23 janeiro 2004

Estórias com mural ao fundo - XX: Uma questão cá entre nós (ou o triângulo Lisboa-Luanda-Recife)

Um ilustre professor de medicina, kaluanda, meu amigo de fresca data, corrigiu há dias um e-mail através do qual o Blogador lhe enviava uma destas estórias com mural ao fundo. Pensou ele, o meu amigo, que toda a estória tem uma moral (ou seja, um desfecho ou uma conclusão em geral edificante). E que portanto havia uma gralha (das grossas) no título usado pelo Blogador.



Mas não, meu caro Mário: diz o Blogador que estas estórias são mesmo com mural (parede pintada) ao fundo. E às vezes com a moral, essa sim, em baixo...



Aproveito, em nome do Blogador, para daqui enviar um ciberkandandu (abraço) para @s car@s amig@s da Faculdade de Medicina da Universidade Agostinho Neto, lá em baixo, na doce e crioula Luanda, hoje de novo terra de esperança e porto de abrigo de desvairadas gentes. E agradecer ao Mário a sua vigilância crítica em relação ao (ab)uso da bela língua que temos o privilégio de partilhar e de todos os dias enriquecer cá e lá.



E já que falamos de português, queria aqui evocar um belíssimo poema de amor à angolanidade que eu descobri num blogue de uma brasuca, Paty Carvalho, nascida no Recife, 29 anos, dentista, a viver e a trabalhar em Angola desde 2001.



O blogue dá pelo nome Notícias D'Angola e merece uma visita pela sua prosa gostosa e pela ternura quente com que a Paty fala da terra e das gentes angolanas. Destaco em especial um post de 30 de Outubro de 2003, sob a forma de pergunta e resposta sobre as actuais condições de vida que poderá esperar um candidato a imigrante de luxo em Angola.



Pergunta um imaginário brasuca: " (...) eu gostaria de saber se vale a pena me aventurar por aí, porque soube que aí dá para ganhar USD 1,000,000.00 por semana, trabalhando de segunda a quinta, das 10 às 14h. Isso é verdade??? Gostaria de saber como é a vida aí, algumas pessoas disseram-me que não se pode andar sozinho nas ruas, é verdade? Por que isso acontece? Como está a questão da segurança? E o custo de vida, soube que é bem alto. Quanto deve uma pessoa ganhar por mês para ter uma vida razoável? Finalizando, gostaria que você me fornecesse maiores informações sobre o país. Vale a pena ir?"



A resposta de Paty alia a maior das ternuras pelo povo angolano e a mais fina ironia em relação aos (pre)conceitos que os estrangeiros (brasileiros e portugueses incluídos) têm sobre a situação actual e as perspectivas futuras da África, em geral, e de Angola, em particular. Limito-me a citar alguns excertos:



"Se você não tiver sensibilidade para entender o que é a falta de água em 80% das residências, não venha. Olhe primeiro para o Brasil.



"Se você não tiver sensibilidade para respeitar o ritmo de trabalho das pessoas que ganham um salário muito baixo, não venha. Olhe primeiro para o Brasil.



"Se você acha que no Brasil não se passa fome, se ainda acredita que só se morre de fome nestes países da África Sub-Sahariana, não venha. Olhe primeiro para o Brasil.



"Se você, mesmo que involuntariamente, costuma associar problemas sócio-econômicos à cor da pele das pessoas, não venha. Olhe primeiro para o Brasil.



"Se você acha que o Brasil é um país melhor do que Angola, não venha. Olhe primeiro para o Brasil (...).



"O que te dará condições de viver bem aqui em Angola será a capacidade (...) de se entrosar, principalmente com o povo angolano, sem medos ou conceitos pré-formados. Isso vai fazer você entender o país e seu povo, e vai te fazer abraçá-los da mesma forma como você se sentirá abraçado(a) por eles, que, por sinal, fazem isso muito melhor do que muitos de nós, brasileiros. Abraçam sim, um kandandu bem angolano, cheio de calor e troca de boas energias, mas só o fazem quando confiam em você e sentem que você veio contribuir com o contexto e com a melhoria do país, e não apenas consigo próprio e com seu bolso (...).



"Finalizando, o Brasil é a cara da mãe dele. E o Brasil tem que ter orgulho disso. A mãe África é forte, batalhadora, sofrida, carrega muito peso nas costas e vê suas riquezas serem levadas de suas mãos o tempo todo, sem receber nada em troca disso. Mas consegue mesmo assim ser a mãe mais bonita do mundo, consegue ter um sorriso iluminado e uma ginga no corpo que nenhuma outra mãe tem. A mãe África vai caminhando de sua casa até o trabalho a pé, por muitos quilômetros e com um sol muito forte batendo em sua cabeça, mesmo com a lata de água protegendo um pouco desse sol lindo que só existe aqui. Minto. Ela não caminha, ela vai dançando, e usa para isso o ritmo dado pela percussão de seu coração. E segue em frente com porte de rainha e sorriso no rosto, até chegar em seu destino. Por tudo isso, a mãe África merece muito todo o respeito e admiração de seu filho Brasil que, infelizmente, nem sempre é um filho exemplar nesse aspecto (...).



"Espero ter ajudado. Desculpe-me novamente se eu tiver sido grosseira, a primeira intenção sempre é a de ser sincera e de querer ajudar a trazer pessoas que possam ter Angola no coração e considerá-la como uma segunda Pátria, como a mãe do Brasil. E não apenas como uma mina de ouro".



Uma miúda inteligente e generosa, essa Paty, além de bonita. É pena que tenha deixado de blogar antes do fim do ano de 2003. Mudanças(s) na vida dela, explicou. Mas continua em Angola onde se sente "em casa". Um chicoração para ela. De Lisboa com amor.

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