Excertos do Diário de um Tuga. Texto de Luís Graça
Contuboel. 15 de Julho de 1969 (revisto)
1. Capri, c’est fini!... Ainda te lembras da velha canção do verão de há três anos, em Lisboa (1) ? Pois é, estão a chegar ao fim as férias de Contuboel, o dolce far niente da tropa tropical... Cheguei à Guiné há dois meses e meio. E ainda não vi, não senti nem cheirei a guerra (a não ser talvez no percurso, em LDG, no Rio Geba, a caminho do Xime e depois no troço Xime-Bambadinca, no dia da nossa partida de Bissau para Contuboel: confesso que havia alguma tensão nos rotos dos periquitos...).
© Humberto Reis (2005).
Os alegres dias de Contuboel (2 de Junho a 18 de Julho de 1969). Legenda do fotógrafo: "Em 10 de Julho de 1969, numa canoa no Geba a caminho de Sonaco... Reconhecem-se da esquerda para a direita o Tony Levezinho, eu, o Moreira, o Rocha, condutor, o Rodrigues, já falecido [ todos eles, quadros metropolitanos da CCAÇ 12], e o djubi, manobrador da canoa, de pé".
Acabámos os exercícios finais da instrução de especialidade, que decorreram entre 6 e 12 de Julho, a 10 km a norte de Contuboel. Recebemos a visita do homem grande de Bissau (2). Consta que já nos deu destino, a nós e aos nossos queridos nharros (3).
Acabaram-se os passeios tranquilos pelo Rio Geba, de piroga. As conversas, ao fim da tarde, debaixo do poilão, com os djubis, as bajudas e as mulheres grandes e os homens grandes. As conversas intelectuais com o meu amigo Monteiro (4). Os meus vizinhos aldeões com quem gostava de conversar. As pacatas idas às hortas das proximidades para comprar bananas e abacaxis...
Vou ter saudades de Contuboel, das frondosas margens do Geba, da paisagem luxuriante, das amáveis lavadeiras mandingas, de mama firme, que encontrávamos pelo caminho. Mas, como diz a canção, é muito pouco provável cá um dia voltar. Em contrapartida não penso neste momento em Lisboa nem no meu regresso. Contuboel acabou: há agora muitos milhares de quilómetros para palmilhar, numa prova que é, para mim, para todos nós, o grande teste de resistência... e de sobrevivência.
Vou ter saudades das histórias que a velhice de Contuboel nos contava. Madina do Boé, Fiofioli… Nós, os periquitos, ouvimos com respeito a velhice e é, com natural apreensão, que nos preparamos para montar a tenda algures no chão fula. Dizem-me que marchamos, dentro de dias, para Bambadinca. Não gostei do sítio quando por lá passei, há um mês e meio. Ainda cheirava a pólvora... Em contrapartida, o aquartelamento é novo, oferecendo boas condições de alojamento, pelo menos para os oficiais e sargentos.
2. Março de 1969. Durante dez dias e dez noites, de 8 a 18 de Março, o triângulo Xime-Bambadinca-Xitole é passado a pente fino: 1300 homens, além da aviação e da artilharia, estão empenhados na grande operação de limpeza a que foi posto o nome de código de Lança Afiada (não tenho ideia se a marinha esteve envolvida, e em especial o corpo de fuzileiros, cortando a possível retirada do In pelo Rio Corubal).
Estava-se então em plena época seca: o capinzal já não resiste às granadas incendiárias e as clareiras, abertas pelas queimadas na savana arbustiva, deixam entrever a imensa mole de vegetação tropical para além da qual fica tabanca di bandido, em florestas sombrias onde coabitam dginé e najoré, e que na algaraviada dos meus nharros quer dizer irãs, diabos, diabretes, duendes e toda a espécie de espíritos (bons e maus)…
O objectivo da operação é, como sempre, aniquilar, capturar ou, no mínimo, expulsar o IN, destruir todos os seus meios de vida e recuperar a população sob o seu controlo... (À força, se a dita população não quiser voltar a viver sob a nossa bandeira e a nossa soberania).
A ideia de manobra é simples: da Ponta do Inglês (antigo aquartelamento das nossas tropas, abandonado em finais de 1968, se não me engano) à mata do Fiofioli, da estrada Mansambo-Xitole à Ponta Luís Dias (outrora um florescente entreposto comercial à beira rio) um enorme cilindro compressor irá empurrando tudo o que for balanta, beafada e bicho do mato para o Rio Corubal onde os esperam os pássaros de fogo dos tugas, os hipopótamos, os jacarés, as formigas carnívoras, os jagudis...
Oficialmente o dispositivo do IN na área compreendida entre a linha geral Xime-Xitole e a margem direita do Rio Gorubal foi desarticulado — um eufemismo, de resto, muito utilizado nos nossos relatórios militares para justificar resultados mais morais e psicológicos do que materiais em operações desta envergadura, e que quando muito só se realizam de dois em dois anos (Na verdade, não é todos os dias que nos podemos dar ao luxo de mobilizar o equivalente a um agrupamento, ou seja, três batalhões).
Na prática, os roncos não foram espectaculares: para além de algumas toneladas de arroz destruídas e de umas tantas casas de mato ou cubatas queimadas, enfim, para além de alguns contactos com o IN, sempre à distância, “o que contou sobretudo foi termos penetrado em santuários do IN tão míticos como a mata do Fiofioli” (diz-me um furriel da velhice com quem gosto de conversar do passado recente). Fico a saber que o Fiofioli é um sítio tão temível para os tugas da Zona Leste como, noutros sectores, o Boé, o Cantanhez, o Morès, o Choquemone, o Caresse ou a ilha do Como.
- Afinal, nem hospital nem enfermeiras cubanas nem sequer o fantasma do Nino vestido à cowboy - comentava, entre irónico e desapontado, à mesa da lerpa, um outro furriel da velhice de Contuboel - Foi só por dizer que estivemos na mata do Fiofioli… Nem sequer fiz o gosto ao dedo!
O que eu posso concluir destas conversas entre periquitos e velhinhos, no meio de rodadas de cerveja e de uísque, é que depois do inferno de Madina do Boé, a Lança Afiada teve um certo sabor a vitória para as NT.
0 que se passara, entretanto, é que, na impossibilidade de resistir abertamente à contra-penetração das NT, a guerrilha ensaiara algumas manobras de diversão pelo fogo, enquanto as populações sob o seu controlo, previamente alertadas, se metiam na arca de Noé (quiçá com toda a bicharada do mato, os porcos, as galinhas), cambando o Rio Corubal e pondo-se a salvo na outra margem... Em suma a velha táctica dum conhecido mestre escola chinês: “dispersar quando o inimigo ataca, reagrupar quando o inimigo retira”…
Um mês depois, e quando os tugas voltavam a dormir de cu para o ar, preparando-se para hibernar nos seus campos fortificados durante a estação das chuvas, os diabos negros da floresta desencadeavam uma série de acções que culminariam no ataque em força, inesperado e espectacular, a Bambadinca, a sede do comando do sector L1 até então inviolável...
Foi a 28 de Maio de 1969, à noite, estávamos nós a chegar a Bissau. Quando passámos por Bambadinca, oito dias depois, a caminho de Contuboel, não se falava de outra coisa… "Podíamos ter sido todos mortos ou apanhados à unha, tal era a bandalheira em que estava o quartel" - confidenciou-me o meu conterrâneo e amigo, o Agnelo, 1º cabo de transmissões da CCS... De facto, faziam-se quartos de sentinela... sem armas!
Ao que soube mais tarde, o comandante e o seu adjunto (5) apanharam uma porrada do Spínola e seguiram com guia de marcha para Bissau...
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Notas (L.G. - 2005)
(1) Canção, romântica, então em voga, nos idos anos de 1965/66, do francês Hervé Villard (n. 1946). A letra era típica da época, delicodoce, inócua, pacífica, para consumo de adolescentes apaixonados, quando ainda se ouviam canções francesas românticas na nossa rádio e os copains e as copines da França do acordeão e do Charlles de Gaulle preparavam para incendiar Paris: "Nous n'irons plus jamais,/ Où tu m'as dit je t'aime,/ Nous n'irons plus jamais, /Comme les autres années, /Nous n'irons plus jamais, /Ce soir c'est plus la peine, /Nous n'irons plus jamais, /Comme les autres années; Capri, c'est fini, /Et dire que c'était la ville / De mon premier amour, /Capri, c'est fini, /Je ne crois pas /Que j'y retournerai un jour" ...
(2) Forma carinhosa ou reverente como era tratado o general Spínola pela NT e pela população local que convivia connosco.
(3) Termo algo depreciativo (tal como tugas, sinónimo de brancos de Portugal) com que tratávamos os africanos da Guiné. Não se pode dizer que o termo fosse explicitamente racista. Era uma expressão de caserna.
(4) Furriel miliciano Monteiro, da CART 2479 / CART 11, que seguiu para Pitche, a nordeste de Nova Lamego (ou Gabu), com os seus africanos (soube-o há dias), na mesma atura em que nós (CCAÇ 12) seguimos para Bambadinca. Estes africanos fizeram a recruta e a instrução de especialidade juntamente com os nossos. Na altura Contuboel funcionava co,mo um centro de instrução militar. Nunca mais o tornei a ver, ao Monteiro. Espero fazê-lo em breve. Graças à Net, foi ele que me localizou, embora fosse eu a procurá-lo. Um ciber-abraço, daqui, para o Renato Monteiro!
(5) BCAÇ 2852 (1968/70)
2 comentários:
Campelo de Sousa
Eu tambem passei por Bambadinca, estive em Bafatá no Posto de Transmissões em 1970.
Em 1971 fui para Nova Lamego, tambem para o Posto de Transmissões pois eu era Radiotelegrafista.
Estive em Nova Lamego Até Setembro de 1972, tendo regressado a Lisboa em 14 de Outubro de 1972.
Parabens pelo exelente Blog.
Esquecime de dizer que fui mobilizado em rendição individual que embarquei em Lisboa a bordo do barco Ana Mafalda no dia 18 de Setembro de 1970, desembarquei em Bissau na manhã do dia 24 do mesmo mes e ano.
Tamebem terei algumas historias para contar inclusiva uma e talvez a mais marcante, passada em Bambadinca, quando entrei pela primeira e unica vez na capela e estavam lá expostas tres urnas com soldados mortos em combate !!
Mais uma vez parabens pelo excelente Blog !!
Cumprimentos,
Campelo de Sousa
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