18 abril 2006

Guiné 63/74 - DCCXII: O meu testemunho (Paulo Raposo, CCAÇ 2405, 1968/70) (2): Aspirante em Elvas, Tancos e Abrantes

O Paulo Enes Lage Raposo foi Alferes Miliciano de Infantaria, com a especialidade de Minas e Armadilhas, na CCAÇ 2405, pertencente ao BCAÇ 2852 (Guiné, Zona Leste, Sector L1, Bambadinca, 1968/70> Galomaro e Dulombi).

Publica-se a II parte de O meu testemunho.

Extractos de: Raposo, P. E. L. (1997) - O meu testemunho e visão da guerra de África.[Montemor-o-Novo, Herdade da Ameira]. Documento policopiado. Dezembro de 1997. pp. 7-10 (1)

© Paulo Raposo (2006)

ELVAS

Passado este período sou enviado em Setembro para Elvas, para o B.C. 8, já graduado como Aspirante a Oficial miliciano.

Aí dei instrução a duas incorporações de soldados. Foi um trabalho gratificante mas duro, pôr rapazes, com os músculos viciados no trabalho manual do campo, a marchar e a manusear as armas.

Elvas era uma cidade bonita, e o quartel estava instalado num antigo convento, dentro das muralhas da cidade, junto à porta poente. Dali se avistava o Forte de Elvas, prisão militar para os desertores.

O forte não tinha água canalizada. Eram os reclusos que, diariamente, iam buscar água à fonte que ficava no exterior. O transporte da água era feito numas barricas que eram carregadas às costas. Houve muito boa gente que se ofereceu para pagar o custo da instalação de uma canalização.

Os reclusos, porém, sempre se recusaram pois era uma maneira de diariamente saírem das suas celas. Fui visitar o Forte uma vez, impressionou-me muito.

Como o nosso quartel era na cidade, a carreira de tiro estava bem fora das muralhas. Ai dávamos instrução de tiro aos soldados. Como se usavam munições reais, os procedimentos na carreira de tiro eram muito severos. Os soldados eram colocados em linha e a ordem carregavam as armas com as munições, apontavam e disparavam, ora deitados, ora em pé, para os alvos que estavam na barreira.

Todos estes procedimentos eram feitos a ordem de comando.

Um dia, depois de eu dar a ordem de fogo, um soldado roda, vira-se com a arma apontada para mim e, premindo o gatilho, diz:
- Meu Aspirante, a arma não dispara.

Nossa Senhora me salvou. A arma estava travada.

No fim de cada incorporação havia exercícios finais, que realizávamos no campo.
Os exercícios finais da primeira incorporação a que dei instrução em Elvas, coincidiram no mês de Dezembro. Fomos a pé desde Elvas até aos arredores de Sta. Eulália. Ai montámos o bivaque, nome que se dá à disposição das tendas pela sua forma geométrica.

Cada homem levava um pano de tenda. Cada tenda, ou bivaque, era montada por um grupo de três homens. Arranjavam-se duas estacas. Um pano de tenda fazia uma água, o segundo a água oposta e o terceiro pano fazia o fecho de um dos lados e cobria o chã. Os panos eram ligados por cordas que passavam pelos olhais.

A parte aberta ficava obviamente virada contra o vento. Naqueles três dias que dormimos no campo passei o maior frio da minha vida. De manhã as poçaas de agua estavam geladas.

No B.C. 8 fiz lá dois grandes amigos, ambos também Aspirantes. Um era o Sobreiro, a quem nunca mais vi, ew o outro o Baptista, do Porto, que embora tenha também seguido para a Guiné, nunca mais me cruzei com ele.

TANCOS

De Elvas segui para o Polígono de Tancos, para tirar a especialidade de Minas e Armadilhas. Aí passei um tempo agradável. As formalidades militares estavam reduzidas ao mínimo. A porta de Armas do Centro onde tínhamos instrução, costumava lá estar uma praça de vez em quando, não era sempre. Ali aprendi a manusear todos os tipos de explosivos e detonadores com o maior a vontade. Perdi o medo mas não o respeito àquele material.

Frequentemente visitávamos os nossos vizinhos paraquedistas, que nos recebiam sempre da melhor maneira. Várias vezes nos convidaram para saltar da Torre, mas não tiveram voluntarios.


ABRANTES

De Tancos segui para Abrantes, aonde fomos formar o nosso Batalhão [BCAÇ 2852].

A minha companhia era a 2405, comandada pelo Capitão miliciano Jerónimo, natural de Lourenço Marques. Quanto a Alferes havia o David e o Felício, para além de mim. Eram ambos de Coimbra e, como tinham andado nas greves estudantis, passaram por Lamego para tirarem o curso de operações especiais. Coitados, penaram bem por lá.

Por último o Alferes Rijo, que passou a ser o primeiro por questões de antiguidade (na tropa a antiguidade é um posto) e veio substituir um rapaz que deu baixa. Antes de começar a guerra já estava cansado.

Quanto a Furriéis havia-os de todas as proveniências, mas muito amigos. No que diz respeito aos soldados, eram na sua maioria Beirões, leais, sãos e generosos. Tínhamos ainda dois Sargentos.

O médico que mais tempo nos acompanhou, foi o Carlos Pereira Alves, hoje famoso cirurgião nos Capuchos. Era e é um grande amigo.

Por último tínhamos o capelão, o Padre Zé, que era da nossa idade. Costumávamos meter-nos com ele, por causa das revistas de toda a espécie que por lá apareciam. Nunca mais soube dele.

Ali começou a fase de adaptação de uns aos outros.

Uma companhia de caçadores é constituída por 4 grupos de combate. Cada grupo de combate era comandado por um Alferes e era dividido em três secções. Cada secção era constituída por 9 homens e comandada por um Furriel.

Quanto a armamento, cada homem tinha uma espingarda automática G3 e cada secção tinha uma arma pesada. A primeira secção tinha uma G3 com cano reforçado HK, a segunda secção tinha um morteiro 60 mm e a terceira secção tinha um cano de lançaamento de granadas de bazuca.

Veio-se a provar depois na Guiné, devido à densa vegetação, que a melhor de todas as armas era o dilagrama. O dilagrama era um sistema que se adaptou à G3. Colocava-se na G3 uma munição sem projéctil e no topo do tubo da arma colocava-se uma granada de mão apoiada num dispositivo.

O disparo fazia de catapulta que lançava a granada de mão a bem uns 30 metros e rebentava em cima do inimigo. Houve muitos acidentes fatais com este sistema (2) pois os soldados às vezes colocavam munições com projéctil e então a granada rebentava-lhes no tubo.

Os meus Furriéis eram o Ferreira, de Anadia, o Nogueira, de Soure, e o Tavares, de Pinhel. Eram os melhores.

Todos os anos nos vamos reunindo, somos como se fosse uma família. Os almoços que fazemos de confraternização duram quase sempre a tarde toda. À entrada colocamos uma caixa onde cada um põe o valor do almoço. Coloca-se o que se quiser, e se se quiser. Sobra sempre dinheiro. Não há gente como esta.

Cada ano aparece sempre mais um, por efeito de passa-palavra. Neste ano de 1997, o Baptista veio de Paris para estar presente ao almoço. Há alguns em França e na Alemanha.

Como o quartel de Abrantes não comportava com todos os rapazes, a mim e a alguns outros, deram-nos um subsídio de pernoita, e passámos a dormir na cidade.

Na cidade aluguei um quarto, na casa de uma senhora viúva, a meias com outro rapaz, também Aspirante, que já estava mobilizado para a Guiné.

Como a nossa vida no Quartel era dura, em virtude da instrução que estavámos a dar aos soldados, à noite, depois do jantar, era tiro e queda. Assim que púnhamos a cabeça na almofada não ouviamos mais nada.

Acontece porém que aquele rapaz com quem partilhava o quarto, tinha um dormir muito agitado. Como já estava mobilizado para a Guiné, todas as noites gritava como se já estivesse na guerra.

Passados três meses, depois de eu ter sido mobilizado, e ele já ter seguido para a Guiné, foi a minha vez de começar a ter noites agitadas, que duraram ate alguns anos após o meu regresso.
Era a rotina dos tempos de guerra.

____________

Notas de L.G.

(1) Vd post de 12 de Abril de 2006 > Guiné 63/74 - DCXCVI: O meu testemunho (Paulo Raposo, CCAÇ 2405, 1968/70) (1): Mafra

(2) Vd. post de 8 de Agosto de 2005 > Guiné 63/74 - CXLVI: Setembro/69 (Parte I) - Op Pato Rufia ou o primeiro golpe de mão da CCAÇ 12

(...) "Foi nessa altura que um dilagrama, ao ser descavilhado, rebentou à boca da arma, por deficiência da alavanca de segurança, tendo atingido o prisioneiro Malan Mané e o Soldado Iero Jau (2º Gr Comb) que o conduzia e que teve morte quase instantânea. Entretanto já tinham sido feridos o 1º Cabo Mateus (3º Cr Comb) com um tiro no joelho e dois picadores da milícia [do Xime]" (...).

1 comentário:

ALSAMEIRO disse...

FUI COLOCADO NO RI16 EM EVORA COMO UNIDADE MOBILIZADORA MAS FUI DAR INSTRUÇÃO PARA CHAVES.ENTRETANTO DURANTE UM MÊS FUI COMANDANTE DE COMPANHIA(NÃO HAVIA MAIS NINGUEM) E O COMANDANTE CHAMOU-ME E DISSE PARA ENVIAR PARA O PRESÍDIO DE ELVAS 20 HOMENS.HOUVE UM QUE SE OFERECEU PARA O ULTRAMAR PARA NÃO IR PARA ELVAS......