a batalha de Guileje, vd. post de 2 de Julho de 2005 > Guiné 69/71 - XCI: Antologia (6): A batalha de Guileje e Gadamael
© AD - Acção para o Desenvolvimento (2005)
Notícias do nosso amigo Jorge Neto (um tertuliano de fresca data, e que trabalha, vive e sobrevive em Bissau).
Boa tarde a todos,
Recebi na caixa de correio informação sobre uma ONG [Organização Não-Governamental]guineense que tem um projecto de reabilitação/restauro do histórico quartel de Guiledje [na região de Tombali, no sudoeste, na fronteira com a Guiné-Conacri].
Se alguém tiver interesse em conhecer o projecto bem como ver algumas fotos do que era e do que é, aqui fica o link.
http://www.adbissau.org/projectoguiledje.php
Para as fotos:
http://www.adbissau.org/fotos_guiledje.php
Cumprimentos
Jorge Neto
2. Comentário de Luís Graça:
Acabei de ler o documento, em formato.pdf, de seis páginas, intitulado "Guiledje, ideias para um projecto de reabilitação". Gostei, desde logo da citação: "Salvaguardar a memória é a única forma da vida triunfar sobre a morte". Mais do que uma citação, é um programa de acção!
Li e fiquei entusiasmado com as ideias apresentadas, a sua fundamentação, a sua metodologia de acção. E disse logo cá para mim mesmo: Ora aqui está um projecto à nossa medida, à medida destes ex-combatentes da guerra colonial da Guiné e dos demais amigos desta tertúlia.
Sinto que podemos fazer alguma coisa de concreto para viabilizar este projecto. Para já, podemos divulgá-lo e dá-lo a conhecer em Portugal. Penso que é um projecto, de grande interesse (histórico, cultural, económico, social e ambiental) para os guineenses, mas também para nós. Daqui uns anos os nossos netos e bisnetos irão aprender, na escola, onde ficava Guileje e discutir a sua importância para dois países que hoje se tratam como irmãos: Portugal e a Guiné-Bissau...
Guileje vai figurar, seguramente, nos manuais de história tal como Alcácer Quibir, ou outras batalhas que ficaram no nosso imaginário e marcaram o nosso destino. E o mesmo se passará com os netos e os bisnetos dos homens e das mulheres que lutaram pela independência da Guiné-Bissau, de armas na mão, e que cercaram o quartel de Guileje, de 18 a 22 de Maio de 1973 (Op Amilcar Cabral), até ao seu abandono pelos portugueses (1).
Guileje foi, a par de Madina do Boé (Fevereiro de 1969), um dos poucos aquartelamentos (não falo de destacamentos...) que os portugueses tiveram que abandonar, devido à pressão militar do PAIGC (que desde Março de 1973 já dispunha de mísseis terra-ar).
Guine > Guileje > Dois militares portugueses, junto ao Obus 140, em 1970 e 1971. Segundo informação do Carlos Schwarz, fundador e director executivo da AD, "a fotografia junto do Obus 140 foi-me dada por um militar português que lá esteve entre 70 e 71, na CCAÇ 2617, de nome Abílio Alberto Pimentel da Assunção, que é um dos 2 militares". A esta companhia deve-se ter seguido a CCAV 8350 (1972/73), uma unidade constituída essencialmente por soldados açorianos.
© AD - Acção para o Desenvolvimento (2005)
As consequências político-militares desta vitória da guerrilha foram enormes: (i) a partir de Agosto de 1973, está em marcha, em Bissau, o movimento que levará os militares ao poder, em Lisboa, a 25 de Abril de 1974; (ii) a 24 de Setembro é proclamada unilateralmente pelo PAIGC, nas colinas do Boé, a independência da Guiné e Cabo Verde, imediatamente reconhecida por mais de sete dezenas de países de todo o mundo.
Hoje há um projecto de desenvolvimento integrado para a região, incluindo a recuperação e a reabilitação do antigo quartel do Guiledje e da sua envolvente, a criação de um museu e de um centro de documentação, a par da criação do Parque Transfronteiriço do Cantanhez.
A iniciativa é de uma ONG, com sede em Bissau, que acaba de celebrar os seus 14 anos de trabalho em prol do "desenvolvimento justo e solidário". Trata-se da de AD-Acção para o Desenvolvimento, associação sobre a qual se pode saber mais, consultando o seu sítio.
Aqui fica, para já, o registo do meu apreço por este projecto que pode vir a não passar do papel, mas que à partida nos toca e sensibiliza a todos... O entusiasmo, a mobilização, o lobbying e a capacidade de realização ficam para outra fase. Para já deixem-nos sonhar, fazer flashback, voltar a ver o filme de trás para a frente e de frente para trás... Deixem-nos salvaguardar a memória dos portugueses e dos guineenses que viveram momentos dramáticos em Guileje... para que a vida saia vitoriosa, triunfando desta vez sobre a morte. Lá como cá.
Reproduzo, com a devida vénia, duas das fotos que ilustram o sítio do Projecto Guiledje, com conhecimento ao webmaster da página da AD a quem, desde já, agradeço.
Numa das fotos há dois guineenses (que tanto podem ser os autores deste projecto, como os antigos combatentes do PAIGC que participaram na batalha de Guileje: Braima Djassi e Roberto Quessangue, nomes referidos no site, sendo o último o presidente da Assembleia Geral da própria ONG), junto aos restos do brasão da Companhia de Cavalaria que defendia Guileje: a CCAV 8350, (19)72/74, Piratas de Guileje (as inscrições são perfeitamente legíveis na foto inserida na página da supracitada ONG)...
Na outra foto há dois militares portugueses, em 1970 ou 1971, junto ao obuz 140 mm, que equipava o aquartelamento.
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(1) Sobre a batalha de Guileje, vd. post de 2 de Julho de 2005 > Guiné 69/71 - XCI: Antologia (6): A batalha de Guileje e Gadamael
Guiné 63/74 - CCXXXI: Projecto Guileje (1): o triunfo da vida sobre a morte
Guiné- Bissau > Antigo aquartelamento de Guiledje (2005). Na foto, vêm-se dois guineenses, de nome Abubacar Serra e José Filipe Fonseca, que são a ssociados da AD e os grandes dinamizadores do Projecto Guileje.
© AD - Acção para o Desenvolvimento (2005)
Notícias do nosso amigo Jorge Neto (um tertuliano de fresca data, e que trabalha, vive e sobrevive em Bissau).
Boa tarde a todos,
Recebi na caixa de correio informação sobre uma ONG [Organização Não-Governamental]guineense que tem um projecto de reabilitação/restauro do histórico quartel de Guiledje [na região de Tombali, no sudoeste, na fronteira com a Guiné-Conacri].
Se alguém tiver interesse em conhecer o projecto bem como ver algumas fotos do que era e do que é, aqui fica o link.
http://www.adbissau.org/projectoguiledje.php
Para as fotos:
http://www.adbissau.org/fotos_guiledje.php
Cumprimentos
Jorge Neto
2. Comentário de Luís Graça:
Acabei de ler o documento, em formato.pdf, de seis páginas, intitulado "Guiledje, ideias para um projecto de reabilitação". Gostei, desde logo da citação: "Salvaguardar a memória é a única forma da vida triunfar sobre a morte". Mais do que uma citação, é um programa de acção!
Li e fiquei entusiasmado com as ideias apresentadas, a sua fundamentação, a sua metodologia de acção. E disse logo cá para mim mesmo: Ora aqui está um projecto à nossa medida, à medida destes ex-combatentes da guerra colonial da Guiné e dos demais amigos desta tertúlia.
Sinto que podemos fazer alguma coisa de concreto para viabilizar este projecto. Para já, podemos divulgá-lo e dá-lo a conhecer em Portugal. Penso que é um projecto, de grande interesse (histórico, cultural, económico, social e ambiental) para os guineenses, mas também para nós. Daqui uns anos os nossos netos e bisnetos irão aprender, na escola, onde ficava Guileje e discutir a sua importância para dois países que hoje se tratam como irmãos: Portugal e a Guiné-Bissau...
Guileje vai figurar, seguramente, nos manuais de história tal como Alcácer Quibir, ou outras batalhas que ficaram no nosso imaginário e marcaram o nosso destino. E o mesmo se passará com os netos e os bisnetos dos homens e das mulheres que lutaram pela independência da Guiné-Bissau, de armas na mão, e que cercaram o quartel de Guileje, de 18 a 22 de Maio de 1973 (Op Amilcar Cabral), até ao seu abandono pelos portugueses (1).
Guileje foi, a par de Madina do Boé (Fevereiro de 1969), um dos poucos aquartelamentos (não falo de destacamentos...) que os portugueses tiveram que abandonar, devido à pressão militar do PAIGC (que desde Março de 1973 já dispunha de mísseis terra-ar).
Guine > Guileje > Dois militares portugueses, junto ao Obus 140, em 1970 e 1971. Segundo informação do Carlos Schwarz, fundador e director executivo da AD, "a fotografia junto do Obus 140 foi-me dada por um militar português que lá esteve entre 70 e 71, na CCAÇ 2617, de nome Abílio Alberto Pimentel da Assunção, que é um dos 2 militares". A esta companhia deve-se ter seguido a CCAV 8350 (1972/73), uma unidade constituída essencialmente por soldados açorianos.
© AD - Acção para o Desenvolvimento (2005)
As consequências político-militares desta vitória da guerrilha foram enormes: (i) a partir de Agosto de 1973, está em marcha, em Bissau, o movimento que levará os militares ao poder, em Lisboa, a 25 de Abril de 1974; (ii) a 24 de Setembro é proclamada unilateralmente pelo PAIGC, nas colinas do Boé, a independência da Guiné e Cabo Verde, imediatamente reconhecida por mais de sete dezenas de países de todo o mundo.
Hoje há um projecto de desenvolvimento integrado para a região, incluindo a recuperação e a reabilitação do antigo quartel do Guiledje e da sua envolvente, a criação de um museu e de um centro de documentação, a par da criação do Parque Transfronteiriço do Cantanhez.
A iniciativa é de uma ONG, com sede em Bissau, que acaba de celebrar os seus 14 anos de trabalho em prol do "desenvolvimento justo e solidário". Trata-se da de AD-Acção para o Desenvolvimento, associação sobre a qual se pode saber mais, consultando o seu sítio.
Aqui fica, para já, o registo do meu apreço por este projecto que pode vir a não passar do papel, mas que à partida nos toca e sensibiliza a todos... O entusiasmo, a mobilização, o lobbying e a capacidade de realização ficam para outra fase. Para já deixem-nos sonhar, fazer flashback, voltar a ver o filme de trás para a frente e de frente para trás... Deixem-nos salvaguardar a memória dos portugueses e dos guineenses que viveram momentos dramáticos em Guileje... para que a vida saia vitoriosa, triunfando desta vez sobre a morte. Lá como cá.
Reproduzo, com a devida vénia, duas das fotos que ilustram o sítio do Projecto Guiledje, com conhecimento ao webmaster da página da AD a quem, desde já, agradeço.
Numa das fotos há dois guineenses (que tanto podem ser os autores deste projecto, como os antigos combatentes do PAIGC que participaram na batalha de Guileje: Braima Djassi e Roberto Quessangue, nomes referidos no site, sendo o último o presidente da Assembleia Geral da própria ONG), junto aos restos do brasão da Companhia de Cavalaria que defendia Guileje: a CCAV 8350, (19)72/74, Piratas de Guileje (as inscrições são perfeitamente legíveis na foto inserida na página da supracitada ONG)...
Na outra foto há dois militares portugueses, em 1970 ou 1971, junto ao obuz 140 mm, que equipava o aquartelamento.
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(1) Sobre a batalha de Guileje, vd. post de 2 de Julho de 2005 > Guiné 69/71 - XCI: Antologia (6): A batalha de Guileje e Gadamael
© AD - Acção para o Desenvolvimento (2005)
Notícias do nosso amigo Jorge Neto (um tertuliano de fresca data, e que trabalha, vive e sobrevive em Bissau).
Boa tarde a todos,
Recebi na caixa de correio informação sobre uma ONG [Organização Não-Governamental]guineense que tem um projecto de reabilitação/restauro do histórico quartel de Guiledje [na região de Tombali, no sudoeste, na fronteira com a Guiné-Conacri].
Se alguém tiver interesse em conhecer o projecto bem como ver algumas fotos do que era e do que é, aqui fica o link.
http://www.adbissau.org/projectoguiledje.php
Para as fotos:
http://www.adbissau.org/fotos_guiledje.php
Cumprimentos
Jorge Neto
2. Comentário de Luís Graça:
Acabei de ler o documento, em formato.pdf, de seis páginas, intitulado "Guiledje, ideias para um projecto de reabilitação". Gostei, desde logo da citação: "Salvaguardar a memória é a única forma da vida triunfar sobre a morte". Mais do que uma citação, é um programa de acção!
Li e fiquei entusiasmado com as ideias apresentadas, a sua fundamentação, a sua metodologia de acção. E disse logo cá para mim mesmo: Ora aqui está um projecto à nossa medida, à medida destes ex-combatentes da guerra colonial da Guiné e dos demais amigos desta tertúlia.
Sinto que podemos fazer alguma coisa de concreto para viabilizar este projecto. Para já, podemos divulgá-lo e dá-lo a conhecer em Portugal. Penso que é um projecto, de grande interesse (histórico, cultural, económico, social e ambiental) para os guineenses, mas também para nós. Daqui uns anos os nossos netos e bisnetos irão aprender, na escola, onde ficava Guileje e discutir a sua importância para dois países que hoje se tratam como irmãos: Portugal e a Guiné-Bissau...
Guileje vai figurar, seguramente, nos manuais de história tal como Alcácer Quibir, ou outras batalhas que ficaram no nosso imaginário e marcaram o nosso destino. E o mesmo se passará com os netos e os bisnetos dos homens e das mulheres que lutaram pela independência da Guiné-Bissau, de armas na mão, e que cercaram o quartel de Guileje, de 18 a 22 de Maio de 1973 (Op Amilcar Cabral), até ao seu abandono pelos portugueses (1).
Guileje foi, a par de Madina do Boé (Fevereiro de 1969), um dos poucos aquartelamentos (não falo de destacamentos...) que os portugueses tiveram que abandonar, devido à pressão militar do PAIGC (que desde Março de 1973 já dispunha de mísseis terra-ar).
Guine > Guileje > Dois militares portugueses, junto ao Obus 140, em 1970 e 1971. Segundo informação do Carlos Schwarz, fundador e director executivo da AD, "a fotografia junto do Obus 140 foi-me dada por um militar português que lá esteve entre 70 e 71, na CCAÇ 2617, de nome Abílio Alberto Pimentel da Assunção, que é um dos 2 militares". A esta companhia deve-se ter seguido a CCAV 8350 (1972/73), uma unidade constituída essencialmente por soldados açorianos.
© AD - Acção para o Desenvolvimento (2005)
As consequências político-militares desta vitória da guerrilha foram enormes: (i) a partir de Agosto de 1973, está em marcha, em Bissau, o movimento que levará os militares ao poder, em Lisboa, a 25 de Abril de 1974; (ii) a 24 de Setembro é proclamada unilateralmente pelo PAIGC, nas colinas do Boé, a independência da Guiné e Cabo Verde, imediatamente reconhecida por mais de sete dezenas de países de todo o mundo.
Hoje há um projecto de desenvolvimento integrado para a região, incluindo a recuperação e a reabilitação do antigo quartel do Guiledje e da sua envolvente, a criação de um museu e de um centro de documentação, a par da criação do Parque Transfronteiriço do Cantanhez.
A iniciativa é de uma ONG, com sede em Bissau, que acaba de celebrar os seus 14 anos de trabalho em prol do "desenvolvimento justo e solidário". Trata-se da de AD-Acção para o Desenvolvimento, associação sobre a qual se pode saber mais, consultando o seu sítio.
Aqui fica, para já, o registo do meu apreço por este projecto que pode vir a não passar do papel, mas que à partida nos toca e sensibiliza a todos... O entusiasmo, a mobilização, o lobbying e a capacidade de realização ficam para outra fase. Para já deixem-nos sonhar, fazer flashback, voltar a ver o filme de trás para a frente e de frente para trás... Deixem-nos salvaguardar a memória dos portugueses e dos guineenses que viveram momentos dramáticos em Guileje... para que a vida saia vitoriosa, triunfando desta vez sobre a morte. Lá como cá.
Reproduzo, com a devida vénia, duas das fotos que ilustram o sítio do Projecto Guiledje, com conhecimento ao webmaster da página da AD a quem, desde já, agradeço.
Numa das fotos há dois guineenses (que tanto podem ser os autores deste projecto, como os antigos combatentes do PAIGC que participaram na batalha de Guileje: Braima Djassi e Roberto Quessangue, nomes referidos no site, sendo o último o presidente da Assembleia Geral da própria ONG), junto aos restos do brasão da Companhia de Cavalaria que defendia Guileje: a CCAV 8350, (19)72/74, Piratas de Guileje (as inscrições são perfeitamente legíveis na foto inserida na página da supracitada ONG)...
Na outra foto há dois militares portugueses, em 1970 ou 1971, junto ao obuz 140 mm, que equipava o aquartelamento.
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(1) Sobre a batalha de Guileje, vd. post de 2 de Julho de 2005 > Guiné 69/71 - XCI: Antologia (6): A batalha de Guileje e Gadamael
05 outubro 2005
Guiné 63/74 - CCXXX: Crónicas de Bissau (ou o 'bombolom' do Paulo Salgado) (1)
Guiné-Bissau (2005) > Antigo e actual quartel de Mansoa.
© Jorge & Paulo Salgado (2005)
Texto do Paulo Salgado
Camaradas e Amigos:
Vou tentar relatar (narrar, contar, ficcionar quanto baste) as minhas vivências nesta terceira (ou quarta?) comissão / presença demorada... (Agora estamos numa Missão que é um termo muito divulgado por quem passa aqui curtas ou mais longas estadias em nome de alguém a fazer qualquer coisa – confesso-vos que tenho visto muita coisa mal feitinha).
Mas estou para aqui com um arrozoado inicial que só faz sentido porque estamos entre Camarigos (bolas, saiu!) para vos dizer que gostaria de poder cumprir este desafio. Mas essa promessa só pode ser cumprida quando me der na real gana, quando tiver um tempo solto, quando levantar emboscadas, quando deixarem de me atacar… Ou seja: não é um diário, nem semanário, nem mensário – o que for, seguirá. Mas ao correr da pena.
O Luís Graça dar-lhe-á a forma mais conveniente para ser lido no nosso blogue.
CAPÍTULO I – Viagem
O filho da mãe do Carvalho Araújo fazia a primeira viagem depois de transformado em transportador de carne para canhão – ele era um dos transatlânticos entre Lisboa e Açores: um barquinho, sem quilha, chato, que levava víveres e algumas pessoas e trazia gado, muito gado das ilhas (vós já imaginastes o gado numa quilha?!)
Então os chefões do tempo resolveram fazer plataformas, e pôr o barco plano, no fundo carradas de pedra para o navio se aguentar e equilibrar e nele construíram camaratas, aos montes: era ali que vinha a tropa macaca, jogando cartas, zangando-se, vomitando o pouco que se comia.
Mas, nessa primeira viagem (que a CCAV 2721 e mais duas companhias de que não me lembro o número), o barquinho andou a acertar agulhas nesse dia 4 de Abril de 1970 (nesse dia, anos mais tarde, nasceria a minha filha Paula – a tal que está em Oxford, e que adora esta terra, que é a Guiné-Bissau) desde o Cais de Alcântara até quase Santa Apolónia durante seis horas… E as famílias , rio acima e rio abaixo, a fazerem adeuses com lenços brancos, na esperança de o barco não passar o Bugio – a malta triste, encostada ao convés (que me desculpem os marinheiros se a linguagem não está correcta) também triste.
Desta vez, adivinhais quem estava: o Humberto. O malandro emboscou-me à entrada da porta / gate 18 - embarque para Bissau. Lá estava, apanhou-me. E demos aquele abraço. Descobriu-me, porque levava uma miúda e a minha mulher.
Que sorriso aberto, o do Humberto! Que delicioso encontro (ou reencontro?), não esquecerei! Aliás, oh Humberto, fiquei com a sensação de que te conhecia, que nos cruzáramos antes… ou já será a minha senilidade?!? Mas, olha que eu tenho uma memória visual muito boa… Foi giro estares ali, abraçares-me, com uma mão cheia de amizade e de carinho, e dares-me o teu cartão…
O pior foi à chegada. A miúda já não me queria largar. Tinha sido bem tratada no Hospital de Gaia e de Santo António – foi o bom e o bonito! Valham-me os deuses todos, quase chorei ao ver a criança cair, obrigada, nos braços dos pais. Aliás, confesso-vos: vou passar um mau bocado. Estas coisas dão-me volta ao coração. A Maria da Conceição [Salgado] e o Jorge (magnífico e exemplar colaborador, tiro-lhe o meu chapéu) ficaram mesmo chocados! Pudera!
No Olossato, a malta dizia que eu iria meter o Chico. Eu era, de facto, um bocado disciplinado e gostava das coisas direitas. Em Lamego, nos 'rangers' aprendera muito sobre a maneira de andar na mata, a sobrevivência, a disciplina. Pois não meti o Chico e, penso, à distância: como eles se enganavam… eu até já tinha uma profissão: professor primário.
A seguir, foi o que vos tinha dito: primeiro umas gorjetas para facilitar a saída (sempre ajuda para o peixe), os putos, os acotovelanços, o motorista João. E logo a seguir pousar as coisas no Bairro da Cooperação, ir ao Hospital, ao Laboratório com o Jorge (técnico de análises clínicas que veio também para fazer a manutenção dos equipamentos).
Primeiro a obrigação e depois a D. Berta – a Instituição D. Berta, a Pensão Central (merecerá um capítulo bem à parte), onde almoçámos e bebemos as primeiras poderosas Cristal (termo que aprendi com um médico moçambicano que esteve aqui no Projecto…e como foram dias porreiros com esse gajo…)... Estavam poderosamente geladinhas!
No sábado fui visitar alguns funcionários no [Hospital] Simão Mendes – a puta da cólera lá está. Não está só nos jornais. Está ali, viva, matando…
Deixámos a cerimónia a decorrer no Palácio Colinas do Boé – Assembleia Nacional (os chineses quiseram deixar a marca de palácio), já o discurso do Presidente ia a meio (na rádio ouvíamos a oratória) e era uma boa altura para nos safarmos da confusão de convidados, de amigos - que sei eu? - e saímos, correndo a almoçar a Uaque (perto de Jugudul, perto de Mansoa, onde está o António que dirige um turismo de caça e pesca – é uma hipótese para dar resposta ao apelo de muitos, em especial do João Tunes, em termos de visita a Bissau), demos um salto a Mansoa e o Jorge tirou umas fotos ao actual aquartelamento.
O Jorge Neto tem razão: não se pode tirar fotos à maluca e sem autorização. Tivemos que andar depressa.
Bolanha de Mansoa © Jorge & Paulo Salgado (2005)
Mas, meus Caramigos: vimos a azáfama da plantação do arroz, a ida à pesca, as crianças correndo ou ajudando, um jovem balanta que vinha do trabalho com o seu arado, e pedaços do velho pontão de Mansoa (substituído por uma ponte). E a bolanha, bela, longínqua. Verdíssima, alagadíssima.
Ainda fomos pela picada fora, no finzinho de tarde até ao porto de Encheia, mas a bolanha não deixou a viagem ir até ao fim. Demos boleia à Maria: que sorriso e que simpatia.
- A nós, portugueses (tugas…) – disse eu, num arremedo de crioulo - e ela riu (ainda temos que esclarecer essa de tugas, a coisa não está clara, Amigos e Camaradas).
- A mim na odja ki bos i bom, ki ta patim bolea…- e ficámos satisfeitos com a satisfação da mulher balanta.
Ao fim, mesmo, mais duas fotos (entre muitas) de um pôr de sol com cores amarelas e cinzentas. E passámos Nhacra, Safim e, ao lado, o aeroporto com alguns aviões a partir com os convidados…
Partilhar “isto” com a minha mulher e com o Jorge foi uma lufada de ar fresco.
Dia di dumigu: na diskansa um bukadu; dia di segunda fera nô tem ki pega teso.
Mantenhas pa tudus.
Paulo Salgado. Bissau, 2 de Outubro de 2005
PS - Seguem fotos em novas mensagens separadas porque a Net funciona aqui à velocidade africana....
© Jorge & Paulo Salgado (2005)
Texto do Paulo Salgado
Camaradas e Amigos:
Vou tentar relatar (narrar, contar, ficcionar quanto baste) as minhas vivências nesta terceira (ou quarta?) comissão / presença demorada... (Agora estamos numa Missão que é um termo muito divulgado por quem passa aqui curtas ou mais longas estadias em nome de alguém a fazer qualquer coisa – confesso-vos que tenho visto muita coisa mal feitinha).
Mas estou para aqui com um arrozoado inicial que só faz sentido porque estamos entre Camarigos (bolas, saiu!) para vos dizer que gostaria de poder cumprir este desafio. Mas essa promessa só pode ser cumprida quando me der na real gana, quando tiver um tempo solto, quando levantar emboscadas, quando deixarem de me atacar… Ou seja: não é um diário, nem semanário, nem mensário – o que for, seguirá. Mas ao correr da pena.
O Luís Graça dar-lhe-á a forma mais conveniente para ser lido no nosso blogue.
CAPÍTULO I – Viagem
O filho da mãe do Carvalho Araújo fazia a primeira viagem depois de transformado em transportador de carne para canhão – ele era um dos transatlânticos entre Lisboa e Açores: um barquinho, sem quilha, chato, que levava víveres e algumas pessoas e trazia gado, muito gado das ilhas (vós já imaginastes o gado numa quilha?!)
Então os chefões do tempo resolveram fazer plataformas, e pôr o barco plano, no fundo carradas de pedra para o navio se aguentar e equilibrar e nele construíram camaratas, aos montes: era ali que vinha a tropa macaca, jogando cartas, zangando-se, vomitando o pouco que se comia.
Mas, nessa primeira viagem (que a CCAV 2721 e mais duas companhias de que não me lembro o número), o barquinho andou a acertar agulhas nesse dia 4 de Abril de 1970 (nesse dia, anos mais tarde, nasceria a minha filha Paula – a tal que está em Oxford, e que adora esta terra, que é a Guiné-Bissau) desde o Cais de Alcântara até quase Santa Apolónia durante seis horas… E as famílias , rio acima e rio abaixo, a fazerem adeuses com lenços brancos, na esperança de o barco não passar o Bugio – a malta triste, encostada ao convés (que me desculpem os marinheiros se a linguagem não está correcta) também triste.
Desta vez, adivinhais quem estava: o Humberto. O malandro emboscou-me à entrada da porta / gate 18 - embarque para Bissau. Lá estava, apanhou-me. E demos aquele abraço. Descobriu-me, porque levava uma miúda e a minha mulher.
Que sorriso aberto, o do Humberto! Que delicioso encontro (ou reencontro?), não esquecerei! Aliás, oh Humberto, fiquei com a sensação de que te conhecia, que nos cruzáramos antes… ou já será a minha senilidade?!? Mas, olha que eu tenho uma memória visual muito boa… Foi giro estares ali, abraçares-me, com uma mão cheia de amizade e de carinho, e dares-me o teu cartão…
O pior foi à chegada. A miúda já não me queria largar. Tinha sido bem tratada no Hospital de Gaia e de Santo António – foi o bom e o bonito! Valham-me os deuses todos, quase chorei ao ver a criança cair, obrigada, nos braços dos pais. Aliás, confesso-vos: vou passar um mau bocado. Estas coisas dão-me volta ao coração. A Maria da Conceição [Salgado] e o Jorge (magnífico e exemplar colaborador, tiro-lhe o meu chapéu) ficaram mesmo chocados! Pudera!
No Olossato, a malta dizia que eu iria meter o Chico. Eu era, de facto, um bocado disciplinado e gostava das coisas direitas. Em Lamego, nos 'rangers' aprendera muito sobre a maneira de andar na mata, a sobrevivência, a disciplina. Pois não meti o Chico e, penso, à distância: como eles se enganavam… eu até já tinha uma profissão: professor primário.
A seguir, foi o que vos tinha dito: primeiro umas gorjetas para facilitar a saída (sempre ajuda para o peixe), os putos, os acotovelanços, o motorista João. E logo a seguir pousar as coisas no Bairro da Cooperação, ir ao Hospital, ao Laboratório com o Jorge (técnico de análises clínicas que veio também para fazer a manutenção dos equipamentos).
Primeiro a obrigação e depois a D. Berta – a Instituição D. Berta, a Pensão Central (merecerá um capítulo bem à parte), onde almoçámos e bebemos as primeiras poderosas Cristal (termo que aprendi com um médico moçambicano que esteve aqui no Projecto…e como foram dias porreiros com esse gajo…)... Estavam poderosamente geladinhas!
No sábado fui visitar alguns funcionários no [Hospital] Simão Mendes – a puta da cólera lá está. Não está só nos jornais. Está ali, viva, matando…
Deixámos a cerimónia a decorrer no Palácio Colinas do Boé – Assembleia Nacional (os chineses quiseram deixar a marca de palácio), já o discurso do Presidente ia a meio (na rádio ouvíamos a oratória) e era uma boa altura para nos safarmos da confusão de convidados, de amigos - que sei eu? - e saímos, correndo a almoçar a Uaque (perto de Jugudul, perto de Mansoa, onde está o António que dirige um turismo de caça e pesca – é uma hipótese para dar resposta ao apelo de muitos, em especial do João Tunes, em termos de visita a Bissau), demos um salto a Mansoa e o Jorge tirou umas fotos ao actual aquartelamento.
O Jorge Neto tem razão: não se pode tirar fotos à maluca e sem autorização. Tivemos que andar depressa.
Bolanha de Mansoa © Jorge & Paulo Salgado (2005)
Mas, meus Caramigos: vimos a azáfama da plantação do arroz, a ida à pesca, as crianças correndo ou ajudando, um jovem balanta que vinha do trabalho com o seu arado, e pedaços do velho pontão de Mansoa (substituído por uma ponte). E a bolanha, bela, longínqua. Verdíssima, alagadíssima.
Ainda fomos pela picada fora, no finzinho de tarde até ao porto de Encheia, mas a bolanha não deixou a viagem ir até ao fim. Demos boleia à Maria: que sorriso e que simpatia.
- A nós, portugueses (tugas…) – disse eu, num arremedo de crioulo - e ela riu (ainda temos que esclarecer essa de tugas, a coisa não está clara, Amigos e Camaradas).
- A mim na odja ki bos i bom, ki ta patim bolea…- e ficámos satisfeitos com a satisfação da mulher balanta.
Ao fim, mesmo, mais duas fotos (entre muitas) de um pôr de sol com cores amarelas e cinzentas. E passámos Nhacra, Safim e, ao lado, o aeroporto com alguns aviões a partir com os convidados…
Partilhar “isto” com a minha mulher e com o Jorge foi uma lufada de ar fresco.
Dia di dumigu: na diskansa um bukadu; dia di segunda fera nô tem ki pega teso.
Mantenhas pa tudus.
Paulo Salgado. Bissau, 2 de Outubro de 2005
PS - Seguem fotos em novas mensagens separadas porque a Net funciona aqui à velocidade africana....
Guiné 63/74 - CCXXX: Crónicas de Bissau (ou o 'bombolom' do Paulo Salgado) (1)
Guiné-Bissau (2005) > Antigo e actual quartel de Mansoa.
© Jorge & Paulo Salgado (2005)
Texto do Paulo Salgado
Camaradas e Amigos:
Vou tentar relatar (narrar, contar, ficcionar quanto baste) as minhas vivências nesta terceira (ou quarta?) comissão / presença demorada... (Agora estamos numa Missão que é um termo muito divulgado por quem passa aqui curtas ou mais longas estadias em nome de alguém a fazer qualquer coisa – confesso-vos que tenho visto muita coisa mal feitinha).
Mas estou para aqui com um arrozoado inicial que só faz sentido porque estamos entre Camarigos (bolas, saiu!) para vos dizer que gostaria de poder cumprir este desafio. Mas essa promessa só pode ser cumprida quando me der na real gana, quando tiver um tempo solto, quando levantar emboscadas, quando deixarem de me atacar… Ou seja: não é um diário, nem semanário, nem mensário – o que for, seguirá. Mas ao correr da pena.
O Luís Graça dar-lhe-á a forma mais conveniente para ser lido no nosso blogue.
CAPÍTULO I – Viagem
O filho da mãe do Carvalho Araújo fazia a primeira viagem depois de transformado em transportador de carne para canhão – ele era um dos transatlânticos entre Lisboa e Açores: um barquinho, sem quilha, chato, que levava víveres e algumas pessoas e trazia gado, muito gado das ilhas (vós já imaginastes o gado numa quilha?!)
Então os chefões do tempo resolveram fazer plataformas, e pôr o barco plano, no fundo carradas de pedra para o navio se aguentar e equilibrar e nele construíram camaratas, aos montes: era ali que vinha a tropa macaca, jogando cartas, zangando-se, vomitando o pouco que se comia.
Mas, nessa primeira viagem (que a CCAV 2721 e mais duas companhias de que não me lembro o número), o barquinho andou a acertar agulhas nesse dia 4 de Abril de 1970 (nesse dia, anos mais tarde, nasceria a minha filha Paula – a tal que está em Oxford, e que adora esta terra, que é a Guiné-Bissau) desde o Cais de Alcântara até quase Santa Apolónia durante seis horas… E as famílias , rio acima e rio abaixo, a fazerem adeuses com lenços brancos, na esperança de o barco não passar o Bugio – a malta triste, encostada ao convés (que me desculpem os marinheiros se a linguagem não está correcta) também triste.
Desta vez, adivinhais quem estava: o Humberto. O malandro emboscou-me à entrada da porta / gate 18 - embarque para Bissau. Lá estava, apanhou-me. E demos aquele abraço. Descobriu-me, porque levava uma miúda e a minha mulher.
Que sorriso aberto, o do Humberto! Que delicioso encontro (ou reencontro?), não esquecerei! Aliás, oh Humberto, fiquei com a sensação de que te conhecia, que nos cruzáramos antes… ou já será a minha senilidade?!? Mas, olha que eu tenho uma memória visual muito boa… Foi giro estares ali, abraçares-me, com uma mão cheia de amizade e de carinho, e dares-me o teu cartão…
O pior foi à chegada. A miúda já não me queria largar. Tinha sido bem tratada no Hospital de Gaia e de Santo António – foi o bom e o bonito! Valham-me os deuses todos, quase chorei ao ver a criança cair, obrigada, nos braços dos pais. Aliás, confesso-vos: vou passar um mau bocado. Estas coisas dão-me volta ao coração. A Maria da Conceição [Salgado] e o Jorge (magnífico e exemplar colaborador, tiro-lhe o meu chapéu) ficaram mesmo chocados! Pudera!
No Olossato, a malta dizia que eu iria meter o Chico. Eu era, de facto, um bocado disciplinado e gostava das coisas direitas. Em Lamego, nos 'rangers' aprendera muito sobre a maneira de andar na mata, a sobrevivência, a disciplina. Pois não meti o Chico e, penso, à distância: como eles se enganavam… eu até já tinha uma profissão: professor primário.
A seguir, foi o que vos tinha dito: primeiro umas gorjetas para facilitar a saída (sempre ajuda para o peixe), os putos, os acotovelanços, o motorista João. E logo a seguir pousar as coisas no Bairro da Cooperação, ir ao Hospital, ao Laboratório com o Jorge (técnico de análises clínicas que veio também para fazer a manutenção dos equipamentos).
Primeiro a obrigação e depois a D. Berta – a Instituição D. Berta, a Pensão Central (merecerá um capítulo bem à parte), onde almoçámos e bebemos as primeiras poderosas Cristal (termo que aprendi com um médico moçambicano que esteve aqui no Projecto…e como foram dias porreiros com esse gajo…)... Estavam poderosamente geladinhas!
No sábado fui visitar alguns funcionários no [Hospital] Simão Mendes – a puta da cólera lá está. Não está só nos jornais. Está ali, viva, matando…
Deixámos a cerimónia a decorrer no Palácio Colinas do Boé – Assembleia Nacional (os chineses quiseram deixar a marca de palácio), já o discurso do Presidente ia a meio (na rádio ouvíamos a oratória) e era uma boa altura para nos safarmos da confusão de convidados, de amigos - que sei eu? - e saímos, correndo a almoçar a Uaque (perto de Jugudul, perto de Mansoa, onde está o António que dirige um turismo de caça e pesca – é uma hipótese para dar resposta ao apelo de muitos, em especial do João Tunes, em termos de visita a Bissau), demos um salto a Mansoa e o Jorge tirou umas fotos ao actual aquartelamento.
O Jorge Neto tem razão: não se pode tirar fotos à maluca e sem autorização. Tivemos que andar depressa.
Bolanha de Mansoa © Jorge & Paulo Salgado (2005)
Mas, meus Caramigos: vimos a azáfama da plantação do arroz, a ida à pesca, as crianças correndo ou ajudando, um jovem balanta que vinha do trabalho com o seu arado, e pedaços do velho pontão de Mansoa (substituído por uma ponte). E a bolanha, bela, longínqua. Verdíssima, alagadíssima.
Ainda fomos pela picada fora, no finzinho de tarde até ao porto de Encheia, mas a bolanha não deixou a viagem ir até ao fim. Demos boleia à Maria: que sorriso e que simpatia.
- A nós, portugueses (tugas…) – disse eu, num arremedo de crioulo - e ela riu (ainda temos que esclarecer essa de tugas, a coisa não está clara, Amigos e Camaradas).
- A mim na odja ki bos i bom, ki ta patim bolea…- e ficámos satisfeitos com a satisfação da mulher balanta.
Ao fim, mesmo, mais duas fotos (entre muitas) de um pôr de sol com cores amarelas e cinzentas. E passámos Nhacra, Safim e, ao lado, o aeroporto com alguns aviões a partir com os convidados…
Partilhar “isto” com a minha mulher e com o Jorge foi uma lufada de ar fresco.
Dia di dumigu: na diskansa um bukadu; dia di segunda fera nô tem ki pega teso.
Mantenhas pa tudus.
Paulo Salgado. Bissau, 2 de Outubro de 2005
PS - Seguem fotos em novas mensagens separadas porque a Net funciona aqui à velocidade africana....
© Jorge & Paulo Salgado (2005)
Texto do Paulo Salgado
Camaradas e Amigos:
Vou tentar relatar (narrar, contar, ficcionar quanto baste) as minhas vivências nesta terceira (ou quarta?) comissão / presença demorada... (Agora estamos numa Missão que é um termo muito divulgado por quem passa aqui curtas ou mais longas estadias em nome de alguém a fazer qualquer coisa – confesso-vos que tenho visto muita coisa mal feitinha).
Mas estou para aqui com um arrozoado inicial que só faz sentido porque estamos entre Camarigos (bolas, saiu!) para vos dizer que gostaria de poder cumprir este desafio. Mas essa promessa só pode ser cumprida quando me der na real gana, quando tiver um tempo solto, quando levantar emboscadas, quando deixarem de me atacar… Ou seja: não é um diário, nem semanário, nem mensário – o que for, seguirá. Mas ao correr da pena.
O Luís Graça dar-lhe-á a forma mais conveniente para ser lido no nosso blogue.
CAPÍTULO I – Viagem
O filho da mãe do Carvalho Araújo fazia a primeira viagem depois de transformado em transportador de carne para canhão – ele era um dos transatlânticos entre Lisboa e Açores: um barquinho, sem quilha, chato, que levava víveres e algumas pessoas e trazia gado, muito gado das ilhas (vós já imaginastes o gado numa quilha?!)
Então os chefões do tempo resolveram fazer plataformas, e pôr o barco plano, no fundo carradas de pedra para o navio se aguentar e equilibrar e nele construíram camaratas, aos montes: era ali que vinha a tropa macaca, jogando cartas, zangando-se, vomitando o pouco que se comia.
Mas, nessa primeira viagem (que a CCAV 2721 e mais duas companhias de que não me lembro o número), o barquinho andou a acertar agulhas nesse dia 4 de Abril de 1970 (nesse dia, anos mais tarde, nasceria a minha filha Paula – a tal que está em Oxford, e que adora esta terra, que é a Guiné-Bissau) desde o Cais de Alcântara até quase Santa Apolónia durante seis horas… E as famílias , rio acima e rio abaixo, a fazerem adeuses com lenços brancos, na esperança de o barco não passar o Bugio – a malta triste, encostada ao convés (que me desculpem os marinheiros se a linguagem não está correcta) também triste.
Desta vez, adivinhais quem estava: o Humberto. O malandro emboscou-me à entrada da porta / gate 18 - embarque para Bissau. Lá estava, apanhou-me. E demos aquele abraço. Descobriu-me, porque levava uma miúda e a minha mulher.
Que sorriso aberto, o do Humberto! Que delicioso encontro (ou reencontro?), não esquecerei! Aliás, oh Humberto, fiquei com a sensação de que te conhecia, que nos cruzáramos antes… ou já será a minha senilidade?!? Mas, olha que eu tenho uma memória visual muito boa… Foi giro estares ali, abraçares-me, com uma mão cheia de amizade e de carinho, e dares-me o teu cartão…
O pior foi à chegada. A miúda já não me queria largar. Tinha sido bem tratada no Hospital de Gaia e de Santo António – foi o bom e o bonito! Valham-me os deuses todos, quase chorei ao ver a criança cair, obrigada, nos braços dos pais. Aliás, confesso-vos: vou passar um mau bocado. Estas coisas dão-me volta ao coração. A Maria da Conceição [Salgado] e o Jorge (magnífico e exemplar colaborador, tiro-lhe o meu chapéu) ficaram mesmo chocados! Pudera!
No Olossato, a malta dizia que eu iria meter o Chico. Eu era, de facto, um bocado disciplinado e gostava das coisas direitas. Em Lamego, nos 'rangers' aprendera muito sobre a maneira de andar na mata, a sobrevivência, a disciplina. Pois não meti o Chico e, penso, à distância: como eles se enganavam… eu até já tinha uma profissão: professor primário.
A seguir, foi o que vos tinha dito: primeiro umas gorjetas para facilitar a saída (sempre ajuda para o peixe), os putos, os acotovelanços, o motorista João. E logo a seguir pousar as coisas no Bairro da Cooperação, ir ao Hospital, ao Laboratório com o Jorge (técnico de análises clínicas que veio também para fazer a manutenção dos equipamentos).
Primeiro a obrigação e depois a D. Berta – a Instituição D. Berta, a Pensão Central (merecerá um capítulo bem à parte), onde almoçámos e bebemos as primeiras poderosas Cristal (termo que aprendi com um médico moçambicano que esteve aqui no Projecto…e como foram dias porreiros com esse gajo…)... Estavam poderosamente geladinhas!
No sábado fui visitar alguns funcionários no [Hospital] Simão Mendes – a puta da cólera lá está. Não está só nos jornais. Está ali, viva, matando…
Deixámos a cerimónia a decorrer no Palácio Colinas do Boé – Assembleia Nacional (os chineses quiseram deixar a marca de palácio), já o discurso do Presidente ia a meio (na rádio ouvíamos a oratória) e era uma boa altura para nos safarmos da confusão de convidados, de amigos - que sei eu? - e saímos, correndo a almoçar a Uaque (perto de Jugudul, perto de Mansoa, onde está o António que dirige um turismo de caça e pesca – é uma hipótese para dar resposta ao apelo de muitos, em especial do João Tunes, em termos de visita a Bissau), demos um salto a Mansoa e o Jorge tirou umas fotos ao actual aquartelamento.
O Jorge Neto tem razão: não se pode tirar fotos à maluca e sem autorização. Tivemos que andar depressa.
Bolanha de Mansoa © Jorge & Paulo Salgado (2005)
Mas, meus Caramigos: vimos a azáfama da plantação do arroz, a ida à pesca, as crianças correndo ou ajudando, um jovem balanta que vinha do trabalho com o seu arado, e pedaços do velho pontão de Mansoa (substituído por uma ponte). E a bolanha, bela, longínqua. Verdíssima, alagadíssima.
Ainda fomos pela picada fora, no finzinho de tarde até ao porto de Encheia, mas a bolanha não deixou a viagem ir até ao fim. Demos boleia à Maria: que sorriso e que simpatia.
- A nós, portugueses (tugas…) – disse eu, num arremedo de crioulo - e ela riu (ainda temos que esclarecer essa de tugas, a coisa não está clara, Amigos e Camaradas).
- A mim na odja ki bos i bom, ki ta patim bolea…- e ficámos satisfeitos com a satisfação da mulher balanta.
Ao fim, mesmo, mais duas fotos (entre muitas) de um pôr de sol com cores amarelas e cinzentas. E passámos Nhacra, Safim e, ao lado, o aeroporto com alguns aviões a partir com os convidados…
Partilhar “isto” com a minha mulher e com o Jorge foi uma lufada de ar fresco.
Dia di dumigu: na diskansa um bukadu; dia di segunda fera nô tem ki pega teso.
Mantenhas pa tudus.
Paulo Salgado. Bissau, 2 de Outubro de 2005
PS - Seguem fotos em novas mensagens separadas porque a Net funciona aqui à velocidade africana....
04 outubro 2005
Guiné 63/74 - CCXXIX: Guerra limpa, guerra suja (3)
1. Texto de Luís Graça:
Meu caro João, meus caros amigos & camaradas (versão "universal", sem bolinhas vermelhas ao canto superior direito):
1. A realidade é sempre mais complicada do que a construção (social) que dela fazemos... Ainda não li o livro da Dalila, vi só um resumo... É claro que a Pide trabalhava bem articulada com as NT... O Spínola e a sua corte protegiam os gajos porque também precisavam deles.. No 25 de Abril, ele terá deixá-los cair, não sei...
Fui obrigado uma vez a partilhar um almoço em Bafatá, com dois ou três pides... Como antifascista, desde os meus catorze, quinze anos, eu tinha um asco aos pides... Eu estava incomodado com a merda da conversa e com a presença deles: um deles tinha levado uma dentada de um "filho da puta de um turra" (sic) mas não lhe pudera "cascar" (sic), em resposta, por causa do Caco Baldé, o Spínola... Tenho isso algures escrito nos meus canhenhos (eu tinha um diário lá na nhos terra....)...
Mas também tenho outros revelações tenebrosas que os meus soldados (fulas) me contavam, nas noites longas que passávamos no mato, em operações, em emboscadas, em patrulhamentos ao Mato Cão (Rio Geba Estreito, para protecção da navegação civil, os barcos da Casa Gouveia que iam e vinham de Bafatá), em tabancas de autodefesa, aqui e acolá...
Revelações da guerra pura e dura, em 1963, 64, 65, no tempo do Schultz, que terá sido uma verdadeira política de terra queimada e de genocídio (é a minha interpretação: nunca saberemos a extensão disto; há documentos da tropa que continuam secretos; além disso, branqueávamos os relatórios...).
No entanto, no meu tempo, havia ainda muitos vestígios desse tempoo: eu (mas também o Humberto, o Tony, Fernandes) passei por muitas tabancas, balantas e beafadas, reduzidas a cinzas, no outro tempo; havia só algumas estacas, tudo tinha sido invadido pelo mato; os habitantes terão fugido, "ido no mato", ou terão sido deslocados)...
Assim como já contei (está no blogue) a história, arrepiante, do Seco Camará, mandinga, que foi nosso guia em muitas operações no Xime, até ao dia em que lerpou, com um roquetada (andei a apanhar os bocados dele na manhã de 26 de Novembro de 1970; fizemos uma trouxa com o que restou, dele e de mais cinco dos nossos...). O Seco era o gajo que matava, à paulda, de noite, os "turras" (ou elementos suspeitos, ligados à população), e depois o capitão do Xime, "manga de bom pessoal" (sic), pagava uma laranjada no regresso ao quartel: o desgraçado contou-me esta estória, a mim, uns tempos antes de morrer...
Tudo isto se terá passado no início da guerra, por volta de 1963/64... Agora, não vos posso garantir que não era fanfarronice do gajo... Não creio que fosse. A coisa colava com outras estórias que os meus fulas me contavam, com aquele ar inocente e amoral das criancinhas que sabem coisas horríveis mas não têm (ainda) o sentido do trágico e do horror...
E o Uloma , dos comandos africanos ? ... De facto, tens razão: deixámos a parte suja da guerra para os pides (mas também para os gajos dos pelotões de reconhecimento & informações, como o sinistro sargento do cavalo marinho de que eu falo no post de 11 de Julho de 2005)... Para os pides e ... para os próprios guinéus!... Essa é que é a verdade. Mas também alferes e furriéis milicianos que eram mais chicos que os chicos...
Andei sempre de arma calada, sem bala na câmara, sem granadas, sem nunca ter feito fogo debaixo de fogo... Mas também engoli muitos sapos, até que um dia rebentei e chamei uns nomes feios ao A. C. e ao resto do comando do BART 2917, em plena parada, em frente à messe de oficiais, alto e bom som: "assasinos, cabrões, criminosos de guerra, limpo o cu às folhas do RDM"...
Nunca mais pude esquecer estas palavras de raiva e de impotência... Não me deram uma porrada, não sei porquê: (i) talvez por que por tinham a conscência pesada, no dia 26 de Novembro de 1970, em que tivemos seis mortos e 7 feridos graves; (ii) talvez por que não queriam arranjar problemas com um "gajo porreiro" de uma "companhia de pretos" que gostavam do tuga, o "furié Enrico" (Henriques, o meu apelido paterno)...
Mas eu hoje sei: havia já um claro desiquilíbrio de forças entre os tontos dos oficiais superiores e o resto da maralha a começar por nós, milicianos; eles já não tinham, por falta de competência e sangue na guelra, qualquer força (física e moral) para comandar; (iii) esse A.C.
teve uma entrada de leão e uma saída de cordeiro em Bambadinca; em suma, (iv) os gajos não tiveram tomates para me dar uma porrada; além, disso, (v) éramos muitos unidos, mesmo que a maior parte da malta não fosse lá muito politizada; (vi) por fim, o meu gesto foi interpretado, pelo meu capitão, como um "distúrbio emocional", pelo que no dia seguinte fui enviado à consulta do Dr. Vilar (se não me engano, o mesmo que é amigo do Guimarães): dá-me um Valium 10 que eu nunca cheguei a tomar; recordo-me de ter sido muito porreiro para comigo; interpretei o seu gesto como uma prova de solidariedade e de cumplicidade:
- Os filhos deles é que precisam de Valium 10 para ficarem com baixa psiquiárica em Lisboa e livrarem-se da guerra...
Enfim, é giro, há anos que não pensava nesta merda e agora fico perturbado... Eu sei que a escrita, como tu diz o João Tunes, é meia cura... Mas eu nunca mais consigo perdoar a mim a mesmo o não ter tido coragem ou dinheiro ou apoios para ir para Paris (aos 18 anos, como cheguei a planear), ter sido "apanhado como um cão" e mandado para a Guiné... Se calhar, isto também se passou com alguns de vocês... Eu não sou diferente.
Continuando: a gente não sabe exactamente o que se passava com os paras, comandos, fuzos, que não eram menos brutais... Já repararam que, tirando o Jorge Santos (fuzo, em Moçamboque), não temos aqui ninguém das tropas especiais na nossa tertúlia ?... Há malta das tropas especiais que ainda hoje falam por meias palavras, com um grande sentimento de culpa, julgo que muitos deles precisariam de apoio terapêutico e psicológico...
Tenho para aí também um post sobre os paras (uma operação que fizémos juntos e em que apanhámos o pobre do Malan Mané, roqueteiro, mandinga, que fazia parte de um bigrupo comandado pelo lendário Mamadu Indjai, também ferido nessa operação, em Setembro de 1969...).
Em suma, gostei do texto do João Tunes. É saudavelmente provocatório. Temos dificuldade em falar disto. Ele toca aí num ponto sensível para a rapaziada, pelo menos para os operacionais: por exemplo, eu, o António Levezinho, o Humberto, todos da CCAÇ 12; o Marques Lopes, que esteve como alferes, miliciano, em Geba e em Barro, e que foi gravemente ferido; o Vitor Junqueira que também era alferes, atirador; e depois há o Guimarães, que era de minas e armadilhas; e outros mais recentes, que ainda não se manifestaram muito... Estou a citar de cor... Não somos muitos, os operacionais...
Bom, vou ter que basar... Ciao. Façam o link para este endereço (se quiserem saber a estória do gigante Uloma, felupe, caçador de cabeças):
11 Julho 2005 > Guiné 69/71 - CIII: Comandos africanos: do Pilão a Conacri
Vejam também o que o escrevi, há tempos (uma parte de vocês já deve ter lido) sobre o guerrilheiro Malan Mané (o primeiro de vários que capturámos)...
09 Agosto 2005 > Guiné 63/74 - CXLVII: Malan Mané, guerrilheiro, vinte anos, mandinga
Meu caro João, meus caros amigos & camaradas (versão "universal", sem bolinhas vermelhas ao canto superior direito):
1. A realidade é sempre mais complicada do que a construção (social) que dela fazemos... Ainda não li o livro da Dalila, vi só um resumo... É claro que a Pide trabalhava bem articulada com as NT... O Spínola e a sua corte protegiam os gajos porque também precisavam deles.. No 25 de Abril, ele terá deixá-los cair, não sei...
Fui obrigado uma vez a partilhar um almoço em Bafatá, com dois ou três pides... Como antifascista, desde os meus catorze, quinze anos, eu tinha um asco aos pides... Eu estava incomodado com a merda da conversa e com a presença deles: um deles tinha levado uma dentada de um "filho da puta de um turra" (sic) mas não lhe pudera "cascar" (sic), em resposta, por causa do Caco Baldé, o Spínola... Tenho isso algures escrito nos meus canhenhos (eu tinha um diário lá na nhos terra....)...
Mas também tenho outros revelações tenebrosas que os meus soldados (fulas) me contavam, nas noites longas que passávamos no mato, em operações, em emboscadas, em patrulhamentos ao Mato Cão (Rio Geba Estreito, para protecção da navegação civil, os barcos da Casa Gouveia que iam e vinham de Bafatá), em tabancas de autodefesa, aqui e acolá...
Revelações da guerra pura e dura, em 1963, 64, 65, no tempo do Schultz, que terá sido uma verdadeira política de terra queimada e de genocídio (é a minha interpretação: nunca saberemos a extensão disto; há documentos da tropa que continuam secretos; além disso, branqueávamos os relatórios...).
No entanto, no meu tempo, havia ainda muitos vestígios desse tempoo: eu (mas também o Humberto, o Tony, Fernandes) passei por muitas tabancas, balantas e beafadas, reduzidas a cinzas, no outro tempo; havia só algumas estacas, tudo tinha sido invadido pelo mato; os habitantes terão fugido, "ido no mato", ou terão sido deslocados)...
Assim como já contei (está no blogue) a história, arrepiante, do Seco Camará, mandinga, que foi nosso guia em muitas operações no Xime, até ao dia em que lerpou, com um roquetada (andei a apanhar os bocados dele na manhã de 26 de Novembro de 1970; fizemos uma trouxa com o que restou, dele e de mais cinco dos nossos...). O Seco era o gajo que matava, à paulda, de noite, os "turras" (ou elementos suspeitos, ligados à população), e depois o capitão do Xime, "manga de bom pessoal" (sic), pagava uma laranjada no regresso ao quartel: o desgraçado contou-me esta estória, a mim, uns tempos antes de morrer...
Tudo isto se terá passado no início da guerra, por volta de 1963/64... Agora, não vos posso garantir que não era fanfarronice do gajo... Não creio que fosse. A coisa colava com outras estórias que os meus fulas me contavam, com aquele ar inocente e amoral das criancinhas que sabem coisas horríveis mas não têm (ainda) o sentido do trágico e do horror...
E o Uloma , dos comandos africanos ? ... De facto, tens razão: deixámos a parte suja da guerra para os pides (mas também para os gajos dos pelotões de reconhecimento & informações, como o sinistro sargento do cavalo marinho de que eu falo no post de 11 de Julho de 2005)... Para os pides e ... para os próprios guinéus!... Essa é que é a verdade. Mas também alferes e furriéis milicianos que eram mais chicos que os chicos...
Andei sempre de arma calada, sem bala na câmara, sem granadas, sem nunca ter feito fogo debaixo de fogo... Mas também engoli muitos sapos, até que um dia rebentei e chamei uns nomes feios ao A. C. e ao resto do comando do BART 2917, em plena parada, em frente à messe de oficiais, alto e bom som: "assasinos, cabrões, criminosos de guerra, limpo o cu às folhas do RDM"...
Nunca mais pude esquecer estas palavras de raiva e de impotência... Não me deram uma porrada, não sei porquê: (i) talvez por que por tinham a conscência pesada, no dia 26 de Novembro de 1970, em que tivemos seis mortos e 7 feridos graves; (ii) talvez por que não queriam arranjar problemas com um "gajo porreiro" de uma "companhia de pretos" que gostavam do tuga, o "furié Enrico" (Henriques, o meu apelido paterno)...
Mas eu hoje sei: havia já um claro desiquilíbrio de forças entre os tontos dos oficiais superiores e o resto da maralha a começar por nós, milicianos; eles já não tinham, por falta de competência e sangue na guelra, qualquer força (física e moral) para comandar; (iii) esse A.C.
teve uma entrada de leão e uma saída de cordeiro em Bambadinca; em suma, (iv) os gajos não tiveram tomates para me dar uma porrada; além, disso, (v) éramos muitos unidos, mesmo que a maior parte da malta não fosse lá muito politizada; (vi) por fim, o meu gesto foi interpretado, pelo meu capitão, como um "distúrbio emocional", pelo que no dia seguinte fui enviado à consulta do Dr. Vilar (se não me engano, o mesmo que é amigo do Guimarães): dá-me um Valium 10 que eu nunca cheguei a tomar; recordo-me de ter sido muito porreiro para comigo; interpretei o seu gesto como uma prova de solidariedade e de cumplicidade:
- Os filhos deles é que precisam de Valium 10 para ficarem com baixa psiquiárica em Lisboa e livrarem-se da guerra...
Enfim, é giro, há anos que não pensava nesta merda e agora fico perturbado... Eu sei que a escrita, como tu diz o João Tunes, é meia cura... Mas eu nunca mais consigo perdoar a mim a mesmo o não ter tido coragem ou dinheiro ou apoios para ir para Paris (aos 18 anos, como cheguei a planear), ter sido "apanhado como um cão" e mandado para a Guiné... Se calhar, isto também se passou com alguns de vocês... Eu não sou diferente.
Continuando: a gente não sabe exactamente o que se passava com os paras, comandos, fuzos, que não eram menos brutais... Já repararam que, tirando o Jorge Santos (fuzo, em Moçamboque), não temos aqui ninguém das tropas especiais na nossa tertúlia ?... Há malta das tropas especiais que ainda hoje falam por meias palavras, com um grande sentimento de culpa, julgo que muitos deles precisariam de apoio terapêutico e psicológico...
Tenho para aí também um post sobre os paras (uma operação que fizémos juntos e em que apanhámos o pobre do Malan Mané, roqueteiro, mandinga, que fazia parte de um bigrupo comandado pelo lendário Mamadu Indjai, também ferido nessa operação, em Setembro de 1969...).
Em suma, gostei do texto do João Tunes. É saudavelmente provocatório. Temos dificuldade em falar disto. Ele toca aí num ponto sensível para a rapaziada, pelo menos para os operacionais: por exemplo, eu, o António Levezinho, o Humberto, todos da CCAÇ 12; o Marques Lopes, que esteve como alferes, miliciano, em Geba e em Barro, e que foi gravemente ferido; o Vitor Junqueira que também era alferes, atirador; e depois há o Guimarães, que era de minas e armadilhas; e outros mais recentes, que ainda não se manifestaram muito... Estou a citar de cor... Não somos muitos, os operacionais...
Bom, vou ter que basar... Ciao. Façam o link para este endereço (se quiserem saber a estória do gigante Uloma, felupe, caçador de cabeças):
11 Julho 2005 > Guiné 69/71 - CIII: Comandos africanos: do Pilão a Conacri
Vejam também o que o escrevi, há tempos (uma parte de vocês já deve ter lido) sobre o guerrilheiro Malan Mané (o primeiro de vários que capturámos)...
09 Agosto 2005 > Guiné 63/74 - CXLVII: Malan Mané, guerrilheiro, vinte anos, mandinga
Guiné 63/74 - CCXXIX: Guerra limpa, guerra suja (3)
1. Texto de Luís Graça:
Meu caro João, meus caros amigos & camaradas (versão "universal", sem bolinhas vermelhas ao canto superior direito):
1. A realidade é sempre mais complicada do que a construção (social) que dela fazemos... Ainda não li o livro da Dalila, vi só um resumo... É claro que a Pide trabalhava bem articulada com as NT... O Spínola e a sua corte protegiam os gajos porque também precisavam deles.. No 25 de Abril, ele terá deixá-los cair, não sei...
Fui obrigado uma vez a partilhar um almoço em Bafatá, com dois ou três pides... Como antifascista, desde os meus catorze, quinze anos, eu tinha um asco aos pides... Eu estava incomodado com a merda da conversa e com a presença deles: um deles tinha levado uma dentada de um "filho da puta de um turra" (sic) mas não lhe pudera "cascar" (sic), em resposta, por causa do Caco Baldé, o Spínola... Tenho isso algures escrito nos meus canhenhos (eu tinha um diário lá na nhos terra....)...
Mas também tenho outros revelações tenebrosas que os meus soldados (fulas) me contavam, nas noites longas que passávamos no mato, em operações, em emboscadas, em patrulhamentos ao Mato Cão (Rio Geba Estreito, para protecção da navegação civil, os barcos da Casa Gouveia que iam e vinham de Bafatá), em tabancas de autodefesa, aqui e acolá...
Revelações da guerra pura e dura, em 1963, 64, 65, no tempo do Schultz, que terá sido uma verdadeira política de terra queimada e de genocídio (é a minha interpretação: nunca saberemos a extensão disto; há documentos da tropa que continuam secretos; além disso, branqueávamos os relatórios...).
No entanto, no meu tempo, havia ainda muitos vestígios desse tempoo: eu (mas também o Humberto, o Tony, Fernandes) passei por muitas tabancas, balantas e beafadas, reduzidas a cinzas, no outro tempo; havia só algumas estacas, tudo tinha sido invadido pelo mato; os habitantes terão fugido, "ido no mato", ou terão sido deslocados)...
Assim como já contei (está no blogue) a história, arrepiante, do Seco Camará, mandinga, que foi nosso guia em muitas operações no Xime, até ao dia em que lerpou, com um roquetada (andei a apanhar os bocados dele na manhã de 26 de Novembro de 1970; fizemos uma trouxa com o que restou, dele e de mais cinco dos nossos...). O Seco era o gajo que matava, à paulda, de noite, os "turras" (ou elementos suspeitos, ligados à população), e depois o capitão do Xime, "manga de bom pessoal" (sic), pagava uma laranjada no regresso ao quartel: o desgraçado contou-me esta estória, a mim, uns tempos antes de morrer...
Tudo isto se terá passado no início da guerra, por volta de 1963/64... Agora, não vos posso garantir que não era fanfarronice do gajo... Não creio que fosse. A coisa colava com outras estórias que os meus fulas me contavam, com aquele ar inocente e amoral das criancinhas que sabem coisas horríveis mas não têm (ainda) o sentido do trágico e do horror...
E o Uloma , dos comandos africanos ? ... De facto, tens razão: deixámos a parte suja da guerra para os pides (mas também para os gajos dos pelotões de reconhecimento & informações, como o sinistro sargento do cavalo marinho de que eu falo no post de 11 de Julho de 2005)... Para os pides e ... para os próprios guinéus!... Essa é que é a verdade. Mas também alferes e furriéis milicianos que eram mais chicos que os chicos...
Andei sempre de arma calada, sem bala na câmara, sem granadas, sem nunca ter feito fogo debaixo de fogo... Mas também engoli muitos sapos, até que um dia rebentei e chamei uns nomes feios ao A. C. e ao resto do comando do BART 2917, em plena parada, em frente à messe de oficiais, alto e bom som: "assasinos, cabrões, criminosos de guerra, limpo o cu às folhas do RDM"...
Nunca mais pude esquecer estas palavras de raiva e de impotência... Não me deram uma porrada, não sei porquê: (i) talvez por que por tinham a conscência pesada, no dia 26 de Novembro de 1970, em que tivemos seis mortos e 7 feridos graves; (ii) talvez por que não queriam arranjar problemas com um "gajo porreiro" de uma "companhia de pretos" que gostavam do tuga, o "furié Enrico" (Henriques, o meu apelido paterno)...
Mas eu hoje sei: havia já um claro desiquilíbrio de forças entre os tontos dos oficiais superiores e o resto da maralha a começar por nós, milicianos; eles já não tinham, por falta de competência e sangue na guelra, qualquer força (física e moral) para comandar; (iii) esse A.C.
teve uma entrada de leão e uma saída de cordeiro em Bambadinca; em suma, (iv) os gajos não tiveram tomates para me dar uma porrada; além, disso, (v) éramos muitos unidos, mesmo que a maior parte da malta não fosse lá muito politizada; (vi) por fim, o meu gesto foi interpretado, pelo meu capitão, como um "distúrbio emocional", pelo que no dia seguinte fui enviado à consulta do Dr. Vilar (se não me engano, o mesmo que é amigo do Guimarães): dá-me um Valium 10 que eu nunca cheguei a tomar; recordo-me de ter sido muito porreiro para comigo; interpretei o seu gesto como uma prova de solidariedade e de cumplicidade:
- Os filhos deles é que precisam de Valium 10 para ficarem com baixa psiquiárica em Lisboa e livrarem-se da guerra...
Enfim, é giro, há anos que não pensava nesta merda e agora fico perturbado... Eu sei que a escrita, como tu diz o João Tunes, é meia cura... Mas eu nunca mais consigo perdoar a mim a mesmo o não ter tido coragem ou dinheiro ou apoios para ir para Paris (aos 18 anos, como cheguei a planear), ter sido "apanhado como um cão" e mandado para a Guiné... Se calhar, isto também se passou com alguns de vocês... Eu não sou diferente.
Continuando: a gente não sabe exactamente o que se passava com os paras, comandos, fuzos, que não eram menos brutais... Já repararam que, tirando o Jorge Santos (fuzo, em Moçamboque), não temos aqui ninguém das tropas especiais na nossa tertúlia ?... Há malta das tropas especiais que ainda hoje falam por meias palavras, com um grande sentimento de culpa, julgo que muitos deles precisariam de apoio terapêutico e psicológico...
Tenho para aí também um post sobre os paras (uma operação que fizémos juntos e em que apanhámos o pobre do Malan Mané, roqueteiro, mandinga, que fazia parte de um bigrupo comandado pelo lendário Mamadu Indjai, também ferido nessa operação, em Setembro de 1969...).
Em suma, gostei do texto do João Tunes. É saudavelmente provocatório. Temos dificuldade em falar disto. Ele toca aí num ponto sensível para a rapaziada, pelo menos para os operacionais: por exemplo, eu, o António Levezinho, o Humberto, todos da CCAÇ 12; o Marques Lopes, que esteve como alferes, miliciano, em Geba e em Barro, e que foi gravemente ferido; o Vitor Junqueira que também era alferes, atirador; e depois há o Guimarães, que era de minas e armadilhas; e outros mais recentes, que ainda não se manifestaram muito... Estou a citar de cor... Não somos muitos, os operacionais...
Bom, vou ter que basar... Ciao. Façam o link para este endereço (se quiserem saber a estória do gigante Uloma, felupe, caçador de cabeças):
11 Julho 2005 > Guiné 69/71 - CIII: Comandos africanos: do Pilão a Conacri
Vejam também o que o escrevi, há tempos (uma parte de vocês já deve ter lido) sobre o guerrilheiro Malan Mané (o primeiro de vários que capturámos)...
09 Agosto 2005 > Guiné 63/74 - CXLVII: Malan Mané, guerrilheiro, vinte anos, mandinga
Meu caro João, meus caros amigos & camaradas (versão "universal", sem bolinhas vermelhas ao canto superior direito):
1. A realidade é sempre mais complicada do que a construção (social) que dela fazemos... Ainda não li o livro da Dalila, vi só um resumo... É claro que a Pide trabalhava bem articulada com as NT... O Spínola e a sua corte protegiam os gajos porque também precisavam deles.. No 25 de Abril, ele terá deixá-los cair, não sei...
Fui obrigado uma vez a partilhar um almoço em Bafatá, com dois ou três pides... Como antifascista, desde os meus catorze, quinze anos, eu tinha um asco aos pides... Eu estava incomodado com a merda da conversa e com a presença deles: um deles tinha levado uma dentada de um "filho da puta de um turra" (sic) mas não lhe pudera "cascar" (sic), em resposta, por causa do Caco Baldé, o Spínola... Tenho isso algures escrito nos meus canhenhos (eu tinha um diário lá na nhos terra....)...
Mas também tenho outros revelações tenebrosas que os meus soldados (fulas) me contavam, nas noites longas que passávamos no mato, em operações, em emboscadas, em patrulhamentos ao Mato Cão (Rio Geba Estreito, para protecção da navegação civil, os barcos da Casa Gouveia que iam e vinham de Bafatá), em tabancas de autodefesa, aqui e acolá...
Revelações da guerra pura e dura, em 1963, 64, 65, no tempo do Schultz, que terá sido uma verdadeira política de terra queimada e de genocídio (é a minha interpretação: nunca saberemos a extensão disto; há documentos da tropa que continuam secretos; além disso, branqueávamos os relatórios...).
No entanto, no meu tempo, havia ainda muitos vestígios desse tempoo: eu (mas também o Humberto, o Tony, Fernandes) passei por muitas tabancas, balantas e beafadas, reduzidas a cinzas, no outro tempo; havia só algumas estacas, tudo tinha sido invadido pelo mato; os habitantes terão fugido, "ido no mato", ou terão sido deslocados)...
Assim como já contei (está no blogue) a história, arrepiante, do Seco Camará, mandinga, que foi nosso guia em muitas operações no Xime, até ao dia em que lerpou, com um roquetada (andei a apanhar os bocados dele na manhã de 26 de Novembro de 1970; fizemos uma trouxa com o que restou, dele e de mais cinco dos nossos...). O Seco era o gajo que matava, à paulda, de noite, os "turras" (ou elementos suspeitos, ligados à população), e depois o capitão do Xime, "manga de bom pessoal" (sic), pagava uma laranjada no regresso ao quartel: o desgraçado contou-me esta estória, a mim, uns tempos antes de morrer...
Tudo isto se terá passado no início da guerra, por volta de 1963/64... Agora, não vos posso garantir que não era fanfarronice do gajo... Não creio que fosse. A coisa colava com outras estórias que os meus fulas me contavam, com aquele ar inocente e amoral das criancinhas que sabem coisas horríveis mas não têm (ainda) o sentido do trágico e do horror...
E o Uloma , dos comandos africanos ? ... De facto, tens razão: deixámos a parte suja da guerra para os pides (mas também para os gajos dos pelotões de reconhecimento & informações, como o sinistro sargento do cavalo marinho de que eu falo no post de 11 de Julho de 2005)... Para os pides e ... para os próprios guinéus!... Essa é que é a verdade. Mas também alferes e furriéis milicianos que eram mais chicos que os chicos...
Andei sempre de arma calada, sem bala na câmara, sem granadas, sem nunca ter feito fogo debaixo de fogo... Mas também engoli muitos sapos, até que um dia rebentei e chamei uns nomes feios ao A. C. e ao resto do comando do BART 2917, em plena parada, em frente à messe de oficiais, alto e bom som: "assasinos, cabrões, criminosos de guerra, limpo o cu às folhas do RDM"...
Nunca mais pude esquecer estas palavras de raiva e de impotência... Não me deram uma porrada, não sei porquê: (i) talvez por que por tinham a conscência pesada, no dia 26 de Novembro de 1970, em que tivemos seis mortos e 7 feridos graves; (ii) talvez por que não queriam arranjar problemas com um "gajo porreiro" de uma "companhia de pretos" que gostavam do tuga, o "furié Enrico" (Henriques, o meu apelido paterno)...
Mas eu hoje sei: havia já um claro desiquilíbrio de forças entre os tontos dos oficiais superiores e o resto da maralha a começar por nós, milicianos; eles já não tinham, por falta de competência e sangue na guelra, qualquer força (física e moral) para comandar; (iii) esse A.C.
teve uma entrada de leão e uma saída de cordeiro em Bambadinca; em suma, (iv) os gajos não tiveram tomates para me dar uma porrada; além, disso, (v) éramos muitos unidos, mesmo que a maior parte da malta não fosse lá muito politizada; (vi) por fim, o meu gesto foi interpretado, pelo meu capitão, como um "distúrbio emocional", pelo que no dia seguinte fui enviado à consulta do Dr. Vilar (se não me engano, o mesmo que é amigo do Guimarães): dá-me um Valium 10 que eu nunca cheguei a tomar; recordo-me de ter sido muito porreiro para comigo; interpretei o seu gesto como uma prova de solidariedade e de cumplicidade:
- Os filhos deles é que precisam de Valium 10 para ficarem com baixa psiquiárica em Lisboa e livrarem-se da guerra...
Enfim, é giro, há anos que não pensava nesta merda e agora fico perturbado... Eu sei que a escrita, como tu diz o João Tunes, é meia cura... Mas eu nunca mais consigo perdoar a mim a mesmo o não ter tido coragem ou dinheiro ou apoios para ir para Paris (aos 18 anos, como cheguei a planear), ter sido "apanhado como um cão" e mandado para a Guiné... Se calhar, isto também se passou com alguns de vocês... Eu não sou diferente.
Continuando: a gente não sabe exactamente o que se passava com os paras, comandos, fuzos, que não eram menos brutais... Já repararam que, tirando o Jorge Santos (fuzo, em Moçamboque), não temos aqui ninguém das tropas especiais na nossa tertúlia ?... Há malta das tropas especiais que ainda hoje falam por meias palavras, com um grande sentimento de culpa, julgo que muitos deles precisariam de apoio terapêutico e psicológico...
Tenho para aí também um post sobre os paras (uma operação que fizémos juntos e em que apanhámos o pobre do Malan Mané, roqueteiro, mandinga, que fazia parte de um bigrupo comandado pelo lendário Mamadu Indjai, também ferido nessa operação, em Setembro de 1969...).
Em suma, gostei do texto do João Tunes. É saudavelmente provocatório. Temos dificuldade em falar disto. Ele toca aí num ponto sensível para a rapaziada, pelo menos para os operacionais: por exemplo, eu, o António Levezinho, o Humberto, todos da CCAÇ 12; o Marques Lopes, que esteve como alferes, miliciano, em Geba e em Barro, e que foi gravemente ferido; o Vitor Junqueira que também era alferes, atirador; e depois há o Guimarães, que era de minas e armadilhas; e outros mais recentes, que ainda não se manifestaram muito... Estou a citar de cor... Não somos muitos, os operacionais...
Bom, vou ter que basar... Ciao. Façam o link para este endereço (se quiserem saber a estória do gigante Uloma, felupe, caçador de cabeças):
11 Julho 2005 > Guiné 69/71 - CIII: Comandos africanos: do Pilão a Conacri
Vejam também o que o escrevi, há tempos (uma parte de vocês já deve ter lido) sobre o guerrilheiro Malan Mané (o primeiro de vários que capturámos)...
09 Agosto 2005 > Guiné 63/74 - CXLVII: Malan Mané, guerrilheiro, vinte anos, mandinga
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