26 março 2006

Guiné 63/74 - DCLIV: Bafatá: o Café do Teófilo, o desterrado





Guiné > Zona Leste > Bafatá > Em cima: estrada de Bambadinca-Batatá (vista de héli); a meio, vista aérea de Bafatá, com o Rio Geba do lado direito (foto tirada de helicóptero, do lado oeste); em baixo, a famosa piscina local (na imagem, o Humberto Reis).

Arquivo pessoal de Humberto Reis (ex-furriel miliciano de operações especiais, CCAÇ 12, Bambadinca, 1969/71). © Humberto Reis (2006).


1. O Café Teófilo era conhecido por todos os tugas que estiveram em Bafatá, ou iam a Bafatá, em serviço ou em lazer. Era o caso do pessoal metropolitano da CCAÇ 12 que, mais ou menos de mês a mês, conforme a frequência e a intensidade da actividade operacional, ia a Bafatá comer o seu bifinho com batatas fritas (em geral na Transmontana), visitar as amigas do Bataclã, fazer compras na Casa Gouveia ou simplesmente distrair a vista pelas montras da civilização... Com cerca de 4 mil habitantes (no princípio dos anos 60), Bafatá era a sede de concelho do mesmo nome e a segunda maior cidade da Guiné (passou de vila a cidade só em Março de 1970!)...

O Teófilo foi aqui evocado pelo Manuel Mata, do Esquadão de Reconhecimento Fox 2640 (Bafatá, 1969/71): "Café do Teófilo: À saída de Bafatá, na estrada para Bambadinca. Este homem era sobrevivente de um grupo desterrado para a Guiné nos anos 30. No período da guerra era apontado como sendo informador do IN. Foi pessoa com quem me dei particularmente bem, pois tinha pelos alentejanos (em especial de Portalegre) um carinho especial. Era sítio que eu visitava com alguma regularidade, tomava-se uma cerveja gelada, com alguma descrição, acompanhada de uma breve conversa. Era uma pessoa de parcas palavras" (1).

Mandei a seguinte mensagem ao Manuel Mata:

"A história do Teófilo intressa-me. Eu julgo que ele era das Caldas da Rainha, do Oeste (eu sou da Lourinhã). Seria ? Fiquei com essa ideia, das minhas conversas (escassas) com ele... Eu ia lá algumas vezes, recordo-me da filha [, a Rita]. Ele era de poucas palavras (acrescentei eu, à tua legenda).

"Sabes o motivo por que foi desterrado (ou deportado, como se dizia na época) para a Guiné ? Por razões políticas ? Seria ? Terá estado envolvido nalgum movimento de contestação ao Estado Novo nos anos 30 ? Recorde-se que em 1936 foi criado o campo de concentração do Tarrafal, em Cabo Verde (2), e que entre 1916 e 1939, mais de 15 mil portugueses foram presos e, muitos deles, deportados (para as ilhas adjacentes e colónias) por razões políticas, segundo estimativa do historiador Fernando Rosas ...

"De facto, no meu tempo, ele já tinha 40 anos de Guiné... Nunca aprofundei essa estória. Voltaste a saber dele ? Vou perguntar também ao meu camarada Humberto Reis, da CCAÇ 12" (3)...

2. Informações adicionais do Mata sobre o Teófilo:

No que respeita ao Sr. Teófilo, soube em certa altura após o 25 de Abril de 74, suponho que por um dos meus amigos de Castelo Branco, donde a esposa do senhor era natural, que a Ritinha e o irmão (furriel na altura, em Bissau) viviam em Lisboa.

Quando cheguei a Bafatá, em Novembro de 1969, alguém me disse:
- O fulano ali do café procura militares de Castelo Branco e de Portalegre. - Lá fui eu e dois companheiros de Castelo Branco, acabámos por jantar com o senhor.

Posteriormente em conversas havidas, recordo de me contar que era sobrinho do Sr. Tapadinhas, proprietário da Tipografia Tapadinhas, em Portalegre.

Contou-me que tinha sido desterrado para a Guiné no inicío dos anos trinta, num grupo de 40 elementos dos quais restavam três à data, estando ele e um outro em Bafatá de quem não me recordo o nome - sei que tinha uma taberna na Tabanca entre a casa dele e o Hospital (pessoa com que, de resto, privei algumas vezes, para ouvir os programas em Português da BBC de Londres).

Sei que o Sr. Teófilo tinha vindo à Metrópole apenas duas vezes, tinha uma estima profunda pelos Guineenses, pois foi esse povo maravilhoso que o tratou de inúmeras doenças, e só assim conseguiu sobreviver.

Deu-me muitos conselhos, contou-me muita coisa confidencial, mas nunca quis falar da razão que deu origem ao seu desterro. Sempre respeitei a sua vontade, não o pressionando.

Manuel Mata

3. Comentário de L.G.:

Esta história é fantástica: o Manuel Mata veio-me refrescar a memória. Lembro-me muito bem do velho Teófilo, que era apontado com um caso excepcional de sobrevivência às duras condições da Guiné: ele sobreviveu a tudo, o paludismo, a bilharziose, a doença do sono e tantas outras doenças tropicais; ao isolamento, ao desterro... Como todos os brancos (em especial, comerciantes) que eu conheci na Guiné, o Teófilo tinha fama de estar feito com o IN (ou, noutros casos, era-se inevitavelmente suspeito de ser informador da PIDE/DGS, como era o caso de um comerciante de Bambadinca, cuja casa frequentei /frequentámos algumas vezes)... Não me recordo de ter visto os agentes da PIDE/DGS de Bafatá no Café Teófilo...No Transmontana, sim...

De qualquer modo, o Manuel Mata (que passou a sua comissão em Bafatá e era visita da casa do Teófilo) sabe mais estórias sobre este grupo de deportados que não nos quer contar, por razões que eu respeito... Tratava-se de homens que não morriam de amores pelo Estado Novo, de serem do reviralho... E daí a suspeita de pactuarem com o IN (leia-se: os turras)... Enfim, é pelo menos uma primeira conclusão que eu posso tirar...

Mas há mais malta da nossa tertúlia que esteve em (ou passou por) Bafatá, para além do Manuel Mata (Esq Rec Fox 2640), do pessoal da CCAÇ 12 (eu, o Humberto, o Tony Levezinho, o Fernandes) e outra malta que esteve no Sector L1 (Bambadinca)... Refiro-me ao A. Marques Lopes (CART 1690), o Jorge Varanda (CCAÇ 2636), o Jorge Tavares (CCS do BCAÇ 2856), o Maurício Nunes Vieira (CCS do BART 3884) , etc.

O Teófilo, cuja memória evoco com respeito (hoje se fosse vivo teria mais de 90 anos, mesmo perto dos 100), fez-me lembrar-me o caso dos lançados... Eram tipos (desde os condenados pela justiça do rei aos aventureiros, aos judeus, aos ‘assimilados’, etc.) que desde o tempo de D. Henrique eram literalmente lançados, sozinhos, com a missão de explorar, por conta e risco, a costa da África Ocidental, os países subsaarianos, até à próxima viagem das caravelas ... Eram, na época dos Descobrimentos, uma espécie de guias e picadores, de espiões, de antropólogos, de embaixadores, de bandeirantes: iam à frente, para conhecer e mostrar uma caminho… Também eram conhecidos por tangomaus. Nem sempre foram bem vistos pela autoridade régia (que pretendia manter o monopólio do comércio com a África Ocidental, enquanto os lançados também faziam negócios com os ingleses, os franceses e e os holandeses) nem muito menos pelos missionários que os acusavam de estarem completamente cafrealizados, vivendo em poligamia, no pecado, à maneira dos cafres...

Estamos a falar ainda do Séc. XV… Os nossos amigos tertulianos estão a imaginar serem lançados no Xime, com uma missão (contactar os povos da margem direita do Corubal) e a promessa de voltarem a casa no ano seguinte ?

Estas são outras histórias do Império que muitos de nós desconhecem... Sobre os Lançados, vd. Dicionário de História dos Descobrimentos Portugueses (ed lit Luís de Albuquerque). Vol II. Lisboa: Círculo de Leitores. 1994.582-584. Ver também o texto do senegalês Mamadou Mané - Algumas observações sobre a presença portuguesa na Senegâmbia até ao séc. XVII, publicado na Revista ICALP, vol. 18, Dezembro de 1989, pp. 117-125, disponível em formato pdf na página do Instituto Camões.

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Nota de L.G.

(1) Vd post de 25 de Março de 2006 > Guiné 63/74 - DCLII: Esquadrão de Reconhecimento Fox 2640 (Bafatá, 1969/71) (Manuel Mata) (3)

(2) Segundo o historiador Fernando Rosas, o número de deportados nas ilhas e nas colónias, em finais de 1931, meados de 1932, entre oficiais, sargentos praças e civis, era de 1421 (a maior parte em Angola, Timor, Cabo Verde e Açores).

Na Guiné, o número de deportados reviralhistas (opositores ao regime instalado em Portugal depois do golpe militar de 28 de Maio de 1926) era de 46, dos quais 18 oficiais, 5 sargentos, 5 praças e 18 civis... Será que entre estes civis poderia estar o nosso jovem Teófilo ? Recordo-me do Teófilo me ter sempre falado de um grupo original de 40 portugueses que veio para a Guiné, e de que ele era já (em 1969/71) um dos últimos sobreviventes. Julgo que mais tarde (se não mesmo logo em 1932) ele e os seus companheiros de infortúnio terão beneficiado de uma amnistia.

Fonte: História de Portugal (ed. lit. José Mattoso), Vol. 7: O Estado Novo (1926-1974). Lisboa: Circulo de Leitores 1994. 209.

(3) Eis o que o Humberto Reis me esclareceu sobre o assunto: "Do Teófilo apenas me lembro de que era lá que se formava a coluna de regresso a Bambadinca, por isso aí se bebiam os últimos copos. Também me recordo que a filha, Rita, trabalhava nos correios lá em Bafatá e que a balança se queixava, cada vez que ela se punha lá em cima (era uma miúda nova mas já bastante forte para a idade). De resto já não me recordo de mais nada ".

1 comentário:

Maltez da Costa disse...

A tabanca do sr.Teófilo, esposa, filho e filha, funcionava como café e restaurante, durante 24 meses (junho/68 a Julho 1970). Era lá que gastava as minhas parcas economias e quando não havia dinheiro, havia sempre o rol de fiados.Era uma família simpática! Recordo com muita clareza, embora já se tenham passado 40 anos, as suas fisionomias.Não é verdade que a PIDE não frequentava o seu estabelecimento, pois foi lá que conheci dois dos seus elementos com quem tive alguns problemas e lá foram resolvidos com a ajuda de um camarada de Guimarães.Na altura dizia-se que o Sr. Teófilo tinha chegado à Guiné para trabalhar como ajudante de veterinária e só depois da chegada da nossa tropa é que se fixou em Bafatá.Desconheço se é verdade ou mentira.Inicialmente dormia no Comando de Agrupamento e trabalhava no posto de rádio junto à messe dos Sargentos.Mais tarde mandaram-me definitivamente para Esquadão de Reconhecimento Fox (Cavalaria). Quando lá cheguei em Junho de 1968 já lá estava um Esquadrão, quando me vim embora em Julho de 1970, lá ficou outro. Em ambos fiz amigos que gostaria de voltar a ver ... de certeza que já não os conheço ... foram 40 anos de separação.Se alguém se lembrar de mim, que entre em contacto comigo. um abraço a todos e o desejo de uma longa vida na companhia dos filhos, netos e bisnetos. Maltez da Costa, 1º cabo radiotelegrafista do STM (jose.m.costa@sapo.pt)