Contuboel. 15 de Julho de 1969 (revisto)
1. Capri, c’est fini!... Ainda te lembras da velha canção do verão de há três anos, em Lisboa (1) ? Pois é, estão a chegar ao fim as férias de Contuboel, o dolce far niente da tropa tropical... Cheguei à Guiné há dois meses e meio. E ainda não vi, não senti nem cheirei a guerra (a não ser talvez no percurso, em LDG, no Rio Geba, a caminho do Xime e depois no troço Xime-Bambadinca, no dia da nossa partida de Bissau para Contuboel: confesso que havia alguma tensão nos rotos dos periquitos...).
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Os alegres dias de Contuboel (2 de Junho a 18 de Julho de 1969). Legenda do fotógrafo: "Em 10 de Julho de 1969, numa canoa no Geba a caminho de Sonaco... Reconhecem-se da esquerda para a direita o Tony Levezinho, eu, o Moreira, o Rocha, condutor, o Rodrigues, já falecido [ todos eles, quadros metropolitanos da CCAÇ 12], e o djubi, manobrador da canoa, de pé".
Acabámos os exercícios finais da instrução de especialidade, que decorreram entre 6 e 12 de Julho, a 10 km a norte de Contuboel. Recebemos a visita do homem grande de Bissau (2). Consta que já nos deu destino, a nós e aos nossos queridos nharros (3).
Acabaram-se os passeios tranquilos pelo Rio Geba, de piroga. As conversas, ao fim da tarde, debaixo do poilão, com os djubis, as bajudas e as mulheres grandes e os homens grandes. As conversas intelectuais com o meu amigo Monteiro (4). Os meus vizinhos aldeões com quem gostava de conversar. As pacatas idas às hortas das proximidades para comprar bananas e abacaxis...
Vou ter saudades de Contuboel, das frondosas margens do Geba, da paisagem luxuriante, das amáveis lavadeiras mandingas, de mama firme, que encontrávamos pelo caminho. Mas, como diz a canção, é muito pouco provável cá um dia voltar. Em contrapartida não penso neste momento em Lisboa nem no meu regresso. Contuboel acabou: há agora muitos milhares de quilómetros para palmilhar, numa prova que é, para mim, para todos nós, o grande teste de resistência... e de sobrevivência.
Vou ter saudades das histórias que a velhice de Contuboel nos contava. Madina do Boé, Fiofioli… Nós, os periquitos, ouvimos com respeito a velhice e é, com natural apreensão, que nos preparamos para montar a tenda algures no chão fula. Dizem-me que marchamos, dentro de dias, para Bambadinca. Não gostei do sítio quando por lá passei, há um mês e meio. Ainda cheirava a pólvora... Em contrapartida, o aquartelamento é novo, oferecendo boas condições de alojamento, pelo menos para os oficiais e sargentos.
2. Março de 1969. Durante dez dias e dez noites, de 8 a 18 de Março, o triângulo Xime-Bambadinca-Xitole é passado a pente fino: 1300 homens, além da aviação e da artilharia, estão empenhados na grande operação de limpeza a que foi posto o nome de código de Lança Afiada (não tenho ideia se a marinha esteve envolvida, e em especial o corpo de fuzileiros, cortando a possível retirada do In pelo Rio Corubal).
Estava-se então em plena época seca: o capinzal já não resiste às granadas incendiárias e as clareiras, abertas pelas queimadas na savana arbustiva, deixam entrever a imensa mole de vegetação tropical para além da qual fica tabanca di bandido, em florestas sombrias onde coabitam dginé e najoré, e que na algaraviada dos meus nharros quer dizer irãs, diabos, diabretes, duendes e toda a espécie de espíritos (bons e maus)…
O objectivo da operação é, como sempre, aniquilar, capturar ou, no mínimo, expulsar o IN, destruir todos os seus meios de vida e recuperar a população sob o seu controlo... (À força, se a dita população não quiser voltar a viver sob a nossa bandeira e a nossa soberania).
A ideia de manobra é simples: da Ponta do Inglês (antigo aquartelamento das nossas tropas, abandonado em finais de 1968, se não me engano) à mata do Fiofioli, da estrada Mansambo-Xitole à Ponta Luís Dias (outrora um florescente entreposto comercial à beira rio) um enorme cilindro compressor irá empurrando tudo o que for balanta, beafada e bicho do mato para o Rio Corubal onde os esperam os pássaros de fogo dos tugas, os hipopótamos, os jacarés, as formigas carnívoras, os jagudis...
Oficialmente o dispositivo do IN na área compreendida entre a linha geral Xime-Xitole e a margem direita do Rio Gorubal foi desarticulado — um eufemismo, de resto, muito utilizado nos nossos relatórios militares para justificar resultados mais morais e psicológicos do que materiais em operações desta envergadura, e que quando muito só se realizam de dois em dois anos (Na verdade, não é todos os dias que nos podemos dar ao luxo de mobilizar o equivalente a um agrupamento, ou seja, três batalhões).
Na prática, os roncos não foram espectaculares: para além de algumas toneladas de arroz destruídas e de umas tantas casas de mato ou cubatas queimadas, enfim, para além de alguns contactos com o IN, sempre à distância, “o que contou sobretudo foi termos penetrado em santuários do IN tão míticos como a mata do Fiofioli” (diz-me um furriel da velhice com quem gosto de conversar do passado recente). Fico a saber que o Fiofioli é um sítio tão temível para os tugas da Zona Leste como, noutros sectores, o Boé, o Cantanhez, o Morès, o Choquemone, o Caresse ou a ilha do Como.
- Afinal, nem hospital nem enfermeiras cubanas nem sequer o fantasma do Nino vestido à cowboy - comentava, entre irónico e desapontado, à mesa da lerpa, um outro furriel da velhice de Contuboel - Foi só por dizer que estivemos na mata do Fiofioli… Nem sequer fiz o gosto ao dedo!
O que eu posso concluir destas conversas entre periquitos e velhinhos, no meio de rodadas de cerveja e de uísque, é que depois do inferno de Madina do Boé, a Lança Afiada teve um certo sabor a vitória para as NT.
0 que se passara, entretanto, é que, na impossibilidade de resistir abertamente à contra-penetração das NT, a guerrilha ensaiara algumas manobras de diversão pelo fogo, enquanto as populações sob o seu controlo, previamente alertadas, se metiam na arca de Noé (quiçá com toda a bicharada do mato, os porcos, as galinhas), cambando o Rio Corubal e pondo-se a salvo na outra margem... Em suma a velha táctica dum conhecido mestre escola chinês: “dispersar quando o inimigo ataca, reagrupar quando o inimigo retira”…
Um mês depois, e quando os tugas voltavam a dormir de cu para o ar, preparando-se para hibernar nos seus campos fortificados durante a estação das chuvas, os diabos negros da floresta desencadeavam uma série de acções que culminariam no ataque em força, inesperado e espectacular, a Bambadinca, a sede do comando do sector L1 até então inviolável...
Foi a 28 de Maio de 1969, à noite, estávamos nós a chegar a Bissau. Quando passámos por Bambadinca, oito dias depois, a caminho de Contuboel, não se falava de outra coisa… "Podíamos ter sido todos mortos ou apanhados à unha, tal era a bandalheira em que estava o quartel" - confidenciou-me o meu conterrâneo e amigo, o Agnelo, 1º cabo de transmissões da CCS... De facto, faziam-se quartos de sentinela... sem armas!
Ao que soube mais tarde, o comandante e o seu adjunto (5) apanharam uma porrada do Spínola e seguiram com guia de marcha para Bissau...
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Notas (L.G. - 2005)
(1) Canção, romântica, então em voga, nos idos anos de 1965/66, do francês Hervé Villard (n. 1946). A letra era típica da época, delicodoce, inócua, pacífica, para consumo de adolescentes apaixonados, quando ainda se ouviam canções francesas românticas na nossa rádio e os copains e as copines da França do acordeão e do Charlles de Gaulle preparavam para incendiar Paris: "Nous n'irons plus jamais,/ Où tu m'as dit je t'aime,/ Nous n'irons plus jamais, /Comme les autres années, /Nous n'irons plus jamais, /Ce soir c'est plus la peine, /Nous n'irons plus jamais, /Comme les autres années; Capri, c'est fini, /Et dire que c'était la ville / De mon premier amour, /Capri, c'est fini, /Je ne crois pas /Que j'y retournerai un jour" ...
(2) Forma carinhosa ou reverente como era tratado o general Spínola pela NT e pela população local que convivia connosco.
(3) Termo algo depreciativo (tal como tugas, sinónimo de brancos de Portugal) com que tratávamos os africanos da Guiné. Não se pode dizer que o termo fosse explicitamente racista. Era uma expressão de caserna.
(4) Furriel miliciano Monteiro, da CART 2479 / CART 11, que seguiu para Pitche, a nordeste de Nova Lamego (ou Gabu), com os seus africanos (soube-o há dias), na mesma atura em que nós (CCAÇ 12) seguimos para Bambadinca. Estes africanos fizeram a recruta e a instrução de especialidade juntamente com os nossos. Na altura Contuboel funcionava co,mo um centro de instrução militar. Nunca mais o tornei a ver, ao Monteiro. Espero fazê-lo em breve. Graças à Net, foi ele que me localizou, embora fosse eu a procurá-lo. Um ciber-abraço, daqui, para o Renato Monteiro!
(5) BCAÇ 2852 (1968/70)
2 comentários:
Campelo de Sousa
Eu tambem passei por Bambadinca, estive em Bafatá no Posto de Transmissões em 1970.
Em 1971 fui para Nova Lamego, tambem para o Posto de Transmissões pois eu era Radiotelegrafista.
Estive em Nova Lamego Até Setembro de 1972, tendo regressado a Lisboa em 14 de Outubro de 1972.
Parabens pelo exelente Blog.
Esquecime de dizer que fui mobilizado em rendição individual que embarquei em Lisboa a bordo do barco Ana Mafalda no dia 18 de Setembro de 1970, desembarquei em Bissau na manhã do dia 24 do mesmo mes e ano.
Tamebem terei algumas historias para contar inclusiva uma e talvez a mais marcante, passada em Bambadinca, quando entrei pela primeira e unica vez na capela e estavam lá expostas tres urnas com soldados mortos em combate !!
Mais uma vez parabens pelo excelente Blog !!
Cumprimentos,
Campelo de Sousa
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