10 janeiro 2006

Guiné 63/74 - CDXXXVIII: Mais estórias do Virgínio Briote (1): o Tintas fugiu ?

Viva Luís,

Estou de regresso com mais dois episódios das minhas memórias da Guiné.
Um abraço a todos os camaradas.
vb
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Saudamos o regresso do nosso camarada vb. Publicamos hoje o primeiro desses "episódios". LG


1. O TINTAS FUGIU?

Alternava períodos no mato com uma semana em Brá. Aproveitava esses dias para manter-se em forma, praticava tiro, mantinha o grupo em instrução diária, ao fim do dia ia até Bissau, dava uns passeios a pé. No fim de jantar, quando tinha vontade, punha a escrita em dia e lia pela noite fora.

Não havia muito para fazer na cidade. O hotel Portugal onde se reunia ao jantar com os conhecidos, o Fonseca de vez em quando para comer frango assado com batatas fritas aos paus, enormes, ou beber cerveja cá fora com um cesto de ostras ao lado.

Parava na esplanada do Bento, quase sempre a abarrotar de fardas, obrigatório para quem queria encontrar companheiros destacados no mato, em trânsito por Bissau, para consultas médicas, tratar de assuntos dos destacamentos ou à espera do avião para férias na metrópole.
Não lhe saíam da cabeça, as férias, ver a família, os amigos, a namorada, ir ao cinema, apanhar um ar diferente. Um entusiasmo, só de pensar, estavam á porta, um ou dois meses se tanto, ia descontando os dias.

Atravessava a fase fotográfica, ia para o Cupilão (1), negras com os bebés às costas a pilarem o arroz, mancarra (2) a secar, crianças a brincar, velhos negros de barbas brancas, curvados, a cortar as unhas dos pés com a catana enorme na mão, outros sentados em fila, encostados às casas, olhos vermelhos de doenças, clicava tudo.

O conflito sentia-se em todo o lado, em Bissau também, embora não houvesse relatos de episódios violentos dentro da cidade. Claro que via o que se passava, ouvia os helis pousar no Hospital, pertinho deles, quase vizinhos, tinha acesso aos citreps (3) e aos perintreps, era visita frequente da 2ª e da 3ª Rep, almoçava com este e aquele, estava a par do que se passava em todo o território.

O Tintas era companheiro das mesmas lides desde há anos. De baixa estatura, magro, enfezado, aparência tímida mas muita lábia, via-se que era desenrascado há muito. Estiveram juntos em Mafra, juntos seguiram no Carvalho Araújo (4) para os Açores, despediram-se no cais de Ponta Delgada.

Encontraram-se, de novo no mesmo navio, no regresso ao continente. Mobilizados para a Guiné, apanharam o comboio em Santa Apolónia, para o norte, para gozar os dias de licença a que tinham direito e reencontraram-se em Campanhã para o regresso a Lisboa. Passaram os dias na capital, despedindo-se da vida boa que lá se vivia, até embarcarem no Alfredo da Silva. Na véspera do embarque fizeram questão de mandar vir lagosta e champanhe francês, no Solmar, ali nas portas de Santo Antão. Davam-se, não ligavam às mesmas coisas, nem eram muito parecidos mas entendiam-se bem. O acaso fizera com que se juntassem nesse percurso. Já em Bissau, com o capitão Matos e outros companheiros da viagem, separaram-se, até um dia destes.

Numa dessas visitas ao QG soube que o Tintas tinha sido preso no Senegal. A comunicação oficial era confusa, não se entendia bem, se tinha sido apanhado, se desertara. Certo é que tinha sido levado para Dacar.

O Tintas estava a comandar um pelotão reforçado em Sare Bacar, no norte, para leste, encostado ao Senegal, uma zona calma, comparada com as outras. O PAIGC, na altura, servia-se das fronteiras do Senegal mais como corredores de passagem para o interior e o Shenghor (5) não queria problemas, já tinha que chegassem.

Levava uma vida tranquila, mantinha boas relações com a população local. Terá sido abordado pela polícia, em território senegalês, quando, sentado a uma mesa, defrontava um frango que lhe tinham preparado, disse mais tarde. Puseram-lhe as algemas e meteram-no num jeep a caminho de Koldá.

Depois de ouvido foi para a cadeia de Ziguinchor e por lá ficou uma semana, enquanto se desenvolviam negociações, por intermédio da família, que o Estado não se meteu. A Igreja interessou-se, a Cruz Vermelha Internacional intercedeu, levaram-no para Dacar, onde foi presente a um juiz que decidiu recambiá-lo para Lisboa.

Mas ele não queria, temia represálias, queria voltar a Sare Bacar. Semanas depois, acabou por ser entregue na fronteira às autoridades militares portuguesas.
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(1) Bairro de Bissau
(2) Amendoim
(3) Relatórios Militares
(4) Navio apreendido aos alemães na fase final da 2ª Guerra. Fazia o curso para as Ilhas.
(5) Leopold Shengor, Presidente do Senegal

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