19 fevereiro 2006

Guiné 63/74 - DLXIII: Zélia, um caso de amor e de paixão (II)

Guiné-Bissau > > 2005 > O Xico Allen em convívio com antigos combatentes do PAIGC .

© José Teixeira (2005)

Texto da Zélia Cardoso, mulher do Xico Allen, e nossa mais recente tertuliana.

Gaia, 15 de Janeiro de 2006

Como é normal em circunstâncias destas, começo por me apresentar: meu nome é Zélia Neno, tenho 52 anos, 2 filhos (1 casal de 28 e 27 anos), casada há 30 com o Xico Allen, ex-combatente (Empada, 1972/74) e que alguns dos tertulianos, de quem costumamos ambos ler os seus relatos no blogue, já bem conhecem (1).

Após casada, comecei a ter que conviver com os seus pesadelos que me conseguiam acordar e a ver quanto se assustava com o rebentar de um simples foguete no ar. Então comecei a pedir que me fosse contando aquela passada mas recente vivência que ainda o atormentava, pois receava que tal se mantivesse ao longo dos anos, o que me assustava, como é obvio.

Dizem que o tempo cura as feridas mas casos há em que é necessário abri-las, fazendo-as sangrar até, para limpar com um anti-séptico e então esperar que curem completamente.

E assim, durante anos, algumas vezes já deitados e antes do sono chegar, comecei a ouvir os seus relatos, revivendo os 27 meses vividos num cenário de guerra, sofrendo com toda aquela adversidade, onde para ele e todos os outros o estar vivo no dia seguinte era incerteza constanste.

Falar disto aos jovens de hoje pouco lhes diz pois foram crescendo vendo a guerra dos filmes, onde quase todos os enredos são ficcionados e quando aparece o END, viram costas e entram noutra.

À época, o Xico e eu, além de vizinhos, unia-nos uma amizade fraternal, mas quer por ele como por todos os nossos amigos distribuídos pelas várias colónias, eu também sofri e chorei, quer no momento da partida, quer pela saudade que a ausência provoca, quer com o que podiam contar nos aerogramas que me enviavam, alguns dos quais ainda guardo religiosamente.

Quase todos puderam vir passar as tão merecidas férias, mas já se notava que alguns tinham sido "apanhados pelo clima", e passado esse curto período tudo se repetia, com um "Adeus até ao meu regresso"...

Voltando ao tema das horas passadas ouvindo o Xico relembrar alguns dos momentos maus,outros menos maus, alguns divertidos e até caricatos, especialmente enquanto "periquito", a alegria que sentia ao rever um companheiro, pelo que quase logo tomou a iniciativa de os ir juntando anualmente num almoço de confraternização, nos quais eu também participava, despertando em mim cada vez mais curiosidade por aquele pedaço de terra, que lá a 4.000 Kms, se estava a tornar saudoso e nostálgico e que para mim era virtual.

Marrocos, a caminho da Guiné-Bissau > 2005 >Uma paragem técnica para revisão das viaturas. De pé, o Xico Allen (à esquerda) e o Camilo (à direita).

© José Teixeira (2005)


Decidimos então começar uma poupança para poder realizar um sonho que então já ambos alimentávamos, pois com 2 filhos adolescentes, pagar as prestações da casa, e os gastos inevitáveis na manutenção duma família, tivemos que sacrificar saídas nos fins-de-semana, férias fora do país e outras coisas, pois nunca devemos de abandonar os nossos sonhos sem nada fazermos para os tentar realizar, mesmo que alguns nunca se concretizem: - Não é o sonho que comanda a Vida ?

Em Abril de 1992, com outro casal amigo, ele fora companheiro do Xico em Empada, o Artur Ribeiro, depois de tratados todos os requisitos exigidos, desde vacinas a vistos de autorização no passaporte, lá partimos embora com alguns receios pois para nós, mulheres, era a primeira visita a um país africano, para os dois ex-combatentes era a dúvida como nos iriam receber uma vez que lá tinham combatido como inimigos.

Aterrámos era 1 da manhã, no mesmo velho e degradado aeroporto donde eles haviam partido, de regresso a casa, em Junho de 1974, na altura sem qualquer vontade de lá voltar, mas como "o coração tem razões que a própria Razão desconhece", ali estavam e mal as portas do avião se abriram, os receios se dissiparam.

Apesar da hora tardia encontrámos pessoas afáveis, educadas e gentis, instalando-nos no melhor e mais recente hotel de Bissau, o Sheraton Hotel, hoje Hotel Hotti, com atendimento e condições óptimas, condizentes com o nome que tinha.

No dia seguinte e como era óbvio, fomos dar uma volta pela cidade e falando com uns e com outros todos faziam questão de dizer que eram nossos irmãos, pois acabara a guerra mas as condições de vida e o próprio país caira na decadência bem visível aos nossos olhos, pois Bissau tornara-se numa cidade feia, com as ruas degradadas, mal cheirosas, onde o lixo se amontoava servindo de alimento aos abutres, o que nunca havia visto e infelizmente revi quando em 92, também na minha primeira visita ao Brasil, e no interior da Baía por onde andei 2 meses, me confrontava diariamente com estas degradantes situações.

Deixando Bissau, rumamos a um verdadeiro paraíso que são as Ilhas Bijagós, com praias de areia branca sobre as quais se debruçam palmeiras e coqueiros, banhadas por águas quentes e serenas das quais é extraído muito e variado peixe e cujo marulhar só se mistura com o chilrear da passarada exótica que ali existe, formando assim um cenário paradísíaco convidativo ao descanso do corpo e da mente.

Ali, assim como pelo interior da Guiné, onde verdadeiramente a guerra se desenrolou já não se via lixo mas sim os nativos semi-nus, vivendo nas tabancas, onde não existe luz nem água canalizada e cuja base de alimentação é fundamentalmente o arroz e frutos, como os deliciosos mangos e a fruta do cajueiro, cujo sumo é uma delicia, para além das suas propriedades benéficas para a saúde e que depois de fermentado se torna em vinho.

Guiné-Bissau > > 2005 > O Xico Allen (à direita) em convívio com habitantes locais, o Kebá (antigo milícia, à esqterda) e o Braima (antigo ajudante de enfermagem, vestido de azul, ao meio).

© José Teixeira (2005)



Nunca esquecerei esta primeira ida à Guiné, e lamento que poucas famílias portuguesas por ali passem, pois ao dar-lhes um lápis, uma aspirina ou um rebuçado recebemos como agradecimento um grande sorriso franco e terno e vemos um brilho no seu olhar que só aquelas gentes nos podem proporcionar, transmitindo-nos uma energia que nos faz meditar e crescer espiritualmente, pois vivemos noutra parte do mesmo mundo, rodeados pelas novas tecnologias mas onde reina uma ambição sem limites, geradora de ódios, crueldades e muita pouca Paz.

Será isto um dos mistérios que faz nascer a paixão por África a quem a visita pela 1ª vez? Em mim a dita paixão virou quase doença e assim em 94 lá voltamos, já 3 casais e novas experiências vivemos. Desta vez conseguimos ir a Empada, onde os nossos 3 homens tinham perdido talvez o melhor tempo da sua juventude interrompida.

Encontraram entre a população alguns ex-milícias da nossa tropa e outros, ex-combatentes mas do lado inimigo e então ali frente a frente, entre abraços, risos e algumas lágrimas, reviveram factos passados, distanciados pelo tempo mas sem dor nem rancor. Pediram que voltássemos mais vezes, dissemos que o faríamos sempre que a vida tal nos proporcionasse e assim, 2 anos volvidos, em 96,lá estávamos novamente, acompanhados por mais um outro casal amigo, de Viana, e que também ele estivera em Empada.

Em Maio de 98, só os dois lá fomos e como costume, super carregados de roupas, brinquedos, medicamentos e alguns comestíveis, tudo para por lá distribuir. Xico sempre se zangava comigo na hora da partida pois parecia que eu desconhecia que de avião cada passageiro só pode levar 30 kgs de bagagem a não ser que pague o excesso. Mas eu, confiando sempre na minha boa estrela, deixava-o resmungar pois logo se veria, já que pagar é que não fazia parte dos nossos planos. Chegados ao balcão do chek-in e pesadas as malas, o peso total atingia quase 130 kgs. Que fazer?

Enquanto ele resmungava pois sentia-se envergonhado perante tal situação, eu fui conversando com o gentil assistente, dizendo o que levava e porque o fazia, pois ia ao encontro de tantas carências quando as podia amenizar um pouco com tudo que ali estava, levando assim um pouco de felicidade e muita alegria sobretudo às crianças que nunca tinham tido um brinquedo de verdade. A minha argumentação conseguiu que a sua sensibilidade ultrapassasse o cumprimento das regras impostas e, já que não havia risco de perigo, pois se uns levam peso a mais outros levam a menos, o facto é que conseguimos levar tudo sem pagar mais por isso.

Lá chegados, passamos uns 2 dias em Bissau e num jipe alugado viajámos para o interior, tendo como destino Empada, onde estivemos 2 dias. Aí sim, a experiência foi única até hoje, pois dormimos, comemos e tomamos alguns banhos na tabanca, onde luz só a da lua, das estrelas e da nossa lanterna pois desde a saída da tropa portuguesa não mais houve energia assim como outros bens essenciais, desde material escolar, medicamentos e alimentação. Os banhos, se assim se podem chamar, eram feitos despejando cabaceiras cheias de água retirada de um poço que gentilmente algumas mulheres nos iam entregando, fazendo-os passar por cima de um cercado e que funcionava como banheiro e não só...

Quis cozinhar um almoço pois havia levado 1 kg de esparguete, o que causou muita alegria entre os homens já que não comiam tal coisa desde 74 e para tal pedi que matassem 2 "pica no chão" mas de tão pequeninos que eram mais pareciam pintos e então comecei a minha aventura.

Sentada numa das pedras que rodeiam a fogueira comunitária, situada no centro duma palhota onde as mulheres grandes fazem a comida e sob um calor intenso que rondava os 40 graus, eu lá consegui distribuir e estufar aqueles pedacitos de frango em 2 grandes tachos, colocando num o esparguete e no outro arroz e ainda hoje não sei como saiu tudo gostoso e se houve algum milagre como o da multiplicação dos pães, já que somente aquele esparguete e igual quantidade de arroz conseguiu chegar para mais de 40 pessoas, na maioria homens e alguns até repetiram.

Nunca tinha vivido nada assim, mas senti-me imensamente feliz. Afinal a Felicidade não é mais do que o conjunto de momentos felizes que vivemos durante a nossa vida. No sábado regressámos a Bissau, onde outra grande aventura nos aguardava mas é demasiado longa assim como tantas outras para as inserir aqui, regresso esse devido a que no domingo à noite, com a chegada do avião,iria juntar-se a nós um grupo de 10 pessoas, 7 deles ex-combatentes, na sua 1ª romagem de saudade, que como todos os outros era a concretização de um sonho, sendo um deles o Sr. Casimiro, aqui do Porto, que se fez acompanhar pelo seu jovem genro, o Carlos, e outros seus amigos e companheiros de guerra, tendo então eu a oportunidade de conhecer o Sr.Armindo, de Moreira de Cónegos, o Sr. Camilo, do Algarve, o Sr. Pauleri, de Vizela, o Sr.Amílcar, aqui de Gaia, único que levou a esposa sendo assim eu beneficiada pois tive companheira para o resto da estadia e dos restantes lamentavelmente não me recordo dos nomes.

O que não esquecerei nunca, foi poder ver a alegria misturada com a emoção, quando chegámos a Jumbembem, local bem conhecido deles, pois mais não me pareciam do que crianças irrequietas em pleno Portugal dos Pequeninos, tentando ver todo o canto e recanto onde viveram outrora.

Esta foi até hoje, 2006, a minha ultima visita à Guiné. Porquê ? Porque um amigo convence outro e este mais outro e outro, e estas viagens passaram a ser anuais, 3 das quais foram por via terrestre em jipes referenciados como Missão Humanitária pois têm ido carregados de material escolar e medicamentos e penso que iria empecilhar o grupo, devido à ausência feminina. Não sei se isto acontece por falta de vontade dos maridos ou das esposas pensando que não vale a pena ir à Guiné já que existem tantos destinos para passar férias bem mais conhecidos ! ! !

Posso afirmar que para nós mulheres, que já lá estivemos, em momento algum nos arrependemos de o ter feito, bem antes pelo contrário, não só pelas experiências vividas no contacto com um povo cuja vida, costumes e ideais são tão diferentes dos nossos mas também porque a partir de então, ouvir nossos maridos falar daquele pedaço de chão com cerca de 36.000 klms quadrados, já visualizamos o cenário que para nós deixou de ser virtual.

Para os homens estas viagens, além de "romagem de saudade",servem para alguns deles exorcizarem algum fantasma da guerra que infelizmente tem destruido a saúde e a vida de muitos ex-combatentes e consequentemente de suas famílias, pois embora sem rosto visível tem nome-: Stress de guerra pós-traumático.

Não sendo perita neste assunto que em cada ano que passa faz mais vitimas, a minha opinião é que todos aqueles que podem e ainda têm saúde para isso, voltem a esses lugares, sejam em Angola, Moçambique ou Guiné.

Entretanto a próxima ida do Xico, via terrestre, está para breve com os preparativos já a decorrer mas com ele irão uns 5 ou 6 amigos, entre os quais o Sr.Armindo e o Hugo, filho do Sr.Albano, da Foto Guifões, que apesar de tão jovem já é a 2ª vez que lá vai e os restantes do grupo, Sr.Casimiro e C.A. seguirão de avião após uns dias, tentando chegar a Bissau em simultâneo, Até lá que Deus a todos acompanhe.

Perdoem esta minha intromissão e tão alongado texto, mas como meu marido diz, sou um perigo a falar ou escrever sobre a Guiné, pois não me canso de o fazer mas devo cansar quem me empresta os ouvidos, neste caso os olhos.

Zélia Neno

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Notas de L.G.

(1) Vd posts de

16 de Dezembro de 2005 > Guiné 63/74 - CCCLXXVI: O Xico de Empada, grande amigo dos guinéus (Albano Costa)


31 de Dezembro de 2005 > Guiné 63/74 - CDV: a tertúlia do Porto

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