Pela mão do Jorge Santos, sempre atento, chegou-nos este belíssimo texto. É da autoria de Constança Lucas (2001), artista plástica e poeta. Vem na sua página pessoal (Pintura, Desenho, Aquarela, Pintura em Azulejos, Poesia, Prosa Poética, Fotografia, Poesia Visual, Desenhos no computador, Selos Postais, Desenhos para livros... Nascida em Coimbra em 1960, a autora vive e trabalha actualmente em S. Paulo, Brasil).
© Constança Lucas (1997-2005)
Madrinha de Guerra
Madrinha de Guerra, como se algo assim fosse possível de imaginar. Mas sim existiam e serviam para escrever aerogramas aos soldados da guerra colonial, algumas o faziam com entusiasmo, por também precisarem de ombro. A guerra - algo que nem sabiam bem porque existia.
Muitas perdidas na angústia da distância que as envolvia numa tristeza diária, na esperança de um retorno muitas vezes não acontecido, tentavam construir os seus afectos, divididas nem mesmo sabiam o que tinham com África. Esse continente distante que lhes engolia quem mais pensavam querer.
Tudo fingia mais calma, ninguém falava nos mortos e estropiados abertamente, tabu necessário à sobrevivência do regime.
As mulheres construíam os seus sonhos com pessoas que mal conheciam, na ânsia de amarem e serem amadas. Amavam perdidamente as poucas linhas que lhes chegavam, alimento das feridas tão fundas num mundo tão desigual.
Mesmo quando viam os imensos cortejos de gentes chorosas que seguiam num funeral, caixões de chumbo, corpos lacrados de jovens ou de pedras. E um povo assim sofrido é manipulado nas mais absurdas ideologias de dominação, as mortes tinham de fazer sentido, os inválidos tinham de ser vingados, os loucos tinham de ser esquecidos, os desertores eram clandestinos e chamados de fugidos a salto. Salto porque saltavam a fronteira da Espanha a pé sem serem vistos ou tentavam que assim fosse. Idos para terras que nem a língua conheciam e trabalho o mais miserável eras-lhes reservado como favor, afinal povo inferior.
Este povo olha para o mar há trezentos mil dias na crença que lá do outro lado poderão ser algo sem perseguições. Essa linha de horizonte que cria ilusões tão maravilhosas como funestas, ela que nos traz e mata as alegrias.
A água salgada cria laços de diálogo entre as diferenças, onde as lágrimas das mulheres são tão intensas, cansadas de ficarem sozinhas acreditavam que poderiam, sendo madrinhas, ter um coração aberto e correspondido. Perdidas nessas fantasias, a guerra impunha-se na chegada ou nos enterros de homens desconhecidos e atormentados, para quem elas haviam escrito, durante anos, todos os seus mais íntimos e inventados segredos.
Constança Lucas / 2001
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