20 abril 2006

Guiné 63/74 - DCCXIX: Estórias do Zé Teixeira (7): Síndrome de guerra

Guiné-Bissau > Desenho inserido na publicação Conhecer para amar, amar para proteger: Rio Grande de Buba e Lagoa de Cufada. Bissau: Tiniguena. 1995.Imagem gentilmente cedida por José Teixeira (2006).


Aqui vão mais estórias do Zé Teixeira... Chamemos-lhe narrativas autobiográficas. Escrevê-las faz-lhe bem a ele; lê-las faz-nos bem a nós... Obrigado, Zé! Foste um herói, és um herói! (LG)

Síndrome de guerra

Passados uns meses do regresso, em plena Baixa do Porto, assisti a um embate de duas viaturas. O estrondo assustou-me e desatei a correr, parecia um carteirista logo após ter feito a maroteira de sacar a carteira a algum incauto.

Parei no Carmo a cerca de 800 metros, ofegante e desorientado, o meu corpo tremia todo. Sentei-me numa cadeira no Café piolho e pus-me a reflectir sobre o acontecido. Revi a cena e procurei compreender-me. As conclusões foram simples e rápidas: Vieram-me à memória as cenas de sangue que vivi na Guiné, o sangue ainda quente que senti nas minhas mãos, os feridos e mortos que entraram na minha vida como enfermeiro à força. Tive medo de que houvesse feridos e tudo voltasse a acontecer.

Ainda não sou capaz de parar junto de um acidente em estrada. Não dá para entender.

Passados uns anos sentia-me muito irritável. Tudo me angustiava. Reagia sobretudo com a família de forma menos correcta o que não era consentâneo com a minha maneira de pensar, ser e estar na vida.

Procurei um neurologista amigo. Falei largos minutos, mais de uma hora, talvez. A receita deixou-me de boca aberta:
- São efeitos secundários da guerra que viveste, e que estão a vir ao de cima. Os medicamentos não curam isso. Só o tempo te vai ajudar. -

E o tempo tem vinmdo, de facto, a ajudar. Aconselhou-me a deixar o tabaco, o que não era problema, pois desde que fui para a tropa que tinha saído dos meus hábitos. Deixar de tomar café, o que foi mais difícil. Aguentei oito dias e para comemorar, voltei . Só que felizmente foi ao fim da tarde e com estava em desintoxicação, passei a noite sem dormir e depois… aguentei mais de dez anos. Hoje tomo um por dia, da parte de manhã.

Aconselhou-me ainda a não abusar do álcool, o que também não era problema, pelo que ainda aqui estou.

Em 1999 tive de fazer um exame ao aparelho auditivo, devido a uns ruídos estranhos que sentia e por cá ficaram. Trata-se de artero-esclerose dos vasos capilares auditivos, que origina um ruído do sangue ao forçar a sua passagem nos vasos. Nada de grave, só que levarei esses ruídos para a cova um dia. Incomoda, mas não dói, nem afecta a saúde.

O estranho é a descoberta que o médico fez. Tenho uma quebra de audição nos sons agudos de cerca de 20%. Pergunta-me o médico:
- Andou na guerra ?
- Sim estive na Guiné entre 1968 a 1970.
- Mas andou mesmo nas zonas de combate ?
- Sim, sofri muitos ataques, acompanhei ataques, sofri emboscadas . . .
- Então está explicado a sua quebra de audição nos agudos. Chama-se síndrome de guerra e está dentro dos limites previstos, não se preocupe porque não vai evoluir, disse o médico.

Chega de estórias estranhas à guerra, mas que são reflexos da guerra que vivi.
Venham mais cinco, para contar mais estórias destas que as há por aí.

José Teixeira
(1º cabo enfermeiro Teixeira, da CCAÇ 2381, Buba, Quebo, Mampatá, Empada, 1968/70).

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