02 março 2006

Guiné 63/74 - DCI: Crónicas de Bissau (ou o 'bombolom' do Paulo Salgado) (12): reviver o passado em Olossato

Guiné-Bissau > Maqué > 2006 > " O mais belo poilão que conheço da Guiné" (Paulo Salgado) .
© Paulo & Conceição Salgado (2006)




Texto do Paulo Salgado:


O regresso de um homem bom!

Quero falar-vos do Moura Marques – camarada de luta, companheiro de labutas, amigo de confidências. Nos idos meses de 1970-1972. Foi no Olossato que se forjou uma solidariedade grande, mas já em Santa Margarida se notava ali a bondade e valentia do Moura Marques, para quem não havia heroísmos nem cobardias, para quem mais valia a verdade do que o servilismo. Se foi louvado, só o poderia ser pela coragem, pelo exemplo, pela calma que dele transparecia, que dele irradiava.

Ontem, dia 26 de Fevereiro de 2006, 35 anos depois de a CCAV 2721 embarcar para Lisboa, fomos ao Olossato: ele, a Maria da Conceição e eu no Prado. Devagar, para bebermos em conjunto as emoções, e rememorar momentos vividos com os outros camaradas.

Saída em direcção a Bula e dali para Bissorã: o largo, as fotos ao que resta de Os Bigodes, as casas coloniais envelhecidas pelo tempo inclemente, a picada, que outrora era picada por causa das minas, e, não sei por que razão, agora estava linda, avermelhada, e, ao lado, as pequenas bolanhas do alto do Maqué, onde está o mais belo poilão que conheço da Guiné, o que resta do aquartelamento da pontão do Maqué, não mais do que algumas paredes onde ainda se descobre uma fresta espreitando para a mata lá atrás (ai quantas sentinelas feitas pelos infernais, pelos vampiros). As fotos da praxe. O marejar de lágrimas do MM.

- Vês, ali, Salgado, tantas horas de trabalho na construção do heliporto, quantas horas perdidas na solidão da mata, quanto de nós ali está ! – dizia ele, emocionado… E a Maria da Conceição tirando as fotos das mais bonitas que já vimos…
Na ligeira subida para o Olossato, alguém grita correndo:
- Bolea, patim bolea!
Parámos. Uma mulher vinha correndo:
- Um mindjer prenhadu sta ali na caminhu!

E nós os três preparados para o que desse e viesse que as dores e contracções (percebiam-se) eram repetidas e já nos imaginávamos a fazer de parteiros na beira da estrada…Felizmente a mulher aguentou. E lá foi levada com mil cuidados ao centro de saúde. E nós, como sorrimos de satisfação e de alívio.

Guiné-Bissau > Cumeré > 2006 > Uma viagem de regresso ao passado... © Paulo & Conceição Salgado (2006)


O reencontro com os amigos. Um deles anda se recordava do cabo Moura. E o Moura Marques mais uma vez emocionado:
– Bolas, um homem sofre, com este exorcismo (palavras do MM).

Uma oferta aos amigos. Uma visita à campa muçulmana do Suleiman Seidi. Uma oração em silêncio, um silêncio de saudade, uma saudade enorme – o Suleiman era um irmão. Eu que o diga. O Moura Marques chorou, de pé, honrando a memória de soldado milícia português – um homem chora quando tem que chorar, bolas.
- Olha, ali era o PC, e ali o local dos morteiros; acolá o bar…
-E ali, bem visível a caserna, agora escola de marabu...

O sol já caía a pino. E os amigos, de volta: mantenhas, e o desejo manifesto do grão-de-bico (homem agora com quatro filhos…menino era naquele tempo):
- Cabo Moura leva-me para Lisboa.
Guiné-Bissau >Olossato > 2006 > O grão-de-bico, ontem criança, hoje homem grande, pai de filhos, reencontra o Moura Marques e o Paulo Salgado... © Paulo & Conceição Salgado (2006)


Que carinho e que ternura e que vontade de ter outra vida o desejo destes homens, dos que estiveram connosco dos que combateram do outro lado.
- Salgado, isto é demais!

Lá fomos em direcção ao rio Olossato, sempre bonito e frondosas as margens, lodoso, embora. Mais fotos e sempre as crianças, as belas crianças. Umas bolachas que a Conceição distribuiu fizeram-nas sorrir. Sorrir ainda mais, se é possível.

Guiné-Bissau > Rio Olossato > O Paulo Salgado e o Moura Marques, 35 anos depois...
© Paulo & Conceição Salgado (2006)


Depois a picada para Farim com passagem por Cansambo (só possível agora visitar, pois naquele tempo estava arrasada) e K3; a travessia de canoa a remos para a outra banda: Farim. Tarde quente de calor do sol e de calor humano. Uma cerveja meio quente junto da Fatu Turé e Mustika Turé, encarregadas do bar da festa carnavalística (assim lhe chamou o comandante da canoa! – um neologismo (?!) para o nosso vocabulário.
- Boa tarde! A bos portuguisis? Pai di nôs.
O que responder a tal fé antiga? Sem palavras.
De novo a cambança. No meio do rio, gritou o comandante da canoa vizinha, a motor, sorrindo:
- Li, tene manga di lagartus…


Guiné-Bissau > Rio Farim > 2006 > Cambana do rio..."A bos portuguisis? Pai di nôs".© Paulo & Conceição Salgado (2006)


A corrida para Mansabá, umas fotos do jovem ferreiro e da forja… Depois, Mansoa. Um hospitalzinho novo, da cooperação francesa, e as ruínas do quartel com soldados sentados à sombra dos mangueiros…!

E a seguir, Uaque. O último olhar para uma viagem longa, mas emocionantemente bela, reconfortante. Estava (quase) feita a catarse… O Moura Marques:
- Meu Camaradão, meu amigo.

PS - No dia anterior, estivéramos em Nhacra e no Cumeré… exactamente no dia em que pela última vez o MM almoçara com o seu amigo Fernando (periquito) que viria a morrer em emboscada dois dias depois…

1 comentário:

Manuel Araújo disse...

Parabéns e obrigado, por despertar em mim a saudade e vontade crescente de voltar ao Olossato antes de morrer.

Regressei no dia 14 de Outubro de 1974 eram 11:45 da noite e desde o regresso, nunca encontrei nenhum camarada do BCV 8320/73 (2ª C. Cav.)

Coloquei estas fotos no meu blog, para ver se "aparece" alguém:

http://manuelaraujo.blogspot.com/1999/09/guin-olossato_24.html
http://manuelaraujo.blogspot.com/1999/09/guin-olossato.html

Se alguém se reconhecer aí, entre em contacto comigo por favor...

Um abraço ao mentor deste espaço e muito obrigado.

Araújo
(o Braga das Transmissões) :)