Poeta é quem tem
Uma estátua do Simões
No Parque dos Poetas
Mas também
As contas em dia
Nos Serviços Municipalizados
De Águas e Saneamento
De Oeiras.
Poeta não é
O Bocage, émulo de Camões
Que não tinha maneiras,
E, pior que tudo,
Dizia asneiras:
- Porra, atchiiim!
Como o Ary, o ordinário,
O Zé Carlos Ary dos Santos,
O planfletário,
O bardo
Do botequim.
Ser poeta não é
Ter os colhões...
In su situ
Como o Mário,
O Cesariny,
Que não quis, o parvo,
Ganhar o euromilhões
E entrar para a história
Da literatura do imobiliário.
Em questões de género,
Aplique-se, entretanto,
O camartelo
Camarário,
Perdão, o regulamento municipal
Em forma de soneto,
Que manda atribuir quotas
Às senhoras:
- São cotas, senhoras, são cotas!
Para o caso são três, não mais,
Que foi a conta que Deus fez:
Natália, Sophia, Florbela.
Ficam sempre bem
Nas quermesses da cidade,
Nos jogos florais,
Nos bazares da caridade,
Nas feiras e mercados,
Na vida e na tela,
Nos funerais
E procissões.
Um século atrás
As nossas queridas poetisas
Teriam ficado à porta do parque,
Com cliché tirado pelo Joshua Benoliel,
Capa na Ilustração Portuguesa,
E legenda a condizer:
"Não ficam bem as senhoras
Que se metem a doutoras".
Dantes os poetas, os machos,
Íam para o Olimpo,
Laureados,
Ou para o Aljube,
Agrilhoados,
Ou para o Manicómio
Do Rilhafolhes,
Ferrados e dopados,
Ou para o Tarrafal,
Exilados,
Ou para a Morgue,
Congelados,
Ou até para o Panteão Nacional,
Nacionalizados.
Conforme as vagas que houvesse
E o equilíbrio dos quatro humores
Do Senhor Intendente Geral.
Só a Sophia pediu para voltar:
Para passar os dias que não viveu
...Junto do mar.
Hoje o poeta,
Meus senhores,
Não sonha nem dorme
Nos bancos de jardim,
Ocupados pelos sem abrigo.
Vai directamente
Para o Parque,
De preferência já morto e cremado.
O Parque dos Poetas.
Das merendas.
Dos velhinhos
Que dão milho aos pombinhos.
Das criancinhas
Da escola,
De bibe aos quadradinhos.
Dos desempregados
À espera do subsídio de
Desemprego
E a fazer contas
À puta da vida
Que está pela hora da morte.
O Parque dos Poetas
E dos namorados,
Do arco e do balão
E das quadras
Ao Santo António,
Milagreiro,
Casamenteiro,
Brigão,
Brejeiro.
Porque a Poesia
Quando nasce não é
Para todos,
Terá dito um estrangeirado,
O Conde de Oeiras
E futuro Marquês de Pombal
Aos eleitos e aos camareiros,
Atentos e venerandos,
Em soirée,
No seu paço,
Ali mesmo, junto à Marginal.
Homens de letras
Ou de cânones,
Os poetas lusitanos.
Míopes, nos seus fatos
Poídos e castanhos.
Só o Jorge Sena
Era engenheiro.
Naval.
O Torga, clínico.
E o Pessoa, coitado,
Escriturário comercial.
Marçanos,
Cabouqueiros,
Coveiros,
Limpa-chaminés,
Cantoneiros de limpeza,
Calafates,
Estivadores,
Calceteiros,
Picheleiros,
Almocreves,
Pescadores,
Barbeiros-sangradores,
Construtores civis
Ou outra gente
Dos ofícios mecânicos.
Mão há nenhum,
Que se saiba,
Que conste da lista imortal.
Dos poetas imortais.
Minto: há o Álvaro de Campos,
Guardador de rebanhos.
Mas esse não vi lá,
Porque é proibido pisar a relva
E pastar. E sonhar.
E sobretudo apascentar.
Guardador de rebanhos,
À porta da capital,
Parece mal,
Destoa.
Não dá.
Não rima com coisa boa,
Não rima com Lisboa.
Nem o Alegre, o Manel,
Escapou, em vida,
Ao destino cruel
De ser transformado
Em réplica
Do homem de mármore.
Podiam ter-lhe posto,
Ao menos, numa mão, a pena,
E na outra a cana de pesca.
Há quem jure que é castigo
Para o ex-revolucionário
Da Praça da Canção,
Hoje homem de Estado,
Senador da República,
Bonacheirão,
Canastrão,
Arengando para a arraia-miúda do TagusPark:
"Em Nambuangongo, tu não viste nada!...
Quem riria,
Até às lágrimas,
Se fosse vivo,
Seria
O caixa d'óculos do O'Neil,
Agora príncipe
Do Reino da Dinamarca.
Imagino-o,
De Ombro na Ombreira,
Polidor de esquinas,
Desnalgando as gajas,
Mesmo não sendo trolha
Nem nunca tendo ido
Para o trabalho,
De lancheira na mão.
Ou de lancheira na mão
Para o trabalho,
Trocando a mão direita
E a esquerda,
A lancheira e a mão,
Subindo e descendo a Avenida
Da Liberdade
À espera talvez de uma outra vida,
Mais segura,
Ou da dita,
Que só era de nome,
Reza a história,
Por causa da Ditadura,
De má memória.
Mas que pode a palavra, etérea,
De um poeta,
Surrealista, anarca,
Genial,
Mas mais que morto,
Contra a palavra, de pedra e cal,
De um autarca,
No seu feudo, no seu horto?
Alguém roubou
Uma pérola do colar
Da Florbela,
Tão excessiva em vida
Como na morte.
Algum admirador secreto,
Coleccionador,
Adolescente,
Voyeurista,
Turista,
Visionário,
Cleptómano,
Antiquário,
Violador,
Sexista,
Misógeno,
Detective,
Homem aranha.
Ou quiçá
Algum promotor
(I)mobiliário,
O próprio dono da obra,
O empreiteiro,
O engenheiro,
O arquitecto paisagista,
O ajudante do escultor,
O fiscal,
A mulher da limpeza,
Ou até o homem do lixo.
Outro tonto, senil,
Septuagenário,
É o Herberto, o Helder,
Que recusa viver
Com qualidade de vida
No Lupanário
Da poesia.
Porque ser poeta, sortudo,
É ser maior, ser mais alto,
Viver no enésimo andar
Com vista para o Tejo e tudo.
Por mim, confesso,
Gostaria de ter sido
Conservador
Do Registo Predial
Como Pessanha.
E de ter escrito,
Não a fria Clépsidra,
Mas o Caleidoscópio
Lusotropical
Em mangas de alpaca.
Gostaria de ser poeta-funcionário,
Com cama, mesa e roupa lavada,
Uma tença, mesada ou salário,
E ajudas de custo para poder sonhar.
Gostaria de ter feito (e dito)
Um soneto
A letra gótica,
À mão,
À moda antiga,
Com punhos de renda,
E de ter tido tempo
Para fumar ópio
Em Macau
E imaginar
O eclipse do Império Colonial,
Como um baralho de cartas,
A desmoronar-se,
Do Minho a Timor.
Gostaria sobretudo
De ter escrito
E de pôr no meu currículo
O Sentimento de um Ocidental:
"Nas nossas ruas, ao anoitecer
Há tal soturnidade, há tal melancolia,
Que as sombras, o bulício, o Tejo, a maresia
Despertam-me um desejo absurdo de sofrer".
Em Lisboa nem poesia má nem prosa boa,
Mas prefiro aquele verso,
Mais rasca,
Mais proleta,
Mais canalha,
Que evoca os construtores da cidade,
Tão bravos quanto boçais,
Vistosos nos seus fatos-macacos,
E que engrossavam as estatísticas
Dos acidentes de trabalho
Mortais:
"Semelham-se a gaiolas, com viveiros,
As edificações somente emadeiradas:
Como morcegos, ao cair das badaladas,
Saltam de viga em viga, os mestres carpinteiros".
Poeta maior da nossa modernidade menor,
Cesário, o Verde,
Não alcançou o Século
Da energia nuclear.
Da viagem à lua.
Dos amanhãs que o outro galo cantaria.
Da Festa do Avante.
Do cimento armado.
Do motor de explosão.
Das alegrias dos futebóis.
Do triunfo da ecologia
E da googlização.
Da bomba que brilhou
Mais do que mil sóis
Em Hiroshima, meu amor.
O Século dos chips
E do chip de porco liofilizado.
Da caixinha que mudou o mundo.
Da aspirina e da farinha Amparo.
Do terror de Tianannmen.
Dos comícios da Fonte Luminosa
Ou do povão do garrafão
No Pontal do Portugal sacro-profano.
Não conheceu o Sá,
Talvez só o Mário,
Não o Soares, mas o Carneiro
A fazer o pino.
Não figura por isso
No Parque do Isaltino.
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